Digital

Qez

Junking Cereals

Yanked Beats / 2023

Texto de João Morado

Publicado a: 13/09/2023

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É até à Beira Litoral que se tem de viajar para se conhecer um dos centros de operações da Yanked Beats, coletivo de produtores, promotores, designers gráficos e DJs portugueses orientado para o footwork, mas que não deixa de parte nenhuma das tendências da bass music. Num catálogo que conta já com praticamente uma dezena de edições prontas a serem gratuitamente descobertas através do Bandcamp, encontra-se música de Poj, PUFF.magic & Hypersteria, ETHR, LowfatiK, Insignio, Fourtwenty Sounds, Klosah, entre outros. Com bases distribuídas entre Lisboa e Aveiro, a Yanked Beats reúne, então, uma comunidade criativa a seguir com atenção, principalmente por todos aqueles que se interessem pela nova produção eletrónica nacional. O último EP da editora, Junking Cereals, é da autoria do produtor Qez, que assim por ela se estreia com um trabalho que adiciona um novo vértice, polido pelas formas do hip hop, à já anteriormente poliédrica geometria musical desta etiqueta. Qez é um nome conhecido no underground do hip hop tuga, tendo já colaborado com nomes como $TAG ONE, Trafulha, Jonny Lock ou Vorm.

Além de membro integrante da Yanked Beats, Qez é também um dos principais pilares do coletivo Bairrada Krew, indubitavelmente um dos mais ativos centros nevrálgicos da região da Bairrada no que toca à criação artística. É deste vulcão em permanente erupção que tem brotado grande parte da produção musical que se faz nesta terra de solos barrentos e encostas suaves cobertas de vinhas, produção essa que apesar de gravitar maioritariamente em torno do hip hop e suas geografias adjacentes, estende-se também a outros campos musicais como o trip hop, downtempo, jungle, drum & bass e techno. E caso ainda seja necessário demonstrar que a Bairrada é muito mais do que apenas espumante e leitão, atente-se, então, com seriedade, nos trabalhos de MCs como Fakaz, Fenómeno e Negrão, na criação musical de excelência de produtores como Kookz ou THE CHARACTER, ou na criação fílmica e fotográfica de FAZE

Numa era em que as assimetrias de oportunidades estão na ordem do dia e são discutidas ampla e abertamente por várias camadas da sociedade (finalmente!), prescinda-se, de uma vez por todas, de uma visão linear sobre estas desigualdades e abrace-se uma matriz multidimensional que inclua variáveis como a distribuição geográfica, grupo étnico, herança cultural e acesso à educação como fatores de relevância fundamental a considerar para a estruturação de uma sociedade justa e equitativa. Particularizando para o contexto que aqui é relevante, num país em que os polos criativos continuam excessivamente cravados no Porto e em Lisboa, pede o bom senso que se abandone esta visão bipolar e que se abrace, por fim e definitivamente, a multipolaridade cultural que verdadeiramente traduz a riqueza criativa e artística de que somos detentores. Muito se tem feito nesse sentido aqui pelas páginas do Rimas e Batidas, mas poucos remos dificilmente conduzem toda uma embarcação a bom porto. Até que a caixa de velocidades se harmonize por completo de norte a sul, uma compreensão holística da produção artística nacional continuará deficitária, e, consequentemente, não passaremos de um país em via de desenvolvimento cultural – é mesmo isso que queremos ser? Quantos talentos, no presente, não se encontram excluídos dos circuitos artísticos e culturais portugueses por fatores de ordem não-artística? Quantos, no passado, nunca conseguiram que o seu trabalho chegasse a ver a luz do dia, por total abandono geográfico, acabando eventualmente por desistir? Quantos, nos próximos anos, terão de viver a mesma pena? Quantos?

Notas de ordem descritiva e apelos à ação transformadora à parte, foquemo-nos então em Junking Cereals, EP de Qez, formado por seis músicas que, somadas, tangenciam os 15 minutos de duração. De um EP com esta curta extensão temporal, não poderíamos esperar mais do que uma cápsula compacta. Contudo, verdade seja dita, a condensação deste trabalho em seis microdoses em nada lhe retira qualidade, já que é formado por matéria suficientemente densa para que possa ser lenta e múltiplas vezes mastigada de forma a apreciar todas as suas texturas e sabores. A metodologia de produção adotada por Qez é sólida e rica em referências, e o produto final exponenciado pela notável masterização de Afonso Silva, que também assinou a capa do EP. E ainda que neste lançamento o produtor bairradino se aventure por novas paisagens sónicas em que se afasta da beatologia mais tradicional, há também em Junking Cereals elos concretos que estabelecem ligações de continuidade com os seus trabalhos anteriores: por exemplo, nos temas de puro hip hop – viz., “Art Blakey” e “TV Dinners” (sim, remix do tema homónimo de The Alchemist) –, Qez, à lá Madlib, assalta os cofres de editoras de jazz como a Blue Note para deles sacar phat-as-f*ck samples aos quais sobrepõe acapellas da nata das rimas, em que figuram rappers como MF DOOM, Westside Gunn, Sideshow e Boldy James.

Além do mais, e porque ainda agora falámos – literalmente e em sentido metafórico – da exploração de novas geografias, repare-se também nas frescas e até aqui inexploradas aproximações de Qez ao footwork, as quais se ouvem em “Um”; no tropicalismo exalado por “Ye Me Le”, tema que transpõe a música de Sérgio Mendes para um universo de dança apropriado para ser passado em clubes; e nas vibrações de “Good 2 Me” e “Millie Jakson”, que induzem a headbangings ensopados em groove e soulfulness. Junking Cereals não nos dá Donuts, mas certamente que nos dá cereais – e está tudo bem com isso. Ainda bem que não foram deitados para o lixo.


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