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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/12/2019

Muitas edições budget de obras primas do passado poderão ter origens técnicas duvidosas, graças à chegada ao domínio público de obras que há décadas são tidas como referência. Escutámos, por exemplo, a reedição de Dar & Receber de António Variações e comparámos o som com o da prensagem original, de 1984.

Que vinil é este que andamos a comprar?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/12/2019
Em 1984, quando se concluíram nos estúdios da Valentim de Carvalho as gravações de Dar & Receber, o segundo e derradeiro álbum de António Variações que contou com produção de Carlos Maria Trindade e Pedro Ayres Magalhães, depois de Tó Pinheiro da Silva, o engenheiro de som de serviço, ter concluído as misturas, o master final em fita analógica de quarto de polegada terá sido usado, nos mesmos estúdios, pelo técnico Fernando Cortês para o corte de acetato de onde saiu a matriz que serviu para fabricar, também nas instalações de Paço de Arcos, as cópias que depressa chegariam às lojas. Dar & Receber teria mais uma edição em vinil em 1988, presumivelmente feita a partir de uma nova matriz, tal como evidenciado na data inscrita na run out groove do disco. As edições posteriores foram todas em CD, mas, recentemente, a loja de discos Carbono, em estreita colaboração com a Warner Music Portugal, actual detentora dos direitos desta obra, recolocou o disco em vinil nos escaparates numa edição facsímile do original que até lista Fernando Cortez como responsável pelo corte de acetato. Só que, obviamente, não foi tal que aconteceu. Para esta edição em vinil que surge 35 anos após o lançamento original, a Warner terá, certamente, usado ficheiros digitais de alta qualidade que resultam de um trabalho continuado que nos últimos anos o técnico Fernando Rascão tem operado sobre os masters depositados nos arquivos da Valentim de Carvalho. Um processo diferente, portanto. Há 35 anos, no caso do segundo álbum de Variações, todo o trabalho foi feito numa mesma casa às portas de Lisboa: a gravação, a mistura, o corte de acetato, a prensagem da matriz negativa que serviu depois de molde na prensa de onde saíram todos os exemplares que os portugueses compraram em número relativamente baixo, já que a edição praticamente coincidiu com o desaparecimento do cantor a 13 de Junho de 1984, não tendo havido lugar à ampla promoção que certamente se desejava. Em 2019 o processo há-de obviamente ter sido diferente: a fábrica Optimal Media, na Alemanha, usada pela Warner, recebeu um ficheiro digital que foi usado para o corte de acetato que, depois de aprovado pelo sistema de controle de qualidade interno da editora, serviu para a feitura da matriz negativa utilizada para prensar as cópias que agora chegaram ao mercado. Escutadas lado-a-lado, no entanto, a prensagem original de 1984 e a de 2019 soam idênticas, com, talvez, ligeira vantagem para a edição de 2019 que soa um pouco mais viva, com um subtil toque de brilho nas frequências mais altas que lhe confere uma sonoridade um pouco mais condizente com os actuais padrões de alta fidelidade.

Este é, portanto, um caso feliz, mas nem sempre as reedições que inundam o mercado em plena vaga do “renascimento” do vinil resultam de histórias semelhantes e fóruns de coleccionadores na Internet estão cheios de histórias de edições budget feitas, muitas vezes, a partir de versões editadas em CD ou até de ficheiros digitais de baixa qualidade, sem ligação directa com os masters originais e legítimos. Eventos como o Record Store Day ou Black Friday têm colocado pressão no mercado de vinil, com as fábricas a serem levadas ao limite da sua capacidade de produção e, portanto, a serem obrigadas a baixar o nível do seu controle de qualidade. Mas esse não é o único problema e há um novo fenómeno que os consumidores deste tipo de suporte deverão a partir de agora ter em conta. No passado fim-de-semana, aproveitando uma promoção no âmbito da Black Friday, adquiri uma edição especial de Miles Davis na Fnac: The Complete Cookin’ Sessions é uma caixa com novas edições para Cookin’, Relaxin’, Workin’ e Steamin’ que o quinteto liderado pelo mítico trompetista – que incluía John Coltrane, Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones – gravou para a Prestige em sessões que decorreram em 1956. Estas edições fazem parte de uma série chamada The Francis Wolff Collection da editora espanhola Jazz Images. O ângulo da Jazz Images é absolutamente novo e traduz um paradigma que os coleccionadores terão agora que ter em conta: a partir de acervos devidamente licenciados de fotógrafos históricos como o já referido Francis Wolff, mas também William Claxton ou Jean-Pierre Leloir, a Jazz Images está a lançar no mercado um conjunto de edições de gravações históricas do jazz de artistas como o já mencionado Miles Davis, e também, entre dezenas de outros, Art Blakey, Sidney Bechet, John Coltrane, Thelonious Monk, Bud Powell ou Sonny Rollins. Ao oferecer novas capas a essas históricas gravações, a Jazz Images contorna os direitos das editoras originais — o (p) e o © que surgem sempre em letras miudinhas nas capas dos discos identificam, respectivamente, os detentores dos direitos da gravação e do artwork – e ao usar gravações que, segundo a lei europeia, estão já em domínio público, o selo espanhol poucas contas tem que prestar. E é isso que explica que uma caixa com quatro históricos álbuns do Miles Davis Quintet, com capas com grafismo cuidado, impressas em papel de alta qualidade, em versões gatefold, e com vinil de 180 gramas prezado pelos audiófilos custe apenas 25 euros, preço tornado ainda mais ridículo durante a campanha de Black Friday que o atirou para uns singelos 18,75€, custo de muitos CDs simples de edição corrente. Como é que a espanhola Jazz Images consegue tal proeza? Não tendo que pagar direitos à Prestige que originalmente lançou os discos, e, em casos em que os autores das obras interpretadas tenham morrido há mais de 70 anos, nem sequer aos seus herdeiros haverá contas a prestar. E talvez isso justifique a profusão de “obras perdidas” que afinal têm sido encontradas em tempos recentes e que valeram a chegada ao mercado de discos inéditos de John Coltrane ou Miles Davis: os gestores dos “estates” destes artistas, sabendo que o tempo dita o fim das receitas de certos títulos do seu catálogo, procuram equilibrar contas gerando novas obras a partir de registos em arquivo até aqui inéditos. A questão que os consumidores sérios de vinil precisam, no entanto, de se colocar a partir de agora é: e a partir de que masters estão a ser feitas as matrizes que resultam nestas reedições, não apenas da Jazz Images mas também de outras editoras com estratégias de negócio semelhantes como a Green Corner? A Jazz Images, na já referida caixa que reúne a série Cookin’ do quinteto de Miles, não esclarece, mas em fóruns de coleccionadores de jazz na Internet refere-se que as matrizes poderão estar a ser conseguidas a partir de edições em CD amplamente disponíveis no mercado. Os audiófilos que discutem estes assuntos nos fóruns do engenheiro de som Steve Hoffman referem que as edições da Jazz Images são de elevada qualidade, com a prensagem a usar vinil virgem de grau superior e com o som final a denotar subtis sinais de que a sua origem poderá ser digital, mas ainda assim a revelar-se de qualidade geral assinalável. Infelizmente, os cuidados que a Jazz Images parece ter com o seu produto poderão não ser partilhados por outros selos que actualmente servem o mercado da nostalgia que também inunda as lojas de “leitores de vinil” baratos, como os que a Crosley produz amplamente. Na verdade, há muita gente a comprar em vinil obras que depois prefere escutar nas plataformas de streaming, com este suporte a revelar ser mero adereço numa era em que as lojas de mobiliário também oferecem imitações de peças vintage que talvez sirvam para contrabalançar de forma ilusória a ditadura digital futurista em que parecemos viver mergulhados. Seja como for, é cada vez mais importante ler as letrinhas pequeninas sempre que nos aparecer pela frente um qualquer clássico com mais de 50 anos a preço de saldo.

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