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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/05/2022

Uma festa "com propósito".

Ra Kalam Bob Moses: o baterista que encurta o caminho entre o céu e a terra

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/05/2022

Podemos chamá-lo por vários nomes. Quando este ouvidor o descobriu, na adolescência, foi identificado como Lonesome Dragon num disco surpreendente que só não é mencionado como um dos mais importantes da história do jazz devido à sua bizarrice (era o mais ovni dos ovnis que percorreram os céus da América no final da década de 1960) e ao facto de ter ficado na sombra de Escalator Over the Hill, simplesmente porque repetia algumas figuras na sua ficha técnica – a do incrível Gato Barbieri, logo para começar. Tinha como título A Genuine Tong Funeral, o protagonista das execuções era Gary Burton, vibrafonista agora retirado, mas a compositora foi a mesma daquela ópera em que jazz, rock, folk, experimentalismo e poesia (a de Paul Haines) se mesclavam: Carla Bley.

Reza a história que o dito músico teve “divergências estéticas” (ou seja, houve uma zanga, e ao que parece bastante brava) com Carla Bley, recusou que o seu nome de baptismo surgisse no álbum e assim ficou registado um enigmático dragão nos anais do jazz. Foi já como Bob Moses que o vimos crescer em duas tendências muito específicas do género musical, a fusão, com a banda The Free Spirits, formada a meias com Larry Coryell (presente em A Genuine Tong Funeral, de resto) e com Pat Metheny e Jaco Pastorius (tocou no fundamental Bright Size Life), e o free, ao lado de luminárias como Paul Bley, George Gruntz, Sam Rivers, Burton Greene e Gunter Hampel, entre muitos outros. Quando mais tarde passou a liderar os seus próprios projectos, estes cada vez mais marcados pela sua entretanto descoberta espiritualidade, já foi (tem sido) como Ra Kalam. Que quer dizer, segundo ele, “O Som Inaudível do Sol Invisível”. 

Pois é Ra Kalam “Lonesome Dragon” Bob Moses, um dos maiores bateristas de sempre no espectro das músicas criativas (quem o disse, com todas as letras, foi Hermeto Pascoal), que vamos ter este mês em digressão por Portugal, para concertos e oficinas de trabalho. Em formatos que só de ler fazem crescer água na boca: um grupo de baterias com Pedro Melo Alves e Vasco Trilla, a que foi dada a designação de Alma Tree, e a solo. Com uma particularidade no caso das apresentações ao vivo de Alma Tree: haverá sempre convidados. Na ZDB (Lisboa) e na Capricho Setubalense, a 24 e 27 de Maio respectivamente, serão eles os saxofonistas João Mortágua, Albert Cirera e Yedo Gibson. Na Sala Porta-Jazz (Porto), a 28, os sopros estarão a cargo de João Pedro Brandão, José Soares e Julius Gabriel. No Ermo do Caos (também Porto), a 31, soma-se às três baterias uma quarta, a de João Pais Filipe. As actuações a solo serão na Graciosa, em Lisboa, a 26, e no Solilóquio do Porto, a 29.



Basta verificar os trajectos de Pedro Melo Alves e Vasco Trilla para perceber que o que estará em causa nestas situações será o sincretismo estilístico entre o jazz e o rock (e ainda entre a música contemporânea e a livremente improvisada, by the way) de todos os três manipuladores de peles e pratos. Melo Alves tem dado largas a essa osmose de linguagens nos projectos The Rite of Trio, Omniae Large Ensemble e Conundrum e o luso-catalão Trilla é um improvisador que calha vir directamente do black metal, como está bem patente nos registos das bandas Phicus e Low Vertigo e nas suas associações em duo com Ferran Fages e em trio com Colin Webster e Michał Dymny

Quanto a Moses, confira-se o que fez com Henry Kaiser (More Requia), com este guitarrista mais Vinny Golia e Weasel Walter, o mesmo da banda de prog-metal-jazz The Flying Luttenbachers (Astral Plane Crash) ou com Darius Jones (Man’ish Boy), e recapitulem-se as suas colaborações com os irmãos Michael e Randy Brecker, Bill Frisell, John Scofield ou, mais recentemente, Vernon Reid, DJ Logic e John Medeski para podermos concluir que a largura de vocabulários será enorme. Aliás, este nosso visitante não é estranho à improvisação mais radical em que habitualmente encontramos Melo Alves e Trilla (e também o catalão Albert Cirera, o brasileiro Yedo Gibson e o alemão Julius Gabriel), a trans e pós-idiomática, pois por aí tem andado igualmente na companhia de Damon Smith.

Ra Kalam é um espírito livre, um místico dos sons, um xamã que, para além da música, usa a dança e a poesia como expressões artísticas, sempre procurando esticar os âmbitos em que se move, por acreditar que a música vive em cada momento das nossas vidas, na nossa cabeça e no nosso corpo, quer a toquemos e oiçamos ou não. E sempre equilibrando uma rigorosa disciplina com uma espontaneidade sem compromissos, festejando sim, “mas com propósito”, como dele disse Gil Evans, o compositor, arranjador e condutor de orquestra que trabalhou com Miles Davis e que o motivou a colocar as suas ideias em pauta até forjar aquela que é uma das mais singulares escritas da actualidade. O seu álbum The Story of Moses tem lá tudo, como lemos na revista Jazziz, “blues, gospel, bop, música concreta, juju africano, rock, funk, hip hop, músicas balinesa, latina e outras ainda por definir”. 



Nas palavras do próprio Bob Moses: “Posso tocar coisas terrenas e posso tocar coisas aéreas. Sou um baterista do céu que começou como baterista da terra”. Fez esse arranque, nem mais nem menos, do que com Roland Kirk, quando era ainda um miúdo. Nisso, seguiu os ensinamentos de Charles Mingus, seu vizinho na adolescência, de quem o pai era o assessor de imprensa e que na altura lhe dava aulas. Conta ele que o lendário contrabaixista lhe repetia, vezes sem conta: “Bobby, tens de aprender a tocar desleixadamente. Não queres ser um daqueles bateristas brancos de estúdio”. Ou seja, aprendeu que, “se a música é muito limpa, não soa bem”: “Fica antisséptica. Temos de manter a imperfeição humana na música.”

Se é isso que Moses tem colocado musicalmente em prática, a sua vida tem sido uma difícil caminhada de melhoramentos pessoais (e sim, que incluíram fazer as pazes com Carla Bley e elogiar a sua música). Conhecer Tisziji Muñoz, o seu guru, tem sido fundamental nesse processo. Foi esta enigmática personalidade, mais idosa do que Moses – que conta hoje com 73 anos de idade – quem lhe deu o nome Ra Kalam. Também músico, um guitarrista inclassificável, extremo e de características únicas que vive como um asceta e raramente surge em público, Muñoz foi ou é idolatrado por gente do jazz como Rashied Ali, Pharoah Sanders e Dave Liebman. O que ele lhes ensinou, e ensina ao seu discípulo mais directo, é a querer mais, a ultrapassar o nosso karma, a sermos livres, verdadeiramente livres. Este astrólogo, visionário e “mestre do tempo” defende que a música deve transcender a sua fisicalidade, enquanto canal de energia que nos conduza até ao desconhecido.

Não surpreenderá que Ra Kalam Bob Moses, um ser de energia, leve, tente levar Pedro Melo Alves, Vasco Trilla e os demais participantes nestes concertos, todos muito mais jovens, para esse lugar outro, algures no céu, a que poucos conseguiram já ascender.


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