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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/06/2025

Na vanguarda do hyperpop e do cloud rap.

Quem é meat computer, o artista de culto que não quer ser descoberto?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/06/2025

No dia 19 de fevereiro de 2025, Kieran Press-Reynolds, autor da rubrica Rabbit Holed da Pitchfork, publicou o artigo “Chasing Yabujin, the Artist Who Secretly Shaped the Underground Sound of the 2020s”. Neste artigo, o jornalista descreve o som de Yabujin como “uma versão corrompida do que é suposto música soar, uma inversão bela do que é pop de rádio.” As mesmas palavras podiam ser usadas para descrever o som de meat computer, que como o nome indica, faz música com influências sonoras digitais, visuais pós-modernos e letras vulneráveis. Além disso, da mesma forma que Yabujin nunca esteve disposto a revelar muito sobre a sua identidade, meat computer não dá entrevistas, e a sua pegada mediática é ainda menor: consiste basicamente em 3 peças no blog Lyrical Lemonade, numa biografia no site de letras de músicas Genius, e no seu canal de YouTube e página de Instagram (assim como vários canais de arquivo do seu trabalho). Entre problemas com abuso de substâncias, álbuns de 50 músicas lançados e apagados num espaço de dois meses, e uma personalidade tão inconstante que rivaliza a de um artista como Kanye West, por exemplo (embora menos problemática, felizmente), a história de meat computer é uma que vale a pena contar (e ouvir).

Nathan Ireland, de Manitoba, no Canadá, começa a fazer música com o pseudónimo earthboy em 2017. As suas influências são originalmente mais próximas do shoegaze, bedroom pop e indie. Ainda se pode ouvir na internet o álbum null, lançado em 2018, mas pouco mais é acessível hoje. É apenas em 2020 que somos apresentados ao pseudónimo meat computer, que muito rapidamente ultrapassou o fanfare que o canadiano tinha conquistado como earthboy. Largou as guitarras, a sujidade, e um tom depressivo para os substituir com influências do hyperpop e do cloud rap, e vocais alienígenas, inteligíveis e extremamente pitched up grande parte das vezes. Foi um dos seus primeiros singles, em maio de 2020, que o apresentou a um nicho de fãs através do popular canal de Youtube, HIVEMIND. Falamos de “soul doubt”, que o artista descreve, no Genius, como “the 1st song i wrote after my father passed away originally it was acoustic but in march of 2020 during quarantine i made it into the song it is now”. Com um sample melódico muito em linha com aquilo que associamos a Drain Gang, podia ser esquisito ter vontade de dançar a ouvir letras como “He fucking went and died that afternoon / Then that night everything seemed just to come undo / Never been the same since / But never knew just what to do” — mas surpreendentemente resulta. Não teve de esperar dois meses até que a sua fanbase voltasse a aumentar consideravelmente com “team edward”, uma faixa muito dentro do cânon do hyperpop, mas extremamente bem conseguida. Só que esta comunidade à volta do artista sempre foi inconstante: múltiplos hiatos na sua carreira e músicas lançadas e apagadas num curto espaço de tempo não o ajudaram a reter o seu público. De qualquer forma, isso nunca pareceu ser o seu objetivo.

As duas maiores fontes de informação na Internet sobre o artista são a sua página no Genius, onde encontramos a lista mais compreensiva do seu reportório musical (552 músicas e 13 álbuns no espaço de pouco mais de 5 anos), e o seu Instagram, onde publica frequentemente, e no qual levanta mais questões do que nos dá respostas sobre a sua vida e o seu percurso. A título de exemplo, use-se o rollout do seu álbum weird alone guy, que deveria ter sido lançado no dia 25 de maio de 2025. O artista anunciou o álbum para dia 25 de fevereiro deste ano, e desde o início de novembro até aí lançou 10 singles, para apenas depois, no próprio dia, adiar o lançamento do mesmo para 5 de maio. Mais ou menos uma semana antes dessa segunda data, alterou novamente o lançamento do álbum para dia 25 de maio. Finalmente, nesse dia 25, e depois de fazer uma publicação (que parecia ser) em antecipação ao álbum no próprio dia, o artista anunciou através de uma story, já dia 26, que iria cancelar o lançamento do álbum. Nada disto é novo para os fãs de meat computer. Aliás, múltiplas vezes também o oposto aconteceu: sorry 4 the wait, uma mixtape de 50 músicas, foi lançada sem aviso prévio no dia 31 de dezembro de 2023 (e de seguida apagada das plataformas de streaming, pouco mais de dois meses mais tarde). Mas para uma parte considerável dos fãs do artista, isto, em conjunção com as suas letras embebidas em vulnerabilidade, é também o que tão facilmente os prende ao trabalho do mesmo: há uma dimensão extremamente humana dentro do mundo cibernético e surreal que meat computer constrói à volta das suas músicas com cada videoclip, e através da sua própria identidade sonora.



Diga-se o que se disser de meat computer, o som do artista é tão único e tão inconsistente como o próprio. Se ouvirmos “home”, single lançado em 2020, lembramo-nos de nomes como Mount Kimbie, mas se ouvirmos o single seguinte, “nowhere fast”, já estamos completamente no campo do cloud rap, com um sample de piano moody a contrastar com 808s que rebentam subwoofers. Avançando para 2022, com o álbum slept on the floor still dreamt about you, temos faixas como “inject inject crush”, extremamente minimal, mas igualmente dentro do que se esperaria de um Ken Carson, se o rapper americano fizesse uma música inteira a sussurrar. Por outro lado, podemos ouvir “shut down entirely”, já inegavelmente hyperpop com um sintetizador hipnotizante, ou “broken”, uma música sobre amor, mas com um snare inspirado na percussão característica do drill, e um elemento melódico extremamente particular, como se o artista estivesse a tocar xilofone com um esqueleto. 

Para isto também poderá contribuir a variedade de produtores com que o artista colaborou neste álbum, ao contrário do seu primeiro longa-duração, social distancing from reality, de julho de 2020. A complexidade da produção também deu um salto de um projeto para o outro, apesar da linha criativa ser a mesma, ainda que na sua dispersão. Os beats do segundo LP do artista, em comparação ao anterior, são, no geral, mais cheios, e com um ênfase maior nos graves, o que faz com que qualquer melodia que surja seja mais impactante. No entanto, não se pode dizer, por isso, que estas melhorias estão apenas relacionadas com a participação de outros produtores: a diferença entre os beats em faixas erguidas por produtores como Silver, por exemplo, que colabora frequentemente com meat computer nesta fase da sua carreira, e o seu trabalho em nome próprio são vastamente diferentes, o que demonstra o papel do canadiano no processo criativo das suas músicas. É relativamente fácil ver, especialmente em retrospetiva, que slept on the floor still dreamt about you é uma versão beta daquilo que um próximo projeto poderia ser, assim que meat computer estabelecesse uma relação de proximidade com um produtor tão vanguardista como o próprio. Esta “mente alinhada” chegou na forma de Dima Lamperd, que tem produzido praticamente todas as faixas que estão/estariam presentes em weird alone guy.

Dima Lamperd (Flame Prince) é um produtor russo, tão misterioso como meat computer, que é claramente influenciado pelo trabalho de Drain Gang. O produtor faz essencialmente beats de cloud rap, mas tinha já mostrado a sua versatilidade no EP #socm de mii4uu, lançado em outubro do ano passado: um álbum que se aproxima mais da club music do que qualquer outra coisa. No entanto, desbloqueia verdadeiramente toda a sua versatilidade nas colaborações com meat computer, que começam em 2020, esporadicamente. De qualquer forma, a química entre os dois artistas subiu de patamar nos singles de weird alone guy. Destaque-se, em primeiro lugar, “dumb pop song”, que bem podia estar num álbum de KAYTRANADA, com a sua bassline extremamente groovy, e um sample vocal sincopado que nos impede de ficar parados a ouvir a faixa. Temos também “dehumanizing audio”, que podia estar em MUSIC, o novo LP de Playboi Carti, ignorando-se a entrega vocal de meat computer, ou “trance like ordinary state”, que tem toques de MGMT, especialmente do trabalho da banda nos anos 2000, sem faltar o sound design cibernético característico do canadiano. Podíamos dizer, na verdade, palavras lisonjeiras sobre qualquer um dos cerca de 20 singles do álbum. Estejam mais ou menos na vanguarda em cada caso individual, são todas faixas que valem a pena explorar. 

Yabujin e meat computer são casos muito diferentes, que merecem a sua própria análise. O world building de Yabujin, que é quase como um ARG (alternative reality game) à volta da sua música, e que também a torna tão aliciante, não está presente no universo de meat computer. Da mesma forma, enquanto se sabe apenas de uma instância de uma performance ao vivo de Yabujin, meat computer é também celebrado pelos seus concertos: meio performances, meio sessões de karaoke, com bits conhecidos por todos os seus fãs — como fazer um comboio à volta do pit quando o artista passa “Disorder”, dos Joy Division, ou um momento de karaoke conjunto ao som de “Creep”, dos Radiohead. O som dos artistas também é vastamente diferente, com Yabujin a aproximar-se muito mais do noise e nunca tanto do pop como meat computer, que tem faixas que poderiam tocar numa discoteca de uma realidade alternativa. De qualquer forma, aproximam-se por serem dois artistas que são reconhecidos apenas dentro de um nicho (embora ainda com menos expressão e influência no caso de meat computer), e que por vezes não querem sair dele. Nas sombras do underground, porém, estão a desenhar aquilo que são os contornos da música das estrelas pop e de eletrónica do futuro.

Ainda que weird alone guy possa nunca ver a luz do dia, todos os singles que têm vindo a ser lançados, no seu conjunto, têm tanta ou mais qualidade que os trabalhos recentes dos grandes nomes da eletrónica pop e do cloud rap mundial. Aliás, é quase um desserviço a meat computer sequer compará-lo a qualquer artista que faça música hoje: a sua voz é incrivelmente única, e a melhor forma de o entender é, efetivamente, ouvindo a sua música (e potencialmente vendo os seus videoclips, peças que por si só dariam um artigo com a mesma extensão). Continuando a sua colaboração com Dima Lamperd, não há qualquer razão para o artista não ser uma das figuras de vanguarda da música internacional, da mesma forma que Yabujin, especialmente se o canadiano o quiser (o que não é propriamente o caso). Com álbum ou sem álbum, é um artista do qual se pode esperar sempre algo novo e interessante. E no que toca a todas as faixas que parecem ter ficado na gaveta, pode ser que um dia o artista as decida lançar. Em 2022, meat computer editou a mixtape rare, que incluía todas as músicas que alguma vez tinha feito e que, por uma razão ou outra, nunca lançou. Fica, portanto, a esperança de que ele decida eventualmente fazer o mesmo com o resto de weird alone guy.


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