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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2022

A primeira pedra.

Rapública: a história (resumida) da compilação que retratou o início do rap português

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2022

28 anos após ter sido lançada, Rapública volta ao mercado numa edição em vinil. A editora Sony Music Portugal decidiu reeditar a mítica compilação que é muitas vezes apontada como o ponto de partida do rap português — embora tenha sido apresentada no mesmo ano em que foram editados os discos PortuKKKal, de General D; e More Than 30 Motherf***s, dos Da Weasel, nesse já longínquo 1994.

A história, por definição, é a ciência que estuda os acontecimentos desde que existem registos escritos. Antes disso, portanto, referimo-nos à pré-história. Nesse sentido, podemos apontar 1994 como o primeiro ano da história do rap em Portugal — mas já havia indícios pré-históricos, lá está, da presença de rimas e batidas por cá desde meados dos anos 80, quando a moda do breakdance (e respectiva música) invadiu a Europa e Portugal não foi exceção. Organizaram-se competições em danceterias de várias zonas do país e inúmeros jovens promoviam encontros espontâneos para treinarem os movimentos de dança.

Foi assim que alguns dos pioneiros do rap em Portugal descobriram o que era a cultura hip hop e deixaram-se contagiar por esta música vibrante oriunda de Nova Iorque — muito provavelmente antes de compreenderem a importância da palavra neste género musical, até porque muitos dos grupos musicais associados aos cocletivos de breakdance focavam-se sobretudo na estética e na sonoridade.

Apesar de já haver um ou outro tema de rap a passar esporadicamente na rádio em Portugal — sobretudo porque falamos do tempo das rádios pirata — em 1986 inicia-se um programa que seria determinante para divulgar algum rap junto dos poucos jovens que se estavam a apaixonar por esta cultura. Falamos do Mercado Negro de João Vaz, programa do Correio da Manhã Rádio, que influenciou os tais jovens que, na altura, não tinham acesso a informação, a videoclipes, a discos ou a revistas. Restava-lhes o pouco que chegava via comunicação social ou as cassetes gravadas por amigos ou familiares que chegavam dos países francófonos ou da base militar aérea das Lajes, nos Açores. 

Uma das zonas da Grande Lisboa onde se desenvolve uma maior comunidade de ouvintes fascinados pelo hip hop é no Miratejo. É ali, naquele bairro periférico da Margem Sul, muito povoado por famílias relativamente pobres e com uma grande presença de imigrantes vindos das antigas colónias africanas, que uma série de jovens forma — por volta de 1986 ou 1987 — os B-Boy Boxers. 

Eram um grupo alargado de amigos que faziam rap na rua, ao som de beatbox, e começam a usar este nome para os representar. Identificavam-se com a mensagem, a atitude e a energia dos rappers americanos. De certa forma, é a crew original e antecessora de outros grupos que se formariam pouco tempo depois, e que também nunca gravaram nem editaram qualquer música — como os Machine Gun Poetry, African Power, One Equal, Rebel Gang ou The New Decade. Mas também dos Black Company, Líderes da Nova Mensagem e General D — que fizeram parte dos B-Boy Boxers e de outros dos grupos mencionados. 

Durante vários anos, o rap existia enquanto cultura oral de rua, sem quaisquer músicas gravadas nem acesso a instrumentais. Mas isso não impediu estes jovens de começarem a fazer actuações em clubes, sobretudo em matinés, com recurso a microfones e a caixas de ritmos. Outro dos nomes que aparecem nesta altura e que é vital na evolução da história do hip hop em Portugal é Boss AC. É Ângelo César Firmino, rapper lisboeta de pais cabo-verdianos, que começa a organizar, mais ou menos a partir de 1991, as famosas festas de hip hop no Trópico, uma discoteca que existia na zona lisboeta de Santos. Costumavam actuar vários grupos nestes eventos e quase todos os artistas da região de Lisboa que já se encontravam no activo nesta altura passaram por lá.

Certo dia, a ideia de criar uma compilação que reunisse estes talentos emergentes surgiu entre Tiago Faden, que trabalhava na Sony Music Portugal, e o empresário da noite Hernâni Miguel. O primeiro era cliente habitual do segundo, e foi quem sugeriu o projecto. Além de gerir espaços nocturnos, Hernâni tinha feito produções culturais e passava música como DJ. Um dos seus sócios era o responsável pela loja de discos Contraverso. Acabaria até por se tornar manager de alguns artistas, entre eles Black Company, Da Weasel, Ithaka, Blackout, as Djamal e Boss AC. Hernâni Miguel conhecia a família de Ângelo Firmino — tinha estudado com um dos seus irmãos e era amigo de infância de outro. Eram vizinhos na Rua de São Paulo.



Quase todos os artistas que participariam em Rapública gravitavam em torno de Boss AC — por causa dos eventos que este organizava. Houve mesmo um festival de rap no Trópico, a 27 de Fevereiro de 1994, com quase todos os nomes que depois seriam convidados para a compilação. É o caso do próprio Boss AC, dos Black Company, Líderes da Nova Mensagem, New Tribe, Zona Dread e Family. O outsider seria Funky D, que tinha participado no programa Chuva de Estrelas e havia conquistado algum protagonismo, pelo que foi convidado a participar no disco. Da lista de participantes, vários deles construíram depois carreiras a solo ou noutros grupos. Todos foram convidados por Hernâni Miguel por sugestão de Boss AC.

A capa, concebida pela companheira de Hernâni de então, Célis Correia, representa os subúrbios da capital portuguesa — a origem de todos estes artistas. E não era coisa pouca: na altura, as periferias eram ainda mais estigmatizadas. Cada um participou com dois temas, sendo que muitos deles escreveram letras em português e inglês, numa altura em que a transição para a língua lusa estava a decorrer (o impacto de Gabriel O Pensador seria determinante para provocar essa mudança em Portugal durante o ano de 1994).

Curiosamente, o resultado foi uma compilação relativamente diversa. O grande tema que ficou foi “Nadar”, dos Black Company, que podemos considerar o primeiro hit do hip hop tuga. Especialmente depois de o seu refrão ser usado como slogan político para salvar as gravuras de Foz Côa. “As gravuras não sabem nadar”, declarou a escola secundária local já em 1995, sobre aquele que foi um controverso caso nacional. O próprio Mário Soares, presidente da república de então, usaria a expressão num discurso. Foi a única faixa que teve direito a videoclipe e lançou a carreira profissional dos Black Company, que se tornaram estrelas a partir daquele momento.

No mesmo disco havia mensagens fortes de anti-racismo, numa altura de tensão em que o tema estava bastante presente na opinião pública. E em Rapública havia relatos em primeira mão de jovens racializados sobre o assunto, algo pouco comum para a época, o que também aumentou o interesse e a curiosidade em torno do disco, contribuindo para o tornar mediático. Era a força e ousadia da segunda geração de imigrantes africanos. Falamos dos casos de “A Verdade”, de Boss AC; ou “Só Queremos Ser Iguais”, dos Zona Dread.

“Rabola Bô Corpo”, um tema festivo e em crioulo dos Family — com sonoridades ragga — tornar-se-ia um dos mais tocados nas discotecas africanas. “Rap é uma Potência”, dos Líderes da Nova Mensagem, também chegou às rádios. Os New Tribe (de Mr. Jam e Lince), Líderes da Nova Mensagem e Boss AC terão sido os pioneiros a usar samples.

Contudo, a Sony acabou por não dar as melhores condições ao projecto. Todos estes jovens músicos, que não tinham qualquer experiência profissional e que, na grande maioria, nunca tinham entrado num estúdio, tiveram apenas dois dias para gravar a sua parte no disco. E o processo aconteceu em estúdios diferentes, com produtores distintos, que naturalmente também nunca tinham trabalhado com hip hop. Isso deixou muitos destes jovens artistas, que viam Rapública como um passo em frente no seu percurso — além de representar a sua validação, numa altura em que o hip hop era visto como uma moda passageira, além de ser um género marginalizado —, algo amargurados com a compilação. 

Ainda assim, Rapública teve impacto e sucesso comercial — tendo vendido pelo menos 15 mil cópias nos primeiros tempos. Terá sido um dos fatores determinantes que contribuíram para que, nos anos seguintes, várias editoras grandes apostassem em rappers locais. Alegadamente, a Sony teria mostrado abertura para que eventualmente os artistas pudessem assinar contratos para gravar discos, mas só os Black Company tiveram essa oportunidade com a editora. Também houve negociações com Boss AC, mas o rapper acabou por não aceitar as condições. O concerto de apresentação de Rapública aconteceu na antiga Gartejo, em Alcântara, o espaço que depois se tornaria o Paradise Garage. Ainda durante os anos 90, chegou a falar-se de um segundo volume da compilação, que seria para contar com temas de novos artistas, mas o projecto nunca seguiu em frente.

Dentro do movimento hip hop, a compilação causou alguma tensão, sobretudo junto de rappers que não foram convidados para participar no disco e que por isso não tiveram a mesma projecção. 28 anos depois, há coisas que podemos dar como certas: é o disco que coloca definitivamente o hip hop português no mapa e, embora não tenha correspondido à maior parte das expectativas dos artistas que participaram nela, é um marco que se mantém como um objeto de culto. Um retrato (bastante) cru do início da história do rap em Portugal.


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