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Fotografia: sebjjp
Publicado a: 14/10/2021

No início de uma caminhada que se prevê longa e próspera.

Raquel Martins: “O The Way é sobre essa ideia de caminho, de identidade e de propósito”

Fotografia: sebjjp
Publicado a: 14/10/2021

Cresceu com discos de música brasileira e cabo-verdiana (e, também, de jazz) e a ouvir o hobby do avô. Aos 17 anos mudou-se para Londres com o simples propósito de estudar guitarra; hoje, com 21 anos, Raquel Martins apresenta The Way, o seu muito promissor primeiro EP, em estreia no Rimas e Batidas — amanhã sai oficialmente nas restantes plataformas.

Figura crescente na febril comunidade jazz londrina, encontramos neste seu primeiro trabalho motivos mais do que suficientes para estarmos não só atentos a um futuro que se antevê brilhante como para querermos, desde já, conhecer o seu presente.

Numa longa conversa, tão natural e genuína como Raquel gosta que a sua música seja, aprendemos que não há nada mais bonito do que ser fiel a nós mesmos, que o sentimento de partilha e comunidade é algo profundamente forte e inspirador e que este é um trabalho de descoberta de si mesma. A forma como onde vive a influencia, a posição do Brasil no jazz londrino e os motivos que levaram a pisar solo inglês são também coordenadas de um diálogo que termina a pensar a influência da imagem na música.  

No final acabamos a reflectir sobre o seu futuro risonho, pelo menos é nisso que acreditamos. Vai uma aposta?



Amanhã sai o teu primeiro EP, o muito aguardado The Way. Antes, fechaste um programa do Jamie Cullum para a BBC Two e tocaste para a Worldwide FM do grande Gilles Peterson. Como está o sonho de menina em relação ao que era quando começaste esta aventura?

[risos] É giro, porque eu vim para aqui a pensar que se calhar ia ser guitarrista ou algo assim. Quando és conhecido por uma coisa, às vezes é um bocadinho assustador tentar coisas novas. Foi assim quando comecei a produzir, até porque normalmente não vês mulheres a fazer isso. Agora sinto-me mais confiante e acredito que vai correr bem. Acima de tudo, sinto-me contente por conhecer pessoas com quem me identifico, que são genuinamente amigas e que me fazem sentir que há espaço para a minha música. Acho que isso é o mais importante, mais até que esses contactos todos. 

Em breve também começo a gravar um novo EP. Já estou a escrever umas coisas novas e estou mesmo muito entusiasmada com a ideia de fazer mais música. 

Estavas a falar dessa ideia de ser guitarrista, e sei que tens dado concertos enquanto guitarrista da Poppy Ajudha, mas a verdade é que tens uma voz que se realça muito. Sempre cantaste? 

Sim! Para mim é natural, mas, não sei porquê, sempre tive um bocadinho de vergonha e, como comecei a ser conhecida por tocar guitarra, acabei por esconder-me um pouco atrás disso quando era mais nova.

Quando acabei o curso é que percebi que mais valia ser eu mesma, porque todos aqui são óptimos, percebes? Eu acho que nunca quis ser uma instrumentista pura. Gosto mais de estar assim um pouco no meio, como o Oscar Jerome, por exemplo. Ele também toca muito bem guitarra e uma vez disse-me uma coisa que é verdade: às vezes ficamos presos naquela ideia de que tens de ser o que estudaste. Mas eu acredito ser muito mais interessante uma pessoa estar sempre a mudar e a surpreender-se. E hoje percebo bem que ser instrumentista não era o meu caminho. 

E sobre o que a Raquel quer cantar?

O The Way está muito ligado à questão de identidade. Eu agora tenho 21, mas mudei-me quando tinha apenas 17 e foram uns aninhos para perceber quem eu era. Eu adoro psicologia e desenvolvimento pessoal e acho que tudo nele fala disso, de emoções, de como lidar com elas. Como deves imaginar, chegar aqui com aquela idade é sempre um bocadinho agressivo. Tive de aprender a lidar comigo, e acabas sempre a escrever um pouco sobre o que estás a passar. Este EP, no geral, é sobre essa ideia de caminho, de identidade e de propósito. 

Estavas de certa forma a apresentar-te? 

Se calhar, mas não para os outros, definitivamente não para os outros. Foi apresentar-me a mim mesma, no sentido de estar a afirmar quem sou. 

O que levou a Raquel a fazer música? E pergunto isto, porque de uma forma interessante o The Way fez-me pensar no movimento downtempo dos Zero 7, dos Jazzanova… projectos que eram fundamentais exactamente há 21 anos.

A sério? Nunca me disseram isso, é interessante. O que levou a Raquel a fazer música? O meu avô tocava como hobby. Tocava baixo, tocava tudo, sempre numa onda jazz. Então lembro-me de ir a casa dele e ouvir discos, muita música brasileira, muito jazz, muita música do mundo, Cabo Verde… Esse lado foi sempre influenciado por ele. Acabou por ser algo um pouco natural. Comecei a tocar guitarra quando tinha 8 anos e desde aí sempre tive essa vontade de fazer música. Ainda por cima sendo filha única, uma pessoa acaba sempre por passar um pouco mais de tempo sozinha. Ser músico é giro.

Os meus pais ainda tinham aquela esperança que passasse, mas acho que acabou por ser algo perfeitamente natural para mim. Em Portugal, às vezes condicionas as tuas escolhas de trabalho com base nas hierarquias das profissões, existe muito isso. Aqui em Londres é algo completamente normal, algo visto como financeiramente estável. Se calhar estava-me a sentir um pouco contra o sistema, enquanto que aqui era perfeitamente possível.

E foi por isso que foste para Inglaterra? 

Sim e também pelo estilo de música. Isso também foi uma influência, ouvia muito o que se fazia aqui. Lembro-me que o Tom Misch tem uma playlist no Spotify chamada “Real Good Shit” e foi lá que descobri os Hiatus Kaiyote, o Robert Glasper, esse pessoal todo. Fiquei abismada. Só agora neste Verão é que percebi que mesmo no Porto há pessoas incríveis a fazer este tipo de música. 

Verdade seja dita, isto ainda é um movimento relativamente recente, que explodiu há pouco mais de um ano. Nessa altura já estavas em Londres.

Sim, eu mudei-me para aqui já faz quatro anos. 

Nós aqui no Rimas e Batidas até demos o nome de JazzNãoJazzPT a este movimento, mas é algo ainda tão recente que me lembro de falar com os YAKUZA e eles ainda rejeitarem um pouco esta ideia de movimento. Acreditavam que ainda estava tudo muito espalhado, e que sobretudo esta era uma geração de músicos de jazz, que com os BADBADNOTGOOD e com o jazz londrino, perceberam que podiam ter uma banda e fazer coisas diferentes. 

Pois, isso é um pouco o que me atrai. Eu antes pensava muitas vezes que gostava de música brasileira, de jazz, de hip hop, mas não sabia muito bem o que fazer com isso.

Eu não me mudei para Londres a pensar que ia ser uma artista sequer, apenas vim estudar guitarra. Depois descobri projectos que misturam isso tudo e foi isso que me fez ver que também conseguia misturar estas influências todas. Eles estão imensamente abertos a estes estilos novos e isso influenciou imenso o meu processo criativo.

E é o poder do nicho, não é? Em Portugal também existe, mas aqui ganhou uma dimensão enorme. Eu acho que as pessoas agora preferem ir a jams em vez de discotecas. O jazz está super dançante, super apelativo para os jovens, muito groove-based, afrobeat, está a crescer mesmo muito. 

Curiosamente, eu ouço a tua música e ela tem groove, mas é bem mais lenta, não tão dançável e, sobretudo, é cantada, algo que nestes projectos britânicos não existe muito. Ou, quando existe, é muito direccionado a uma base hip hop e não para o neo-soul, como fazes no teu EP. 

Pois, eu sei. E é verdade, não é algo muito presente neste estilo de música. Por acaso vou ver agora o Oscar Jerome, que é alguém que também canta, mas é uma verdade. Eu tenho noção que o afrobeat aqui é uma coisa muito mais trendy, mas tenho de ser eu mesma. Cresci com a música brasileira, e nem tenho o objectivo de soar como a cena londrina. Quando começas a colocar a cabeça mais nessa ideia de produto e no que sabes que bate, tornas tudo menos genuíno e novo. 

Eu sei, conscientemente, que à minha volta não há assim muita música brasileira, não há muito essa influência. Mas eu também tento usar isso ao máximo, até porque eu sei que a música brasileira, apesar de ter crescido com ela, não é nossa. Estamos ligados a ela pelas razões erradas. Não é para ser super política, mas é uma tentativa de dar um pouco em troca, quero ajudar um pouco a cultura. Tenho total noção que estou a apropriar-me dela.

Interessante dizeres isso de não sentires essa influência do Brasil. Na última #ReBPlaylist falei sobre o peso cada vez maior do Brasil nestes jovens do jazz. Dei o exemplo do encontro entre o Tom Misch e o Marcos Valle, mas podemos também olhar para o novo álbum dos BBNG que está carregado de colaborações com o Arthur Verocai. Não tens a sensação que estão a começar a dar essa abertura? 

Pois estão. Pessoas como o Tom Misch ajudam muito nisso, parece-me ser algo muito genuíno da parte dele. Estava agora a pensar na Lianne La Havas, que sei que gosta de música brasileira, e consegues ouvir isso no seu último disco, e é uma influência gigante, até porque cresci sem ver uma rapariga a tocar guitarra e sempre que a vejo fico rendida. E a bossa nova é um género que vem do jazz, aquelas harmonias e isso.

Eu sinto que a música brasileira está prestes a “rebentar” aqui em Londres, está ali mesmo quase. Eu penso até que os Bamba [Orquestra Bamba Social] vêm aqui tocar em breve.

No meu caso, a minha ligação com a música brasileira até já se deu mais em Inglaterra. Quando sais do teu país, és um bocado forçado a pensar e a questionar esta ideia de identidade, de perceber quem és, de te agarrares às tuas origens. Isso fez-me perceber que tenho um background que eles não têm, e que pode ser algo bom para mim. Mas não quero que seja consciente, não quero estar a pensar que no meu próximo EP tenha de escrever obrigatoriamente música brasileira.

Nesta altura, o jazz também é, talvez, o maior meio de inovação na música, sobretudo se pensarmos na música inglesa. É fácil perceber a ligação com o hip hop, é impossível tirar o jazz do rock de bandas como os Black Midi e dos Black Country, New Road, na electrónica tens o jazz super presente, por exemplo, no Floating Points. E são todos, se calhar, os nomes mais inovadores dos seus géneros. 

Eles são todos músicos de jazz. Também tem a ver com ser uma forma de educação, há aqui muitos programas e é natural que venham todos desse background. Mas o que acho importante é que as pessoas não sejam “quadradas”. O jazz sempre foi uma forma de inovação. Sempre foi o improvisar e uma tentativa de criar algo novo. Eu identifico-me com esse espírito. A minha música nunca vai ser jazz “tradicional”, porque eu valorizo muito essa ideia que a música não seja algo previsível. 



Vamos falar do tema que estreias amanhã e que fecha o EP. Isto porque apresentas a “Untrue” como sendo muito influenciada pelo afrobeat, o que é uma novidade. 

Acabou por ser algo natural. Eu passei por uma fase em que ouvia muita música do Mali, do Ali Farka Touré, principalmente em guitarra, do Oeste africano. Eu adoro bandas como os Kokoroko, por exemplo. E é um bocadinho óbvio, porque afinal de contas tenho amigos aqui de toda a parte, de todos os países possíveis, e é normal que comeces a ficar influenciado por isso. Acabou por não ser nada forçado. Também tive um professor que era da Nigéria e comecei a perceber melhor a história por detrás, porque, para mim, isso é essencial e algo que me interessa. Se vou usar um estilo musical, tenho de perceber qual é a sua história. 

Podemos, então, ter mais músicas assim no futuro?

Não sei, eu tenho muito este cuidado com as culturas. Ainda não sei bem. É um bocado inconsciente e acho que o que ouves acaba por se refletir. Por exemplo, adoro música de Cabo Verde, vai sempre sair um bocado disso. E se o pessoal que está à minha beira toca um tipo de música, isso também me vai influenciar. O facto do sítio onde estás influenciar aquilo que fazes, é algo mesmo bonito. Se tivesse ficado em Portugal estaria a fazer outra música.

Sentes muito essa diferença do que fazias antes em relação ao que fazes agora? Não sei se já compunhas antes de viveres em Londres.

Já compunha, sim. É uma necessidade de expressão. Eu sei que se tiver um dia em que não estou a perceber muito bem as minhas emoções, ou que não estou a conseguir lidar com elas, eu automaticamente pego na guitarra. E é nessas alturas que percebo que é por isso que faço isto. Claro que há todo o lado do negócio, mas a razão é genuína e é exactamente igual àquela que tinha quando escrevia aos 13 anos. É algo importante a não esquecer.

Estiveste há pouco tempo em Portugal. Como é que foi esse regresso?

Estive, mas foi mesmo pouquinho. Foi só uma data, um concerto na Quinta do Valado, para um evento chamado  Festival Dá Corda. Foi assim uma coisa mais lowkey. Mas estou a tentar fazer algumas datas em Portugal no próximo Verão, talvez uns festivais. Estou a falar com algumas pessoas. Foi sobretudo para estar com os meus pais. Sabes quando já não vives com os teus pais e depois voltas? Foi bom, mas já tinha algumas saudades de Londres também.   

Tens estado por dentro desta nova onda jazz nacional, destes nomes emergentes do JazzNãoJazzPT?  

Tenho, no Porto, sobretudo na Jazzego. Gosto muito do que eles estão a fazer, e quero mesmo colaborar com eles. Eu dou-me muito bem com o Minus, e o Ricardo Danin esteve aqui a estudar também, e é um grande amigo meu. Gosto imenso do trabalho do AZAR AZAR, embora nunca o tenha conhecido, mas estamos a planear conhecer-nos no futuro. Queria também muito ir a Lisboa, conhecer algumas pessoas de lá. Acho importante criar essa conexão, mas acho que é mais fácil se as coisas correrem bem por aqui, e fazer depois a transição para Portugal.

Podemos, então, esperar uma colaboração com a Jazzego?


Eu queria muito. Acho que é importante. Ainda por cima, no Porto, que é a minha cidade. 

Vais tocar agora num festival onde vai estar o Gilles Peterson também. Sabes se ele já reagiu à tua música?

Sim, já. Eu mandei a minha primeira música e ele disse algo como “sweet samba vibes… Great tune”. Eu adoro o trabalho dele e ele é super importante para o movimento, já passei por ele em jams e a Poppy Ajudha, para quem toco, mas eu quero que as coisas aconteçam naturalmente.

Uma coisa interessante é que falas sempre em guitarra, mas aquele estúdio que vemos no vídeo do Worldwide FM está bastante preenchido de sintetizadores.

Esse estúdio é de um grande amigo meu chamado Esa Williams. Ele até conhece o AZAR AZAR e isso. Tem-me ajudado bastante, tem sido alguém muito importante para mim. Criamos uma relação muito próxima, temos feito algumas coisas juntos. Fizemos agora uma banda sonora para um podcast que ele lançou este ano, dedicado a África do Sul e a questão do negócio do rinoceronte. Ele é de lá e é um podcast mesmo muito bom. 

Mas compões também em sintetizadores?

Ah sim, sim! Eu até nem penso que a minha música é super guitar-based. Eu componho em piano também, até porque quando acabei a universidade tive ali uma fase em que estava um pouco cansada da guitarra. Mas eu até começo a escrever muito com a percussão. Eu também programo bateria, baixo às vezes. Por acaso queria agora comprar um sintetizador mesmo, porque eu uso muitos programados. Há uns dias fiz download de um ficheiro gigante de sons da Amazónia, sons que alguém foi lá gravar, e comecei a escrever muito com esse mood de sons de selva e isso. Gostei imenso. Uma pessoa tem de ser aberta no processo criativo, não é? Eu acho que é bom quanto te desafias um bocadinho, e começas por escrever algo diferente. 

O meu processo é muito de; eu escrevo uma música, produzo, toco os instrumentos todos e depois dou à banda para eles fazerem a cena deles. Mas eu gosto de fazer os arranjos, até porque sou um pouco control freak

Só para terminar esta conversa, gostava de pegar em algo que reparei e não sei se é derivado à tua presença num mercado maior, mas notei que tens uma preocupação muito presente na componente visual do teu trabalho, de uma forma pelo menos maior do que geralmente encontramos aqui em Portugal, sobretudo para alguém que ainda está agora a lançar o seu primeiro EP. É algo que realmente te preocupa?

Sim, eu gosto disso. Eu tenho muito esse cuidado com capas e isso, a maneira de vestir. Isso também é uma forma de expressar. Eu acho que é algo fixe, e que é algo que faz parte de mim. É também uma forma de expressar outro lado da minha música. Eu vejo a capa como um outro nível adicional, algo que também te faz ficar agarrado ao produto. Isso pelo menos acontece comigo, para mim, faz todo sentido. Eu adoro arte, adoro moda também. É muito bom teres referido isto, fico muito feliz por se notar isso. 


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