pub

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 15/05/2023

Um coração que sangra amarelo.

Quem tem um Emicida no Coliseu dos Recreios, tem tudo

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 15/05/2023

De tempos em tempos surge o privilégio de assistir a um concerto que nos deixa a olhar para tudo de uma maneira diferente assim que acaba. Ao entrar é como se voltássemos a casa e nos sentíssemos acolhidos, como se nos segurassem a mão e, por umas horas, temos a certeza de que chegámos a bom porto, envoltos numa esfera de luz, onde a compreensão é lei e os cânticos tocam onde dói, para curar; e mesmo que não cure, ameniza. O concerto de Emicida, a 11 de maio de 2023, vai ficar marcado na história por ter pintado de amarelo as almas que tocou, num Coliseu dos Recreios repleto de quem entende a que soa a palavra amor. 

Nem por um segundo a sala pareceu vazia. Ao entrarmos, já atuava Drick Barbosa, que enchia o palco como se fosse toda ela uma orquestra de vários músicos. Com o seu sorriso radiante, indumentária de diva, moves e disposição de quem poderia ficar a noite toda a fazer aquilo, a cantora fez rapidamente da plateia sua amiga, que junta contribuiu para a celebração do seu aniversário, que estava, nas suas palavras, “há um mês para ser celebrado”. E que festa que foi. Mas os vários presentes nessa noite foram todos para nós. Com a mesma rapidez e intensidade com que a luz se foi, voltou, brilhando a amarelo forte, por cima dos vitrais coloridos, projetados no fundo do palco. A assim começou uma das “missas” mais bonitas que alguma vez experienciámos.

Emicida entra e é como se, para além da euforia arrebatadora sentida naquela sala, todos dessem um suspiro de alívio e se sentissem prontos a abrir mão da entrega que é necessária para experienciar aquele concerto. Começam os acordes de “É Tudo Pra Ontem”, canção que partilha com Gilberto Gil, e é com a força de uma tempestade, que começa calma e evolui estrondosamente, que se revela um coro que raramente cessou, algo que foi seguindo “A Ordem Natural das Coisas”, ideia corroborada pela maneira como se ouvia, a uma só voz, a frase “e o sol só vem depois”, acompanhada, como num sonho, pelas notas da flauta transversal soprada pelo cantor, que tanto contribuíram para o cariz idílico de toda a atuação. 

Nesta altura estava um claro ponto assente: Emicida é amigo e “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)” — são essas as “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”. Já embalados em todas as belas letras e voz melódica de quem as diz e sente, somos surpreendidos com uma bonita rendição da “Chega de Saudade”, dos grandes Vinicius de Moraes e António Carlos Jobim, um dos tantos momentos especiais desta noite — e que se desengane quem pensa que só se materializava em palco. Cá em baixo, era como ver arte em movimento, de casais que dedicavam a letra de “Baiana” entre si, a pais que trouxeram as crianças para ver alguém que tem tanto de belo como de inspirador, que transpareceria de forma bastante óbvia, pois não havia uma única criança — e muitas eram — que parecesse querer ir embora.

E é após uma nova entrada de Drik Barbosa em palco, para cantar “9nha”, que se nota uma clara mudança no concerto, de uma paz melódica para uma garra ainda mais acesa, como quem acende o rastilho e pouco falta para detonar, com a determinação e gosto de quem há muito se prepara para esta noite, como estávamos prestes a ser elucidados. O mote foi dado por Emicida, com a confissão : “Ai, me dá vontade de contar história. Vou contar a história para vocês, porque esta é uma noite muito emocionante, quase chorei várias vezes.” É este o peso de um sonho concretizado. Há 11 anos, ao ter pisado o palco do Coliseu dos Recreios pela primeira vez, para abrir o espetáculo de Mos Def, um pensamento pairava na cabeça de um Emicida mais novo: “Que lugar gigante…” E antes que pudesse continuar a história, alguém na plateia gritou uma verdade plena: “’Tá pequeno pra você!” Com a conclusão a chegar sob a forma de repto: “Será que um dia nosso show vai ser o principal nesse lugar?” Vendo-se agora detentor de uma concretização que lhe brotou pelas palmas das mãos, descrito pelo artista como “uma sensação de estar dentro de um sonho”, este sentimento, algo difícil de imaginar a princípio, torna-se quase plausível pelos gritos do público e a sua energia e calor irradiados naquele momento. Tudo se tornou ainda mais intenso assim que o artista anunciou que queria partilhar o que sentia e chamou ao palco uma referência para ele, nome já entoado de maneira apaixonante por todos os presentes a uma só voz: Dino D’Santiago. E foi ainda mais difícil manter os olhos secos a partir daqui.

Pisou as tábuas de forma impactante, como já não nos surpreende, vindo de quem o faz: “É uma honra estar neste palco. Vim há pouco do Brasil, e perceber o que ele [Emicida] representa naquele país e o manifesto que ele é para todos os brasileiros…” Os arrepios que surgiram tornaram-se ainda mais expressivos ao som de um grito — “Nu bai!” — e todos se juntaram para cantar o hino que é “Maria”, recente colaboração entre os dois artistas que evoca um nome tão bonito e é acompanhado melodicamente por todo o público. Sem ninguém indiferente à poderosa letra, Dino falou por nós quando afirmou: “Parece que o som já saiu há bué. É lindo perceber isso e perceber que, felizmente, hoje, a Maria pode ser quem ela quiser ser”. Rapidamente soou também “Como Seria”, que terminou ao som de festa rija com um remix de “Drunk in Love”, de Beyoncé e Jay-Z, enlaçado de forma interessante com o ferrinho cabo-verdiano e a bem condizer com a inscrição “funaná is the new funk” que Emicida tinha nas meias. E o autor de BADIU não abandonou o palco sem antes cantar a poderosa “AmarElo”, unindo milhares de pessoas no abraço de resistência que é gritar, a plenos plumões, os versos: “Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro.”

Seguiu-se “Boa Esperança” e num piscar de olhos entrou outro colosso em palco, de seu nome Papillon, pronto para cantar “Eminência Parda”, outro dos momentos altos, que juntou duas vozes que carregam tanto poder, quer nas suas palavras como na sua entoação. Trazendo-nos de volta a “Casa”, espelhada a cores e raios de luz, entoámos o cântico: “O céu é meu pai, a terra mamãe / E o mundo inteiro é tipo a minha casa” — e todos nos sentimos verdadeiramente acolhidos. É de louvar o sentimento de pertença de quem repete as letras de outrem como se da sua autoria se tratassem, as mãos dadas, os sorrisos partilhados e a certeza de que nos encontrávamos num lugar seguro. Quando Emicida parava para dizer (e repetir, vezes sem conta) “Obrigada”, era impossível não gritar de volta: “Obrigada, nós.”

Aproximando-nos do fim do concerto, e já com o coração a nu, repousado na ponta da língua, somos assoberbados pela força das palavras presentes num dos poemas mais bonitos alguma vez escritos. Falamos de “Súplica”, de Noémia de Sousa, considerada a mãe dos poetas moçambicanos, tradutora, jornalista e militante política, agora reavivada na voz (também) revolucionária de Emicida, passando a mensagem, mais atual que nunca: que nos levem tudo, mas não nos levem a música. Porque a música, nas palavras de quem a trouxe nessa noite, é a deusa, a estrela maior, e “quando Deus se quer fazer presente, ele vem na música”. A verdade é que qualquer cético virava crente perante a energia sentida naquele espaço.

Após proferir estas lindas palavras, cantou mais um hino que é “Principia”, para retificar que tudo o que nós temos — da nossa essência e do mais ínfimo átomo à alma, passando pela ponta dos cabelos, planta dos pés, sardas na pele, as roupas que trazemos, com quem nos damos e quem amamos — é nós. E gritando com toda a força, a jeito de quem se prepara para se despedir: “O amor é o segredo de tudo e eu pinto tudo em amarelo.” Um fim que teria sido muito bom, não estivesse o final perfeito reservado para nós. 

Voltando ao centro, depois de se ausentar, soam notas de flauta muito familiares. Tratava-se de “Mania de Você”, de Rita Lee, e começava assim uma homenagem de trazer as lágrimas a qualquer um, com um coliseu inteiro decidido a cantar palavra a palavra, como quem relembra a música preferida de uma amiga próxima, neste caso, a eterna voz do rock brasileiro, “padroeira da Liberdade” e uma das maiores inspirações de Emicida, como dito pelo próprio, que agora descansa em paz, enquanto fazemos a festa em sua honra.

O espetáculo terminou com o som “Passarinhos”, que partilha com Vanessa da Mata, a música conclusa que não queria deixar o coliseu apagar as luzes e ir dormir, ouvindo milhares de vozes a cantar “Passarinhos soltos a voar dispostos / A achar um ninho nem que seja no peito um do outro”. Um momento ideal para derreter, ao ver pais a dançar com os filhos, a cantar de sorriso estampado nos rostos, casais ou amigos abraçados e muitos estranhos a formar amizade. 

Se restavam dúvidas de que a música, para além de unir, é a linguagem universal, foram tiradas naquela noite, em algo como mais de duas horas de uma exibição de carinho, afeto, compreensão, mas também de luta, pelo meio da voz imponente que se desdobra em Emicida. Há algo de muito revolucionário em se cantar como quem manda cartas de amor, e algo que cura, certamente, quando se olha em redor e se vê uma multidão a mover-se (ou a ser movida) ao som das mesmas palavras, dos mesmos acordes, pelo mesmo artista. E tudo isto se amplifica quando muitas dessas pessoas são crianças, de brilho nos olhos, que um dia vão contar a quem mais estimam: “quando eu era pequeno, os meus pais levaram-me a um concerto do Emicida. E foi uma noite linda.” Porque as cartas chegam aos destinatários, sejam eles crianças, adultos ou até mais velhos. E graças a Emicida, o brilho nos olhos era transversal e tudo o que se recebeu naquela noite foi amor. Assim, com tanta coisa a reter desta noite, que fique uma mensagem bem clara: que não nos tirem a música.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos