LP / Digital

RA Washington / Jah Nada

In Search of Our Father's Gardens

Astral Spirits / 2022

Texto de Rui Eduardo Paes

Publicado a: 30/12/2022

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Uma escuta atenta a In Search of Our Father’s Gardens, resultado de uma parceria entre RA Washington e Jah Nada, convida-nos a repensar uma série de questões relativamente à música urbana dos nossos dias. No álbum ouvimos jazz, soul, trip-hop, dub e até rap, mas não com o tipo de mixing que havia na chamada fusão dos anos 1970 e mais tarde na música que se dedicou à colagem de géneros. Fosse assim e estaríamos defronte da mesma lógica formalista que, com o tempo, se foi esgotando. O que ouvimos são os materiais dessas formas que se associaram ao jazz, mas sem as cascas que as definem como tal. A dupla colocou de lado esses invólucros de estilo e mergulhou fundo nos factores comuns das músicas que nasceram da diáspora afro-americana. Já não se trata de “isto mais aquilo”, mas de uma inteligente exploração dos interstícios, de modo a que estes cheguem ao pleno do enquadramento musical, criando assim algo de bem distinto. É como se só agora tivéssemos realmente chegado ao século XXI.

Um outro aspecto se evidencia: em termos de composição e de improvisação (oiçam-se os solos de trompete e saxofone tenor, mais as duplas contrapontistas entre trompete e trombone) tudo é lento, muito lento, com padrões rítmicos repetitivos do contrabaixo (ou do baixo eléctrico) e da bateria, e com as vozes, os sopros, os sintetizadores, a guitarra eléctrica, o piano e a percussão (com destaque para o vibrafone) a envolverem-nos com inventividade e imaginação. O mote já não é o da criação de ambiências ou moods, aquilo que vinha definindo o “novo jazz”, e sim de situações, mesmo quando os temas que vêm a seguir seguem as coordenadas dos anteriores, utilizando inclusive um mesmo jogo de timbres. O mais surpreendente é perceber que essa estratégia é semelhante à do death metal ou do stoner rock, correntes que até nada têm que ver (ou será que têm?) com o que encontramos aqui.

Mais curioso ainda é verificar que é a harmonia, não o beat, a vertente que ganha maior destaque em cada faixa. A harmonia criada pelos synths, a guitarra, o piano e o vibrafone é o melhor do disco, com a particularidade de elementos de noise serem incorporados nela. Isto sabendo que, habitualmente, ou temos uma ou temos o outro. O jazz sempre oscilou entre opções harmónicas, não se fixando numa que se pudesse dizer exclusiva – nesta obra esse é um aspecto que parece finalmente resolvido.

Há algo, também, de Sun Ra nas peças cantadas, mas fica bastante claro que tal consiste numa referência e não num mimetismo securizante. Os vocais vão mais além: continuam o caminho aberto pelo imigrante de Saturno, mas levam-no para outros territórios e fazem-no abrindo espaço. Esta que é muito obviamente uma montagem de estúdio faz-nos sentir que estamos numa sala ampla e ressonante. O Coltrane da última fase anda igualmente por aqui como um fantasma, e ainda o Pharoah Sanders do período em que com ele esteve o cantor Leon Thomas, como bem o demonstram as letras de cunho espiritual. A diferença está em que as ditas são agora, com Washington e Nada, mais especificamente cristãs do que eram no ecumenismo dos dois lendários saxofonistas. 

O ano que agora termina pode ter sido mau para muita gente, mas que bom acabar com uma pérola como esta.


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