Quincy Jones foi (é e sempre será) um gênio da arte musical. Por isso, não pode ser definido apenas pelos trabalhos que fez com Michael Jackson. Antes de produzir e ganhar todos os prêmios e louros com o “Rei da Pop”, ele já tinha percorrido um longo caminho. Ainda na infância, morando no South Side, em Chicago, Quincy foi introduzido ao piano. Porém, após a mudança da família para Seattle, dedicou-se ao trompete. Dominou o instrumento, mas não apenas este. Por ser menor de idade, não podia tocar nos clubes de jazz. Aos 14 anos, quase que pelo destino, conheceu Ray Charles, então com 16, e algumas vezes tentou acompanhar o amigo nas apresentações. As tentativas foram sem êxito. Mesmo assim, continuou tentando. A persistência abriu portas.
No começo dos anos 1950, ganhou bolsa para estudar música na Universidade de Seattle. Ficou um período e logo se transferiu para a Schillinger House of Music, em Boston, hoje conhecida como Berklee College of Music. Por lá também não ficou muito tempo. Abandonou os estudos após um convite para tocar na banda do multi-instrumentista, que dominava o vibrafone, Lionel Hampton. Mas antes de descobrir suas habilidades musicais, Quincy queria ser gângster. Aos 7 anos viu sua mãe ser internada em uma clínica psiquiátrica. Assim, cresceu sem a presença dela. Seu pai trabalhou como carpinteiro dos Jones Boys, uma gangue negra da área onde morava.
Os gângsters viraram seus padrinhos. Eram espelhos. Na Chicago dos anos 1930, muito mais violenta e perigosa que o Harlem ou Compton décadas depois, ele se envolveu em confusões. Sempre que tinha oportunidade de contar sua história, mostrava a cicatriz da ferida feita por um canivete cravado na sua mão esquerda, e outra com um picador de gelo que foi atingido próximo ao seu olho esquerdo. “Eu só queria ter uma vida confortável, cara”, revelou ele à revista GQ em 2018. “Porque todos os dias era assustador, e você nunca sabia o que estava acontecendo. Era isso que você queria fazer para se proteger”.
Talvez se o plano de gângster desse certo — felizmente não aconteceu —, Quincy Jones seria o mais primoroso de todos. “Conhecer sua origem ajuda você a chegar onde quer”, disse a Dr. Dre no podcast The Pharmacy. Para ele, o talento por si só não bastava, tinha que ter técnica. Não por acaso, é difícil encontrar algum trabalho mediano que tenha feito ao longo dos seus mais de 70 anos de trabalhos prestados à música. O músico talentoso que não sabia ler as notações musicais — partituras — era dispensado dos trabalhos. Precisava ter a junção das duas coisas para atingir as expectativas dele.
Ao jornalista David Marchese, da Vulture, disse em 2018 que muitos músicos de hoje não “conseguem ir até o fim com a música porque não fizeram a lição de casa com o lado esquerdo do cérebro”, que é responsável pelo raciocínio lógico. E falou mais: “Música é emoção e ciência. Você não precisa praticar emoção porque isso vem naturalmente. A técnica é diferente. Se você não consegue colocar o dedo entre três, quatro, sete e oito em um piano, você não consegue tocar. Você só consegue chegar até certo ponto sem técnica. As pessoas se limitam musicalmente, cara. Esses músicos sabem tango? Macumba? Música iorubá? Samba? Bossa nova? Salsa? Chá-chá?”
Ao citar esses gêneros, Jones ressaltou o seu amor pela música brasileira. Reverenciava Jorge Ben, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Milton Nascimento, Ivan Lins e Simone. Por um bom tempo, visitou o Brasil quase que anualmente. Até desfilou em 2006 no Carnaval do Rio de Janeiro pela escola de samba Portela. Nos anos 1960, após uma turnê no país ao lado de Dizzy Gillespie, com o qual também fez parcerias, compôs “Soul Bossa Nova”, um samba-jazz com todo aquele “suingue” brasileiro, como quem nasceu com uma cuíca na mão e samba no pé.
A palavra limites não existia no vocabulário de Quincy. Fez de tudo um pouco. Em Paris, na França, imergiu na música de câmara porque no seu país negros eram proibidos de escrever, arranjar e reger sinfônicas. A sua professora de composição e teoria foi a respeitada Nadia Boulanger, a primeira mulher a fazer a regência da Filarmônica de Nova Iorque. Na Europa, viajou com diversas orquestras e o conhecimento adquirido fez sua mente expandir ainda mais. Tornou-se arranjador, diretor musical, maestro, vice-presidente de gravadora, a Mercury Records, empresário.
Maior trabalhador do entretenimento, “prestou serviços” para nomes grandes do jazz, incluindo Herbie Hancock, Chick Corea, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Sarah Vaughan, Dinah Washington, Miles Davis, Count Basie, Louis Armstrong, Clark Terry ou Duke Ellington. Compôs bandas sonoras e produziu filmes, recebendo 11 indicações por The Color Purple, de 1985. Nunca quis ficar preso a um único tipo de arte, muito menos ser colocado dentro de uma caixa. Explorou tudo que achava interessante. Não fugia dos desafios. Também não guardava as críticas para si. Quando músico, boicotou estados segregacionistas, criticou Trump e até alfinetou os Beatles, dizendo que eram os piores músicos do mundo. “Eles eram uns filhos da puta que não tocavam. Paul era o pior baixista que eu já ouvi. E o Ringo? Nem fale sobre isso”, disse à Vulture.
Quincy também estava bem longe de não ser inteligente (ou “burro”, na linguagem popular). Com sua visão de futuro, foi um dos primeiros a unir jazz com rap. Quando não criava tendências, estava por dentro do que poderia vir a ser uma. Foi do jazz ao funk, passando pela música erudita, rap, rock, soul. Desde o início foi um amante do hip hop (diferente daquele artista brasileiro que disse que todos que “ouviam” hip hop eram burros). Fez parcerias com muitos artistas envolvidos com a cultura. Dizia amar as músicas de Kendrick Lamar, Drake, Mary J. Blige, Ludacris, Common. Foi responsável pela criação do cultuado seriado de televisão The Fresh Prince of Bel-Air, tendo como protagonista Will Smith, que utilizava a alcunha The Fresh Prince no duo que tinha com o DJ Jazzy Jeff. Outro investimento dele direcionado ao hip hop foi a clássica revista Vibe. Ele até organizou um simpósio em 1995 para tentar mediar a briga entre rappers da Costa Leste e Oeste dos Estados Unidos.
“Eu me apaixonei pelo hip hop porque me faz lembrar do bebop, e senti uma afinidade pois passámos por muitas coisas iguais. A filosofia por trás do bebop nos fazia ser legais e queríamos ser assim”, discursa em um trecho emotivo do documentário Quincy (Netflix), quando fala dos jovens negros talentosos estavam sendo mortos por outros negros, como aconteceu com Tupac Shakur.
Quincy Jones nunca foi um homem do seu tempo. Estava sempre alguns anos à frente. Por várias vezes uniu o passado, presente e o futuro. Transformou o pop. Elevou ainda mais o status quo de Michael Jackson. Pode-se dizer que criou um marco na música pop: Antes de Quincy e Depois de Quincy (AQ. DQ). Não podemos esquecer do poder de influência que teve em causas sociais. A criação do supergrupo USA For Africa para a música “We Are The World” foi apenas uma das várias ações feitas por ele para ajudar seus iguais. Falar de uma pessoa desse tamanho, usando um número limitado de caracteres, é algo impossível de fazer. Quincy foi o músico, arranjador, produtor e visionário que todo o artista almejou chegar perto, sentar do lado, aprender. Ser igual a ele poderia ser uma ambição muito grande. Tudo que for escrito não poderá descrever e/ou sintetizar a grandeza desse múltiplo artista, que na música estará sempre acima de todos os outros.