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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Cristina P. Pinto
Publicado a: 09/10/2025

Uma abertura para a confluência de voz, palavra e cordas.

Quando os Três Tristes Tigres Sussurram…

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Cristina P. Pinto
Publicado a: 09/10/2025

[A Semente Antes do Nome]

No princípio havia um fio de som, quase invisível, estendido entre duas figuras que se procuravam no território híbrido do teatro e da imagem em movimento. Ana Deus e Regina Guimarães encontravam-se em colagens de letra e melodia, num exercício de lenta alquimia, onde cada gesto vocal se prendia a uma palavra escrita e cada fragmento de poema se oferecia ao ritmo de uma respiração. Desde 1987 que este diálogo subterrâneo germinava, e desse húmus nasciam canções que não se reconheciam como tal, mas que já traziam consigo a vocação do palco.

Era um bordado feito de sons e páginas poéticas, um tear paciente que preparava, ponto a ponto, a emergência de um projecto singular no panorama musical português. Essa teia inicial era também laboratório, espaço de ensaio e de risco, em que a canção se confundia com performance e o verso se deixava atravessar pelo ruído das guitarras ou pela sombra do silêncio.

[O Trava-Línguas Tornado Símbolo]

Em 1992, esse corpo em formação recebeu um nome. Um nome arrancado à oralidade popular, carregado de ritmo e de obstáculo: Três Tristes Tigres. A brincadeira fonética do trava-línguas tornou-se emblema. A cadência infantil — “Três tigres tristes para três pratos de trigo…” — converteu-se em matéria estética. O que para muitos era jogo tornou-se pauta: a repetição como método, a sonoridade como energia, a vertigem da língua como partitura.

Assim, o próprio nome do grupo funciona como manifesto: mostra como a tradição oral pode ser transfigurada em som contemporâneo, como o exercício lúdico da fala se pode tornar impulso criador. Ao apropriar-se desse fragmento popular, a banda inscreve-se numa genealogia de continuidades e rupturas, onde o trivial se converte em símbolo e o efémero em fundação.

[O Triângulo Criativo]

A estrutura inicial ergue-se sobre três pilares. Primeiro, a voz de Ana Deus, capaz de metamorfosear poesia em canto e canto em ferida. Depois, a palavra de Regina Guimarães, densa e indomável, depositada nas canções como se fossem pedras no leito de um rio. Por fim, a chegada de Alexandre Soares, cuja guitarra e inventividade redesenharam o espaço sonoro.

A entrada de Soares, primeiro como colaborador na gravação de “Anjinho da Guarda”, fixou uma nova geometria. A canção tornou-se arquitectura: camadas instrumentais que se sobrepunham como paredes, reverberações electrónicas que funcionavam como corredores, diálogos entre a voz e a guitarra que abriam janelas e passagens secretas. Era a música como casa em constante construção, habitada pela palavra e atravessada pela energia do som.

[Três Nomes, Três Caminhos]

Ana Deus, Regina Guimarães e Alexandre Soares ergueram-se como vértices de uma tensão criativa contínua. Cada um transporta uma matéria própria: a voz que se estilhaça e se recompõe, a palavra que se expande e se retrai, a guitarra que desenha atmosferas ora luminosas ora abissais.

Não se tratava de linhas isoladas, mas de trajectórias que se entrecruzavam, criando pontos de contacto inesperados. Dessa confluência emergiu a identidade do colectivo: uma música que não cabia em categorias fixas, feita de zonas de fricção e de cumplicidade, de aberturas súbitas e de ecos persistentes.

[À Beira das Próximas Páginas]

Este ensaio introdutório ergue-se como epígrafe. Pretende apenas entrever o todo antes de se deter em cada um dos núcleos. Mais à frente neste ensaio, cada vértice — Deus, Guimarães, Soares — será observado de perto, com a minúcia que a sua singularidade exige.

Por agora, esboça-se apenas o horizonte: uma estética em movimento, onde música e poesia se interpenetram, onde a letra se torna melodia, onde o palco é extensão da literatura. Um território movediço em que o silêncio convive com o som, e a canção se afirma como gesto de pensamento, ao mesmo tempo íntimo e colectivo, singular e partilhado.



[A Voz que se Faz Página: retrato de Ana Deus no tempo e na palavra]

[Do Ribatejo ao Porto]

Ana Deus nasceu em Santarém, a 11 de Abril de 1963, mas foi no Porto, cidade onde vive desde 1981, que a sua voz encontrou chão e ressonância. A deslocação geográfica marcou também uma deslocação artística: de raízes ribatejanas a fixar-se na malha urbana do norte, a cantora foi absorvendo o ritmo das ruas, a textura do teatro independente e o pulsar das linguagens experimentais que atravessavam a cidade.

[Primeiras Metamorfoses]

Em 1987, a sua entrada como segunda voz nos Ban, ao lado de João Loureiro, foi mais do que um episódio inicial: foi a prova de que a sua voz podia habitar o espaço da canção pop sem se diluir nele. Mas paralelamente, a colaboração com Regina Guimarães começava a abrir um outro caminho. A poesia infiltrava-se na música e, desse encontro, nasceu em 1993 o primeiro álbum dos Três Tristes Tigres, Partes Sensíveis. Ali, a voz de Ana Deus tornava-se lugar de experimentação, um instrumento moldado pelas palavras de Regina e pelas paisagens instrumentais de Alexandre Soares.

[Diálogos e Colaborações]

O percurso de Ana Deus nunca se limitou ao espaço de uma única banda. Em 2003, emprestou a sua voz aos Rádio Macau, no tema “Nós Também”. Dois anos mais tarde, integrou o projecto colectivo Amália Revisited, com João Pedro Coimbra, reinventando “Medo (Susto)”. Em 2007, juntou-se aos Dead Combo para recriar “Trova do Vento que Passa”, homenagem a Adriano Correia de Oliveira. Cada colaboração não é mero desvio, mas continuidade: o timbre de Ana Deus transporta sempre consigo a memória dos Tigres e a memória da poesia.

[Outras Constelações]

Depois, vieram novos corpos sonoros: Osso Vaidoso, em 2010, novamente ao lado de Alexandre Soares; Bruta, em 2015, com Nicolas Tricot; Ruído Vário, em 2017, com Luca Argel. Cada projecto parecia abrir-lhe outra janela para a experimentação: ora mergulhando na electrónica minimal, ora na crueza da palavra nua, ora na música como espaço de encontro com a literatura e a performance.

[A Voz que Lê e Musicifica]

Ana Deus transformou a sua trajectória numa biblioteca sonora. Musicou poesia de Alberto Pimenta, Ernesto de Melo e Castro, Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, Bocage, Camões, Natália Correia, Judith Teixeira, Ângelo de Lima, Mário de Sá Carneiro, Sylvia Plath, Rainer Maria Rilke, William Blake e, em permanente diálogo, Regina Guimarães. Essa escolha revela uma genealogia estética: a voz como ponte entre séculos e línguas, entre cânone e marginalidade, entre tradição e ruptura.

Cada poema musicado não é apenas canto: é leitura em voz alta, uma leitura que se prolonga em som. A voz torna-se assim página vibrante, devolvendo ao texto uma corporalidade inesperada.

[A Persistência do Silêncio]

Em 2022, em colaboração com Marta Abreu, apresentou “Eu fui silêncio”, performance centrada na leitura de autoras censuradas. A escolha do tema é reveladora: para Ana Deus, o silêncio não é ausência, mas presença invisível, espaço de resistência e de memória. A sua voz, neste contexto, não se ergue para preencher o vazio, mas para o tornar audível, para dar corpo ao que fora apagado.

[O Timbre como Corpo]

A singularidade de Ana Deus encontra-se na forma como articula a sua voz: o timbre é claro, mas atravessado por uma sombra que lhe dá densidade; o registo médio é onde assenta a maior parte da sua emissão, mas o fraseado é moldado pela palavra, e não pela procura de virtuosismo melódico. A interpretação privilegia a clareza do texto, o peso das sílabas, a respiração que interrompe e fragmenta a linha melódica.

Na tradição da canção portuguesa dos anos 90, dominada por timbres mais “radiofónicos”, a voz de Ana Deus impôs-se pela diferença: não seduz pela doçura, mas pela estranheza; não procura a linearidade, mas a fricção entre melodia e palavra. É uma voz que lê tanto quanto canta, que declama tanto quanto se deixa conduzir pela música. O seu modo de articular aproxima-se, por vezes, da recitação, como se cada canção fosse antes de mais uma página em voz alta.

Do ponto-de-vista etnomusicológico, o gesto de Ana Deus revela um cruzamento raro: um canto que se coloca ao serviço da poesia, mas que simultaneamente a reconstrói, devolvendo-lhe o corpo que o papel retira. Esse modo de cantar não depende de ornamentos, mas de tensões subtis entre som e silêncio, entre ataque e suspensão. É nesse espaço intermédio que reside a força da sua interpretação.

[Horizonte em Aberto]

A trajectória de Ana Deus é feita de deslocações, metamorfoses e diálogos. Do Ribatejo ao Porto, dos Ban aos Três Tristes Tigres, das colaborações pop às experiências performativas, do canto às leituras de poesia censurada. Mais à frente neste ensaio, veremos como essa voz continua a atravessar os diferentes territórios da música portuguesa contemporânea, inscrevendo-se como um dos rostos mais singulares de uma tradição em permanente reinvenção.



[A Palavra que se Faz Corpo: retrato de Regina Guimarães no cinema, na poesia e na canção]

[Porto, 1957: um nascimento debruçado sobre muitas artes]

Regina Guimarães nasceu no Porto, a 4 de Setembro de 1957. Cresceu e permaneceu na cidade, transformando-a em laboratório vivo da sua escrita. Professora universitária em instituições como a FLUP, a ESMAE e a ESAD, construiu uma carreira que nunca se restringiu a uma só disciplina. A sua obra desenvolveu-se em simultâneo ou em ciclos alternados: poesia, teatro, cinema, tradução, crítica, canção. Sempre como se cada linguagem fosse apenas uma dobra de uma mesma superfície criativa.

[Uma Escrita de Impacto Sonoro]

A poesia de Regina caracteriza-se por uma musicalidade particular: versos que parecem escritos já a pensar no eco da voz que os irá proferir. São páginas atravessadas por imagens intensas e bizarras, um léxico onde o estranho não é marginal, mas central. A palavra não é ornamento; é matéria física, capaz de instaurar uma cadência rítmica que se prolonga muito para além do papel. É por isso que, quando os Três Tristes Tigres nasceram, as suas letras se tornaram o alicerce fundamental: o verso de Regina era já música antes de ser musicado.

[A Constelação Hélastre]

Desde 1975 partilha a vida e a criação com Serge Abramovici, conhecido como Saguenail. Com ele fundou a editora Hélastre e um vasto conjunto de obras em vídeo e cinema. Juntos, assinaram filmes, traduziram textos, organizaram oficinas, criaram redes de colaboração. A relação entre ambos é uma prova da forma como Regina entende a criação: não como gesto solitário, mas como diálogo contínuo, feito de atritos, cumplicidades e revisões.

[O Gesto Cívico e Cultural]

Regina esteve sempre ligada a movimentos de difusão cultural. Foi directora da revista A Grande Ilusão, presidiu à associação Os Filhos de Lumière, programou ciclos de cinema como “O Sabor do Cinema” no Museu de Serralves, integrou a equipa do cineclube nómada Nove e Meia, co-fundou o Centro Mário Dionísio e lançou, em 2007, a Leitura Furiosa. A sua vida artística não se dissocia da sua vida cívica: ambas se iluminam, numa relação de intervenção constante.

[Entre Traduções e Palcos]

O trabalho de Regina como tradutora é extenso e decisivo. Trouxe para português autores como Corneille, Molière, Musset, Claudel, Sartre, Beckett, Brecht, Koltès. A tradução, no seu gesto, não é mero exercício de fidelidade; é reescrita, é acto de devolver a língua estrangeira a uma vibração própria em português. Em paralelo, colaborou com o Teatro de Marionetas do Porto e com o Balleteatro Companhia, escrevendo peças e guiões, explorando a intersecção entre palavra e corpo, entre texto e gesto.

[A Letrista que Molda o Som]

Nos Três Tristes Tigres, Regina é a arquitecta textual. As letras que compôs são o material de base com que Ana Deus constrói a sua interpretação vocal e Alexandre Soares o seu tecido instrumental. A sua escrita instala-se nas canções como um alicerce que resiste ao tempo. O mesmo aconteceu em colaborações com os Clã, onde as suas palavras se tornaram refrão, imagem sonora, matéria cantável.

Se a voz de Ana Deus se debruça sobre as palavras, é porque Regina escreveu páginas que pedem esse corpo vocal. A força da sua escrita reside justamente aí: na capacidade de já conter ritmo, cadência e ressonância. Cada poema seu é, em si mesmo, uma partitura em potência.

[Cinemas, Livros, Eco]

A sua filmografia, extensa e em grande parte realizada em parceria com Saguenail, mostra outra faceta: a da imagem em movimento como extensão da poesia. O cinema de Regina não busca narrativas lineares, mas composições de fragmentos, ecos visuais de uma escrita que se reconhece no inacabado e no múltiplo.

Na poesia, desde o primeiro livro (A Repetição, 1979) até títulos recentes como Caderno das Duas Irmãs e do que Elas Sabiam (2021), percorre um arco de mais de quatro décadas de escrita. Uma obra que não se cristaliza, mas se reinventa. Em 2022, a sua literatura chegou ao cinema de animação, quando David Doutel e Vasco Sá anunciaram a longa-metragem Una, baseada num dos seus livros, cruzando o tema da ecoansiedade e da exploração do lítio com a sustentabilidade ambiental.

[A Palavra em Estado de Música]

Mais à frente neste ensaio, voltaremos a ver como a palavra de Regina Guimarães se inscreve na história da música portuguesa contemporânea, ao lado da voz de Ana Deus e da guitarra de Alexandre Soares. Aqui, basta dizer que a sua escrita funciona como um sismógrafo: capta vibrações da língua e devolve-as em páginas que já soam. E quando atravessa o território da canção, esse sismógrafo transforma-se em bússola, orientando o gesto interpretativo e a construção sonora.



[A Guitarra como Cartografia: retrato de Alexandre Soares entre bandas, palcos e paisagens sonoras]

[Primeiras Cordas, Primeiras Rupturas]

Alexandre José de Medeiros Pereira Soares nasceu no Porto a 15 de Junho de 1958. Começou pela guitarra clássica na adolescência, mas cedo se deixou seduzir pela eléctrica, pela possibilidade de multiplicar timbres e rugosidades. Nos anos setenta, chegou a integrar os Pesquisa, embrião dos Táxi, mas foi em 1980, ao lado de Vítor Rua e Toli César Machado, que co-fundou os GNR. Ali, a sua guitarra e a sua escrita definiram os contornos iniciais de uma das bandas mais marcantes da pop-rock portuguesa.

Assumiu vocalizações nos primeiros singles — “Portugal na CEE” e “Sê Um GNR” —, antes de mergulhar nas texturas instrumentais dos álbuns Independança, Defeitos Especiais, Os Homens Não Se Querem Bonitos e Psicopátria. O seu gesto criador, no entanto, pedia horizontes mais abertos, e em 1987 abandona os GNR, insatisfeito com os rumos do grupo.

[Um Projecto Global: a Experiência da Autonomia]

Em 1988 lançou Um Projecto Global, álbum maioritariamente instrumental, onde já se anunciava a sua paixão por cruzar guitarras com electrónica, harmonias suspensas com atmosferas quase cinematográficas. O tema “Luzes de Hotel”, com letra de Pedro Ayres Magalhães, mostrou a sua apetência pela canção como espaço de intimidade e desvio.

[Feridas, Interrupções e Regresso]

Um acidente de viação em 1990 obrigou-o a suspender a prática da guitarra durante dois anos. Esse silêncio forçado levou-o a experimentar outras funções, como a operação de som ao vivo para os Ban, antes de regressar em 1992 com o projecto Zero e, logo depois, com uma colaboração que mudaria a sua trajectória: os Três Tristes Tigres.

Primeiro, em Partes Sensíveis (1993), depois na versão de “Anjinho da Guarda”, homenagem a António Variações, e, finalmente, na plena integração do colectivo. Nos Tigres, a sua guitarra encontrou um espaço ideal: podia ser melodia, textura, dissonância, ambiente.

[Guia Espiritual e o Reconhecimento]

Em 1996, Guia Espiritual trouxe-lhe o reconhecimento público. O álbum, celebrado pela crítica e pelo público, valeu-lhe a distinção de “Compositor Português do Ano” atribuída pelo jornal Público em 1998. A sua escrita musical tornou-se sinónimo de rigor e risco, combinando electrónica, guitarra e programação com uma profundidade emocional invulgar.

[Entre Cinema, Teatro e Dança]

O trabalho de Soares não se restringiu às bandas. Compôs para teatro — Coração na Boca (1990), Buenas Noches, Mi Amor (1999) com textos de Al Berto —, para cinema — Sapatos Pretos (1998) e Ganhar a Vida (2001), ambos de João Canijo —, e para dança, numa colaboração duradoura com a coreógrafa Né Barros. Espetáculos como Vooum, No Fly Zone, Exo, Vaga, Dia Maior, Segundo Plano ou Estrangeiros mostram como a sua música se adapta ao corpo em movimento, tornando-se chão rítmico ou atmosfera narrativa.

[A Estética do Demorado]

Sobre o seu processo criativo, Alexandre Soares confessou: “Não sou muito rápido a trabalhar. (…) A grande questão, quando estou a fazer música, é estar emocionalmente ligado aos temas.” Esta relação íntima com a matéria sonora é visível na forma como trata a guitarra e a máquina: ambos como extensões do corpo, ambos como ferramentas de emoção. A electrónica, nas suas mãos, não é fria; é orgânica, respirada, pulsante.

[A Guitarra como Paisagem]

Do ponto de vista musicológico, o estilo de Soares caracteriza-se por uma exploração constante das camadas sonoras. A guitarra não serve apenas como suporte harmónico, mas como cartógrafa de atmosferas. Utiliza arpejos repetidos que criam sensação de transe, distorções que funcionam como rugosidades dramáticas, e silêncios estratégicos que expandem a escuta. O seu trabalho pode ser lido como um mapa sonoro: cada tema abre um território, uma geografia de reverberações.

Nas gravações com os Três Tristes Tigres, a guitarra de Soares é ponte entre a palavra e a voz: recorta espaços para a respiração de Ana Deus, amplifica a densidade poética de Regina Guimarães, sustenta o diálogo entre silêncio e som.

[Um Nome em Movimento Contínuo]

Da fundação dos GNR às experiências com dança contemporânea, das colaborações em teatro às canções em parceria com outros músicos, Alexandre Soares construiu uma obra que se movimenta entre géneros e linguagens. Mais à frente neste ensaio, ao cruzarmos a sua guitarra com a voz de Ana Deus e a palavra de Regina Guimarães, veremos como se desenha a geometria criativa dos Três Tristes Tigres: um triângulo em que cada vértice é distinto, mas onde todos ressoam num mesmo corpo colectivo.



[A Arca como Metáfora do Regresso]
Um álbum-carta ao mundo

Arca surgiu no passado mês de Setembro como quinto álbum dos Três Tristes Tigres, mas também como testemunho de uma segunda vida. Depois de um silêncio prolongado, a banda reaparece com a mesma tríade fundadora — Ana Deus, Regina Guimarães, Alexandre Soares — agora mais densa, mais consciente da sua genealogia e do seu tempo.

Este disco apresenta-se como uma colecção de cartas de amor ao mundo. As letras de Regina Guimarães apontam o desejo de contacto, de contágio, de interrogação. São páginas onde o detalhe revela o todo, e onde a intimidade individual se projeta em escala planetária. A música de Soares e Deus constrói cenários híbridos: guitarras e sintetizadores, percussões electrónicas, timbres acústicos como a flauta de Clara Saleiro, todos entretecidos em camadas que sustentam o peso das palavras.

A Arca é aqui imagem dupla: veículo de migração e refúgio contra o dilúvio, mas também espaço de partilha, aldeia em viagem. É uma metáfora do colectivo — humano e não-humano — em deslocação permanente.

[“Água”: Anatomia de uma Canção]
Música em estado líquido

Entre as canções, “Água” condensa o espírito do álbum. A letra de Regina Guimarães inicia-se com a imagem de corpos fugidios — “Fugiam do nada a nado / duas barrigas e um pulmão de lado” —, descrevendo seres anfíbios que rastejam do lodo até ao cais. A canção convoca peixes, tritões, sereias, dragões, centauros: criaturas híbridas, habitantes de margens, seres do entre-mundos.

Do ponto de vista filosófico, o poema interroga os espaços de passagem: “Mas onde mora o avesso? / O oposto sem reverso”. A água é fluxo, mas também abismo; garante a sobrevivência e, ao mesmo tempo, ameaça dissolver. A metáfora central é a da migração: “Peixes párias foragidos um dia acharão / terras santas e mares prometidos”. A canção fala tanto de deslocações humanas — os exílios, as fugas, as travessias contemporâneas — como de deslocações simbólicas, onde o mito e a imaginação sustentam a sobrevivência.

[A Arquitectura Sonora]

Musicalmente, “Água” trabalha com uma estética líquida: a guitarra de Soares, tratada com reverberações, funciona como corrente submersa; os sintetizadores criam texturas que lembram movimentos subterrâneos; a flauta insere-se como linha aérea, trazendo respiração ao ambiente denso; a voz de Ana Deus oscila entre o canto e a declamação, acompanhando o ritmo quebrado da letra.

A percussão electrónica de Fred Ferreira reforça a sensação de deslocação constante, como se cada batida fosse um remo que atravessa as águas. O baixo de Rui Martelo ancora o movimento, criando chão para o fluxo sonoro. É uma composição onde cada instrumento contribui para uma sensação de deriva, mas uma deriva com direcção.

[Entre Etnomusicologia e Filosofia]

De um ponto-de-vista etnomusicológico, “Água” pode ser lida como parte de uma tradição da canção portuguesa que dialoga com a oralidade, mas também com a contemporaneidade global. A utilização de imagens mitológicas (tritão, sereia, dragão) insere a letra numa genealogia mediterrânica e atlântica, enquanto a instrumentação mistura linguagens do rock, da electrónica e da música erudita contemporânea.

Filosoficamente, a canção pergunta pelo “avesso” e pelo “oposto sem reverso”, remetendo para a impossibilidade de fixar fronteiras entre vida e morte, entre humano e animal, entre mito e realidade. A afirmação final — “O planeta é vossa aldeia / O planeta é nossa aldeia” — transforma a canção em manifesto ecológico: não há separação possível entre espécies, todos habitamos a mesma casa líquida.

[Arca como Síntese]

O álbum Arca confirma que os Três Tristes Tigres continuam a reinventar-se. Se nos anos 90 foram aclamados pela ousadia de fundir poesia e canção, agora, em 2025, mostram como essa fusão pode tornar-se manifesto filosófico e político. “Água” é exemplo disso: música e palavra convergem para um discurso sobre migração, ecologia e pertença planetária.

Mais do que um regresso, Arca é uma continuidade amadurecida. Cada faixa é uma carta lançada ao mundo, uma tentativa de inscrever na canção uma consciência de tempo, espaço e comunidade. Se o nome do disco evoca salvação e viagem, é porque os Tigres compreendem que a música é também isso: arca de sobrevivência, veículo de memória, promessa de futuro.


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