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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/09/2024

Portal é o novo álbum do rapper brasileiro.

Rashid: “A minha arte está me aproximando cada vez mais do Rashid que vislumbrei quando era criança”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/09/2024

Quando você se torna pai toda uma transformação acontece. Obviamente, essa regra só vale para quem assume a paternidade de fato. É um momento que sempre vem acompanhado de descobertas. No meu caso, passei por esse portal 4 vezes. A segunda foi a que mais evolui. Perdi minha filha Serena algumas horas depois de nascida prematura de 6 meses. Coisas da vida que nos faz evoluir 300%. 

É claro que o objetivo aqui não é falar sobre mim. Porém, foi inevitável não citar minha experiência de pai antes de entrar na conversa com o Rashid. Nos falamos semanas depois do álbum dele, Portal, chegar ao streaming. Ao mesmo tempo que conversava com ele sobre a responsabilidade da figura paterna, pedia em off para minha filha de 6 anos brincar na sala ao lado do escritório — dentro do meu campo de visão — com a irmã de 1 ano para eu conseguir concluir a conversa. 

Entre um “pai tá demorando muito” e perguntas se tá acabando a cada minuto, deu tudo certo. O tema sobre a figura paterna permeou a troca de ideias porque essa abordagem é a que impacta mais, mesmo não sendo a única que Rashid trata. Porém, também falamos sobre produção, as problemáticas da indústria musical e os desafios dentro desse mercado.



Quais suas impressões da recepção das pessoas com o álbum? 

Eu tô feliz. Tem sido bem positivo. Comentários emocionantes, comentários passionais também. No geral, os comentários são depoimentos, as pessoas falando coisas e questões da vida delas. Tem mexido bastante comigo, porque eu acho que mostra de fato que o disco conseguiu tocar num lugar especial do coração das pessoas. 

A paternidade tem influenciado bastante na sua carreira musical, dá pra perceber principalmente ali no começo de Portal. Mas como se tornar pai transformou sua vida e mudou os rumos do seu universo musical e profissional? 

Cara, eu acho que esse portal da paternidade é uma coisa muito grandiosa, e não tem como não mexer, não tem como não influenciar na vida, em tudo. Obviamente, quando a gente tá falando de um pai que quer ser realmente pai, que quer estar próximo, porque, infelizmente, o que a gente mais tem (se a gente for olhar, ainda mais no nosso gênero musical) é história de pais que abandonam os filhos. Mas quando se fala de um pai que quer estar presente, ser o parceiro do seu filho, é um portal que não tem como não mexer na sua vida em muitas coisas, tá ligado? Então, eu acho que até, independente do trabalho que eu pudesse vir a exercer se eu não fosse músico, isso ia me influenciar porque mexeu com a minha visão de mundo, minha visão de tempo, minha visão de dinheiro, minha visão… de responsabilidade e da própria vida adulta. É uma coisa que balança tanto o seu mundo, como se você chegasse numa árvore e começasse a balançar pra cair os frutos. Uma coisa que balança tanto assim o nosso mundo, que dá esse chacoalhão tão extremo, não tem como não influenciar na arte. É o grande sol da minha vida. Então, eu já imaginava que isso ia acontecer, na verdade, antes mesmo do meu filho nascer. E aí tá o resultado, né? Acho que o disco prova isso um pouco, porque as coisas mudam dentro de casa, o clima muda, a forma como você se comunica muda, o barulho que você fazia, não faz mais, as coisas que assistia, não assiste mais. E você passa a assistir novas coisas porque sua criança quer ver umas coisas também. Você passa a ouvir novas coisas porque sua criança quer ouvir as músicas que ela gosta. A coisa toda muda e existe, de fato, uma transformação. Inevitavelmente, toda essa experiência iria parar na minha arte. Eu vejo isso com bons olhos e acho que é essencial porque a gente tem que crescer também. A minha música reflete a minha vida desde que eu comecei a fazê-la. Em algum momento já foi uma rebeldia jovem, uma raiva de tudo e de todos, um não se adequar a nada. E num segundo momento… essa raiva passou a ser direcionada, ganhou o conhecimento, foi agregado a isso… ganhou um entendimento e agora eu entendo porque coisas são assim pra mim, tá ligado? Isso tem a ver com a minha posição neste mundo, enquanto ser humano, onde a sociedade me coloca. E aí vem uma visão política, e o discurso político passa a ficar afiado. Depois vem outros passos onde o discurso político, racial e social fica muito alinhado. Agora vem o momento onde tudo isso culmina num tornar-se pai. A preocupação vira, como se você virasse a chave do forno, porque você passa a transmitir tudo isso para alguém. Acho que minha música acaba ganhando esse tom também, assim, de quem tá precisando transmitir pra alguém, porque esse alguém vai ter que aprender muita coisa… coisa que eu aprendi tomando paulada da vida na rua… e eu preciso transmitir pra essa pessoa pra que ela talvez não sofra tanto quanto eu.

Ter um filho muda tudo, né? É uma evolução de 100%. Mas o tema paternidade é pouco explorado dentro do rap. Quando fala sobre ele é mais no contexto de abandono paterno. Trazer essas referências e experiências da paternidade real é diferente. Você traz em “Cairo” essa visão que o faz se aproximar de outros pais também. Esses pais chegaram até você e trocaram essa ideia de se reconhecer naquela música? 

Muito, muito… Primeiro que vários pais amigos já me mandaram mensagem. Vários pais que são referência de paternidade pra mim. Pais que eu já olhava e falava: “Mano, quando eu for pai, isso aqui que essa pessoa faz é um bagulho foda”. Então, vários desses pais me mandaram mensagem emocionados. E aí quando a música foi pro mundo, começou a chegar mensagem dos fãs… Foi um absurdo, porque eu recebi muitos depoimentos de papo de vida mesmo, tá ligado? Teve um que foi muito marcante, que eu até re-postei… O cara falou que não conversava com o pai dele há anos porque estavam brigados e ele, como quem não quer nada, mandou a música para o pai dele, e o pai retornou chorando numa ligação. Eu acho que cabe a nós também colocar essas coisas pra fora, para o povo, porque esse é um exemplo. A gente sempre ouviu desse lugar do abandono da paternidade, dos filhos sem pai, das filhas sem pai. Agora estamos nos tornando pais e mães, e eu acho que é preciso colocar isso pra fora pra quebrar esse ciclo, quebrar essa maldição. Agora queremos ser pais presentes, tá ligado? É sobre parentalidade, no caso, né? Porque muitas mães me mandaram mensagem também, se identificando com a ideia da música, com as coisas que eu falava. Então, eu também percebi que a coisa se estendeu, foi para além do nicho. Foi para além do lance de só os caras que tem ou vai ter filho. Um monte de gente que falou: “Mano, eu nem tenho filho e tô chorando aqui com a música… nem sei porquê”. Isso é muito louco, porque a música mexeu com as pessoas. Acho que aí entra em vários lugares, o lugar de… exemplo, entre aspas, não é exatamente a palavra que eu estava procurando, mas de referência. Tem muitas pessoas que olham pro Rashid com carinho, como um cara que serve de inspiração. E o Rashid demonstrar isso, esse amor pelo filho dele, essa vontade de estar presente, de ser pai, é uma referência pra quando essa pessoa tiver seus próprios filhos. Tem a coisa de fazer uma curva no nosso discurso do rap, de trazer outras coisas e agregar. Não é que alguma coisa deixou de existir. Não. Mas é que existem outras coisas que a gente pode falar também. Acaba abrindo nosso leque e enriquecendo mais ainda nossa cultura, que já é riquíssima. E quando se trata de realidade, é isso. Um monte de cara igual eu, que adora ser pai e adoraria dividir isso em suas músicas. Mas tem gente que fica presa pra fazer isso. Eu não. Eu tô tentando me desvincular dessas amarras.

E quebra aquela coisa dura do rap, deixando um pouco mais suave. O seu disco traz essa suavidade que é diferente do anterior, também. Como foi criar essa nova camada, esse novo direcionamento do Rashid?

Eu acho que tem a ver com o meu momento mesmo. A minha criança influenciou no meu temperamento, na minha rotina, no meu dia a dia. Quando a gente começou a criar as coisas, meio que naturalmente começamos a caminhar pra esse lado. Tem uma coisa de ser um contraponto do disco anterior também, que tem umas coisas mais pesadas, mais melancólicas. Esse disco tem o seu momento melancólico, mas o disco anterior começa com uma tragédia, embora seja uma jornada épica. Tem esse lance de ser um contraponto, de fazer coisas diferentes também. Sempre que eu começo um disco, eu tento ir para outro caminho, para algo que não explorei no disco anterior. Tento sempre fazer isso e eu acho que esse, naturalmente, já iria para esse lado também… justamente por causa da fase que eu estou vivendo. Não é que está tudo perfeito. É uma fase de olhar para outros lados e, de certa forma, acho que as minhas influências e referências musicais começam a aflorar mais naquilo que eu faço. Nos meus estudos de música brasileira, as coisas começam a vir mais porque eu tô ficando mais pronto. É aquele bagulho do Mário Sérgio Cortella, que falou: “Eu não tô ficando velho, eu tô ficando pronto”. Então, tô ficando mais pronto. A minha arte está me aproximando cada vez mais do Rashid que vislumbrei quando era criança, quando era adolescente. Acho que, por isso, o disco tem esse lugar de suavidade, pra soar como uma conversa também, uma proximidade, tipo: sentei do seu lado e tô aqui trocando essa ideia, falando umas coisas pra você. Não é sobre ser o melhor MC do mundo, não é sobre ter o maior número de dinheiro no meu cofre. Não é sobre ter o carro mais brabo, sobre ter todas as minas. Não é sobre isso. É sobre fazer uma música que condiz com a minha mentalidade, com a minha idade, com as coisas que me influenciam e com aquilo que eu tô buscando artisticamente desde sempre.

Você já tinha ideia do que queria fazer, de tomar esse direcionamento mesmo, ou o álbum foi tomando forma de acordo com o que você ia produzindo? 

Quando a gente começou a trabalhar… a gente, eu digo, porque o Grou é o cara que dirigiu o disco junto comigo, né? E quando começamos a fazer as primeiras músicas, a gente ainda estava entendendo. Eu sabia mais ou menos a sonoridade que eu queria, mas a gente não tinha um conceito exato. Tinha um monte de ideia anotada e começamos a fazer o disco despretensiosamente, sem saber exatamente quando eu lançaria. Começamos a fazer uns sons. Até que, em um determinado momento, eu percebi que tinha uma espinha dorsal. Percebi que algumas músicas estavam formando uma coisa muito forte, que era essa coisa do portal. Ainda não tinha esse nome, mas comecei a juntar e entender essa ideia, esse conceito que depois desaguou nisso. A “Cairo” é uma música que eu fiz antes do meu filho nascer. Então, ela tá pronta desde antes do meu disco anterior. Só que ela não cabia naquele disco. Por isso, segurei para o momento certo. E aí, a gente tinha algumas faixas, tipo… teve coisas que foram ficando de fora também. Tinha uma música muito boa que cabia no conceito, mas no final das contas a gente acabou deixando ela fora por causa da timbragem. Eu já tinha a letra da “Frustração”, que eu escrevi em 2018. Aí veio a “Depois do Depois”, que é esse som sobre o rompimento de amizade. Então, quando eu olhei para essas músicas, eu falei: “Opa, peraí, eu tenho uma coisa firme aqui, tá ligado? Tem alguma coisa acontecendo”. E aí, a partir disso, em uns 10 dias, eu fiquei aqui refletindo em cima dessas músicas e aí cheguei na ideia do conceito. Quando eu expliquei ao Grou, a gente já estava bem alinhado nas ideias, tanto musicalmente quanto conceitualmente, e começamos a trabalhar em cima disso. Não é um disco tão comprido, tem nove músicas, mas eu acho que é pontual. Tinha que ser daquele tamanho. Mais do que isso, ele ia estar esticando um chiclete que não precisava ser esticado, sabe? Eu sinto que era isso. Tem muito a ver com o que eu queria falar. E quando senti que falei, eu terminei. Talvez o mais lógico fosse pensar, “vamos fazer mais uma pra fechar dez”. Mas não. Senti que falei o que precisava ser dito.

Tirou só uma música ou teve mais que não cabia nesse conceito?

Não, tiveram algumas. Tipo, sempre fica muita música de fora, mas eu não sei exatamente quantas músicas eu fiz, porque… essas músicas foram feitas de forma diferente. Geralmente, eu trabalhava como: as pessoas mandavam os beats e eu gravava em cima. Dessa vez, a gente começou meio que do zero a partir de loop de piano… eu não cheguei a terminar várias músicas e guardei para outro momento. A gente parava no meio porque eu sentia que não era aquilo. Não estava sentindo. A própria música “Portal” tinha outro instrumental, outra letra, era outra música basicamente, e eu escrevi, escrevi, escrevi, e falei: “Não é isso ainda”. E um dia o Grou, à noite, já estava me preparando pra deitar e ele me mandou uma ideia, a ideia desse instrumental novo, e aquilo mexeu muito comigo. Eu falei: “Isso aqui tem a cara da música que a gente quer para Portal.” No primeiro play, nos primeiros segundos é aquela coisa, uma sensação de estar entrando por um portal mesmo, aqueles vocais, aquela coisa meio mística… Mas basicamente tem algumas músicas, sei lá, umas 5, 6 músicas que ficaram de fora, mas assim… todas ideias começadas, letras, coisas que eu gravei no celular, mas nada finalizado.

Não tinha nada concluído ali pra, sei lá, lançar depois ou descartar de fato? 

Tem duas que estavam bem encaminhadas, assim, com guia gravada.. uma faltava gravar um feat. e a outra faltava gravar uns corais. Elas ficaram guardadas para soltar em algum momento. Essas duas eu tenho certeza que uma hora vão sair. Mas na hora certa. Sou meio romântico pra isso, meio antigo, tá ligado? O tempo é foda, mano, o tempo é um bagulho muito louco, e você trabalhar com o tempo é muito melhor do que trabalhar contra ele, tá ligado? Eu sei que às vezes a gente acaba cedendo porque parece que as redes sociais, que de certa forma, impulsiona a gente, fica ali falando: “E aí, você não tá fazendo nada. Vai lá falar que você tá fazendo alguma coisa”. Só que a gente tá aqui trabalhando. O meu jeito foi este… trabalhar em silêncio e eu gosto de aparecer com as coisas meio prontas, tá ligado? Então, assim, trabalhar com o tempo do seu lado é muito melhor. No tempo certo as coisas vão aparecer. Eu gosto de ter uma filosofia porque me sinto menos perdido nesse mundo, percebo que tá tudo dentro das coisas que eu acredito.



Falando de feats, você trouxe alguns artistas bem grandes, que incrementam ainda mais o álbum. No processo de composição você pensou na pessoa que participaria conforme a música ou foram  surgindo de acordo com o desenvolvimento?

Sempre de acordo com a música. Pra mim é sempre a música que manda. Tipo, e aí não é nem tanto romantismo, mas é mais uma coisa de timbre. Sabe aquela coisa? Você está fazendo um som e pensa: “A voz de tal pessoa ficaria louca aqui”. Aí, às vezes aquilo fica vários dias. Também gosto de passar uns dias pensando, porque tem isso… às vezes passam 2, 3 dias e você desencanou. Mudou de ideia. Então, é bom você dormir com a ideia. Eu sempre falo isso: “Deixa eu dormir com essa ideia e amanhã eu venho com a resposta”. Geralmente faz bem. É outra coisa que é um contraponto ao tempo de hoje em dia. Mas também gosto de ouvir o som. Por exemplo, a música com a Melly, “Levante”. É muito difícil pensar em outra pessoa ali depois que você imagina a Melly lá, tá ligado? Porque tem muito a ver com a voz dela… e a gente fez a música antes do disco dela, Amaríssima, ser lançado. E quando ela lançou, eu falei: “É isso, olha aqui”. A nossa música poderia estar dentro do disco dela facilmente, porque tem muito a ver com o trabalho dela. E foi a partir disso, ouvindo a música, escrevi o refrão e estava aqui, tipo… eu não sou um super cantor. Eu arrisco umas melodias, estou estudando, mas eu preciso ter consciência. O feat., no meu caso, não é somente a funcionalidade de, tipo, trazer uma pessoa que vai deixar a música grandona, mas também tem a coisa de dar uma ajuda. A pessoa me ajuda a fazer uma coisa que é interpretar o que eu escrevi, que eu não sei cantar. No caso da Melly, ela pegou o meu refrão e re-escreveu uma parte dele. A gente foi para o estúdio e ela mudou algumas coisas do refrão e depois escreveu aquele especial no final. Mas é isso, tipo, uma coisa que eu não cantaria, não conseguiria cantar, no máximo ia ficar horrível. E aí ela vem com toda beleza daquela voz. A música com o Lenine, por exemplo, era pra ser o Lenine ali. Não existia outra possibilidade que não fosse o Lenine gravando aquela música. Desde o começo imaginava, mas achava que era meio impossível de fazer. Porém, a gente foi atrás dele, trocámos uma ideia. E eu já tinha entrevistado ele, inclusive durante a pandemia… uma entrevista bem legal, quando a Lab Fantasma tinha um canal na Twitch, e a energia tinha batido legal. Então, quando fui trocar ideia, foi muito legal, ele foi muito receptivo, adorou a música e depois até me cobrou de gravar um clipe. Então eu tô devendo até pra ele… uma hora a gente grava essa. A do Péricles… pô, mano. É só ouvir a música. E da Lagum o mesmo caso… É uma coisa que eu gosto muito dos feats. que eu faço, sinceramente… de não passar uma sensação — pelo menos é o que eu sinto, eu sei que eu sou suspeito, mas também tenho uma visão crítica da minha própria música, e da música no geral — de superficialidade, no sentido de… podia ser qualquer pessoa cantando isso aí que ia ficar do mesmo jeito, tá ligado? Acho que a maioria das pessoas quando viram o nome do Péricles na tracklist imaginou que a gente ia fazer um samba. E aí, chega ele cantando num blues com soul, que tem um violão pra trazer um pouco da brasilidade. A gente pôs um cavaco também que dá uma força ali no próprio violão. Mas é um bagulho vagabundo, né? [Imita o suingue do violão] É um bagulho meio Jorge Ben, meio Hyldon. Vai pra esse lado mais soul da coisa do Brasil. O próprio Péricles não tá no lugar de conforto dele, tá ligado? A gente trouxe ele mais pra perto do nosso universo. Enfim, a música que manda… Porque eu penso no feat. não só tipo assim: “Ah, vamos fazer uma música com fulano de tal porque vai bombar.” Tipo, é inegável que uma música com Péricles ou com o Lenine vai bater pra muita gente. Mas eu penso em fazer um bagulho que seja uma obra grandiosa, uma peça de arte, um bagulho que faz sentido à existência.

Não é algo só de oportunidade, no sentido de colocar alguém porque vai chamar atenção. Tem um propósito de estar ali.

Exato! Porque é arte. E graças a Deus hoje eu tenho acesso a essas pessoas, eu consigo falar com esses caras e com essas minas, desse tamanho da música brasileira. Demorei muito pra chegar nesse ponto aqui, tá ligado? Antes eu só sonhava com essas coisas. Passei a vida sonhando com vários desses feats. e agora eu tô conseguindo realizar vários deles. Mas é isso, sempre foi pela arte, não só de “vamos fazer uma música aqui pra bombar”, tá ligado? Até porque se fosse pra bombar a gente faria outra música, não faria as músicas que fizemos ali. Faria de outro jeito. Mas é um bagulho pra fazer uma obra porque é eterna. Quando forem estudar os anos 2000, 2010, 2020, daqui a 60, 80 anos, sei lá, esses discos vão estar aí como peça de estudo. Vai servir para o entendimento das pessoas do que era o Brasil de agora, desse momento aqui. Então é isso, é um pouco do retrato que a gente tá tentando pintar pro futuro também. 

Você trabalha muito com discos conceituais. Geralmente os singles aparecem pontualmente e logo depois vem um disco que fecha tudo. Tem preferência mais pelos álbuns do que soltar apenas singles e videoclipes?

É isso. Você resumiu. Eu prefiro, porque eu gosto muito de discos e porque acho que tem a ver com a nossa cultura também, de comprar vinil, de descobrir os álbuns. Você vai lá, às vezes você compra um disco pela capa, às vezes você compra um disco pelo artista… às vezes você nem conhecia tal disco, mas você compra porque sabe que o artista é bom. Ou você compra o disco pelos músicos que tocaram. De certa forma, eu tenho apego com o álbum, de criar uma peça, um corpo… Vamos dizer que, mais do que necessariamente chamar de álbum, porque pode ser que daqui a pouco esses nomes mudem e pare de fazer sentido por causa do mercado, da forma que a música é distribuída. Mas eu gosto dessa coisa de criar um corpo que a pessoa vai ouvir vários sons, pode ser que ela tire as prediletas dela e coloque em sua própria playlist, pode ser que ela sempre volte porque também gosta disso. Então tem a ver com a continuidade de uma cultura também. Eu gosto de fazer singles também, mano. De certa forma, o single acaba sendo mais fácil de você espalhar por aí. Você toma menos tempo das pessoas. Mas quando eu vou fazer um disco, eu tento criar uma mentalidade de fazer um single pra todas as músicas dele, tipo: “Vamos pensar as músicas do disco como se elas tivessem sozinhas no mundo.” E quando a gente junta todas, elas fazem sentido uma do lado da outra. Esse lance de não ser só um compilado de singles, eu acho que é importante, tá ligado? Eu acho que tem discos por aí que são grandes compilados de singles, que não tem exatamente um conceito. Mas isso também não é a coisa mais fácil de se fazer. Tem artistas que conseguiram essa proeza, porém não é a coisa mais fácil de se fazer. Eu acho que a maioria dos grandes álbuns que a gente tem aí possui um corpo pensado. Pra falar da nossa cultura e do maior exemplo, você pega o Kendrick Lamar, por exemplo, vai entender como ele pensa os discos. É um malandro que passa, segundo as palavras dele mesmo, mais tempo, às vezes, tentando achar a ideia do próximo disco do que fazendo o próprio, tá ligado? Porque fazer música, como diz o Emicida, é a parte mais fácil. O difícil é você encontrar os porquês: “Por que eu vou falar isso agora? Com quem eu vou me comunicar? Pra que lado eu vou?” Então, é sobre pensar numa obra que tem um corpo sólido, robusto, que vai ficar.  Porque uma coisa que eu gosto de pensar é que vai ficar pra sempre. É a sua contribuição pra eternidade.

Pensando nisso, hoje em dia, na sua visão, está faltando os artistas pararem pra pensar no que fazer, tipo, pensar no projeto do álbum para depois criá-lo. O que a gente mais vê é artista criando para alimentar o mercado. Assim, tem que soltar um single nesta semana, o segundo na semana que vem, depois vem o EP e no outro mês já tem um álbum… e na sequência vem um álbum deluxe. Tá faltando parar para respirar e arquitetar tudo antes?

Eu acho que tem muitas coisas acontecendo e muita gente tem culpa nessas muitas coisas, vamos colocar assim. Tipo, é difícil culpar uma pessoa só, tá ligado? Personificar a culpa num ser só. Mas por exemplo, muita gente lança música… a última pesquisa aí de uns dois anos atrás, se não me engano, indicava que 80 mil músicas são lançadas todos os dias. E dessas 80 mil músicas, se não me engano, por volta de 18 mil não tem um play sequer. Ou seja, nem a pessoa que colocou lá deu um play pra ver se estava lá. Também deve ser muita música de catálogo, de artista que subiu o catálogo, de repente… Mas assim, 80 mil músicas por dia. Tem um bilhão de artistas bombando e tudo mais. Mas por que a gente tem poucos álbuns que a gente fala assim: “Esse disco é o disco.” Eu acho que isso sintetiza muito da ideia. Mas aí tem uma coisa de mentalidade e tem uma coisa geracional. Com o geracional eu quero dizer o quê? Tem muitas pessoas começando agora e já bombando… muitos artistas que são novos de idade, novos de tempo de música, novos de carreira, mas já estão aí bombando. A gente quando novo lançava música pra caramba também, tá ligado? Tanto que eu lancei três mixtapes em três anos. Aliás, um EP com nove músicas, uma mixtape com 15-16 músicas, outra mixtape com 20 músicas e mais uma mixtape com umas 15 músicas também, e depois no outro ano ainda teve um EP com o Kamau com 6 músicas. Então, em 5 anos, olha o tanto de música que nós pôs na rua. Naquele começo era mais um compilado de várias músicas. Quando você é jovem de tudo na carreira, as ideias estão caindo pelos ouvidos, pelo olho, assim, e você precisa fazer aquilo funcionar. Hoje você pega tudo isso, esse impulso que você já tem e aí mistura com uma mentalidade que as plataformas impuseram na música. É uma mentalidade que trata a música como conteúdo, como se fosse postar uma foto no Instagram, tá ligado? A plataforma tenta, de certa forma, colocar essa mentalidade sobre a obra musical. E se você passar muito tempo sem lançar uma música, o seu perfil vai perder o engajamento nas plataformas e você precisa estar sempre lançando, sempre movimentando ali. Não é à toa que o próprio Spotify agora tem shorts pra você postar vídeo lá também, pra você ficar se comunicando com seus fãs. Então, da parte da indústria tem isso, uma tentativa de implantar um pensamento de conteúdo. Do outro lado ainda tem os charts… Por exemplo, você pega uns anos atrás os discos do Migos. Os caras faziam disco com vinte e poucas músicas, meio que para bater os charts porque vai ter muito play no disco e ele vai parar lá em cima no topo dos charts, tá ligado? E isso começou a se espalhar, virou uma praxe fazer disco com muita música. Não tinha uma preocupação de fazer a música exatamente dar certo. Estavam preocupados naquele primeiro momento, em muito play, charts — e charts é dinheiro, posição nas paradas e muito show. Eu tô falando três aspectos, mano. Mas se você sentar aqui na sala da minha casa e juntar todos os meus amigos pra trocar ideia sobre isso, a gente vai passar vários dias e várias noites debatendo isso. Então, tem muitas culpas aí. O próprio algoritmo educa o público a escutar as mesmas coisas.

De que forma?

Eu sou um usuário ferrenho de YouTube, consumo muito. Mas eu ouço muitas coisas, então eu coloco, às vezes, vídeos longos de entrevistas de artistas que eu admiro, de histórias, de política… coloco, fecho, não fico assistindo, fico ouvindo, tá ligado? E aí, de tempos em tempos, eu percebo que alguns canais somem. O YouTube começa a me entregar só as mesmas coisas. Parece que só tem três, quatro coisas no YouTube inteiro. Você fica cercado ali. Eu estou falando isso pra exemplificar o quê? Se a pessoa não se coçar pra pesquisar coisas novas também, ela vai ficar na mesma rodinha de sempre. Ela vai ouvir só as mesmas coisas, inevitavelmente. Por outro lado, o fluxo de informação das redes sociais deseduca o nosso pessoal a pesquisar música. Então não é só culpa da pessoa, não é só a pessoa que é preguiçosa, mas é o que ela tá habituada. É o passarinho que vem trazer comida na minha boca todo dia e agora eu não sei sair pra caçar minha própria comida mais. 

Mas qual efeito isso gera ou vai gerar futuramente nas carreiras?

Eu não sei… Eu sei que nos últimos anos a gente já viu alguns artistas que experimentaram o topo do mundo e sumiram. Tiveram uma baixa repentina dentro do próprio rap. E se você abrir isso para a música brasileira, se você abrir isso para a música mundial, então, a gente teve muitos artistas que fizeram muito barulho e sumiram porque estão dentro dessa mentalidade. Eu penso que os álbuns… E não é nem só o álbum, porque parece que o segredo é o álbum… mas é um olhar mais sensível para a carreira, um olhar mais sensível para a música, uma percepção, uma atenção maior para as coisas que você vai fazer. Pra você conseguir colocar o tijolinho lá na parede da sua construção. Assentar o tijolinho, colocar ele, passar o cimento nele e falar: “Agora o tijolo tá firme, bora botar o próximo tijolo”. Eu acho que a gente não tá construindo as coisas dessa maneira. É muito perigoso porque é fácil e muito sedutor botar a culpa nos artistas novos. Mas não é um bagulho que é só culpa deles. É culpa de muita gente. Todo mundo tem uma parte de culpa aí, inclusive os artistas velhos. Todo mundo tem sua parte de culpa nessa mentalidade da música de hoje. Inclusive, estava lendo uma matéria (na Billboard Brasil) de um empresário de dentro do rap falando que é legal, porque a música agora é de graça, tá ligado? A música não é de graça. A música não pode ser de graça, porque a gente vive da música. A gente vive disso. Aí, a pessoa que tem um bilhão de streams no mês e vai ganhar 20 mil reais, sei lá. Isso não faz sentido, não faz sentido essa conta não fecha… Além de virar uma máquina de estraçalhar artista pequeno, não permite que as carreiras se desenvolvam, tá ligado? Porque você precisa ter muita coisa para ganhar uma quantidade razoável de dinheiro. Razoável é ser muito bonzinho, não é razoável. Então é um bagulho muito absurdo, essa impressão de que a música é de graça tá errado, não é assim, não pode ser assim. As pessoas comem… Eu tenho 20 e poucas pessoas na minha equipe que dependem da minha movimentação pra comida ir parar na mesa delas. Então, precisa de um olhar sensível e atencioso.


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