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Fotografia: Filipe Casimiro (& Arthuro Alves na cor e Fayska na arte)
Publicado a: 23/06/2022

Materializar o impossível. Todos os dias.

Puta da Silva: “Cada imigrante que trabalha duro para conquistar algo aqui nessas terras está trabalhando na base do milagre”

Fotografia: Filipe Casimiro (& Arthuro Alves na cor e Fayska na arte)
Publicado a: 23/06/2022

A potência que é Puta da Silva e a capacidade que a sua arte tem de conectar diferentes realidades. Para que todas se vejam, se aceitem e respeitem. Sem grandes introduções, deixamos que as suas respostas digam tudo o que há para dizer. Fica apenas, antes disso, a informação que a poderão ver ao vivo e a cores esta sexta-feira, dia 24 de Junho, no Impulso, festival nas Caldas da Rainha, e no dia seguinte no Arraial Lisboa Pride



De onde vem a Puta da Silva? Onde é que ela está neste momento e para onde é que ela vai?

A Puta da Silva é a parte mais forte de mim, faz parte da minha vida aqui em Lisboa, que me transformou nessa potência que é a Puta. 2016 foi quando eu me mudei para cá. Vim como artista, como professora, que era o meu trabalho no Brasil. A cidade não está preparada para a imigração, principalmente para pessoas LGBTQIAP+, transvestigéneres, racializadas ou outras existências dissidentes. 

No começo passei maus bocados aqui, não consegui desenvolver nada no universo artístico. Vivi vários processos de despejo na cidade, de morar na rua, ter que pedir comida para sobreviver. Até que a prostituição me salvou. Eu pertencia à noite e foi ali na noite que a Puta da Silva surgiu. Fui entendendo como dialogar com o patriarcado e me manter viva nesse diálogo, nesse encontro. E ainda estabelecer uma relação de trabalho autossuficiente. 

Então passei três anos nesse processo, vivendo apenas da noite e distanciada dos lugares artísticos. A prostituição foi me dando autonomia, tanto financeira como intelectual. A autonomia que o estado não me deu a prostituição me deu, a noite me deu. Essa sagacidade que o dia não me dava, porque as possibilidades de emancipação estavam distantes para mim. E eu fui entendendo a Puta da Silva enquanto um equipamento de protecção individual. 

No processo da noite, eu entendi que eu era forte e que eu podia enfrentar o dia, eu podia voltar para o dia. E que esses homens que eu encontrava na noite e que dominavam o dia eram muito frágeis. Sabe, muito inconsistentes, eles têm muitos segredos, digamos.

E foi aí que comecei a materializar essa história que aconteceu – real –, mas num universo artístico. Comecei a conceituar o EPI Travesti, que é o primeiro álbum da Puta da Silva. Que está sendo narrado também nos shows – que contam um pouco da minha trajectória, mas também dos meus encontros na cidade. O que o meu olho viu, o que o meu corpo encontrou. Pessoas transvestigéneres, pessoas negras e racializadas. Há pessoas sem documentação, sem trabalho, pessoas que de alguma forma chegaram até a mim por causa dessas proximidades. A gente de alguma forma ia se mantendo viva e essas escrevivências iam surgindo a partir desses encontros. Por isso, a Puta é um recorte de mim, do meu corre, de quem esteve comigo, e da nossa sobrevivência.

Tu estás a conseguir desbravar terreno, abrir um caminho que não existia em Portugal, eu acho. 

Cada imigrante que trabalha duro para conquistar algo aqui nessas terras está trabalhando na base do milagre. Realmente está utilizando a imaginação para materializar o impossível. E é exactamente isso que estamos fazendo. 

Todo esse trabalho incansável está, a meu ver, a virar a cena artística portuguesa sobre a sua própria cabeça e acho que isso é mesmo essencial que aconteça para que haja aqui um momento de reflexão sobre o rumo que esta está a levar.

Ainda é uma luta diária, ainda é necessário explicar os abismos de oportunidades entre a população cisgénera local, em relação a população transvestigénere racializada imigrante, precisaremos sempre fazer um trabalho didáctico com os espaços artísticos. O ramo da arte pode servir como exemplo para que isso seja aplicado em outros espaços de trabalho também. Mas ainda não é assim que funciona. Para nós não basta entrar nos espaços temos que entrar e deixar as portas abertas, para que outres de nós voltem.

Todos os dias, a cada nova entrada, eu percebo que é muito difícil manter as portas abertas, porque não há diálogo e negociação com essa estrutura colonial, com essa estrutura racista, transfóbica, misógina e tantas outras coisas que ela pode ser. Ela está preparada para nos bloquear, mesmo quando a gente entra. Mesmo quando temos acesso não vamos ter o mesmo privilégio que a população branca privilegiada. Por isso só vamos acreditar na ideia que estamos a virar a cena artística de cabeça para baixo quando houverem pessoas trans-racializadas como júri de processos de seleção artística, como curadoras dos principais espaços de arte, como plateia de espetáculos, como técnicas de montagem, como atendentes de bilheteria, ou seja, embrenhadas em todas as etapas de produção e apreciação artística. 

É uma fortaleza que foi construída ao longo de séculos, talvez até mais do que séculos em alguns desses aspectos. 

Então, para mim está sendo mais trabalhoso estar nos espaços, ter de dialogar com esses velhos hábitos. Ter que explicar isso todas as vezes. Esse processo é mais trabalhoso que o processo de criar. 

Sim, e esses velhos hábitos, essas estratégias de exclusão, reinventam-se constantemente. O problema é esse, uma pessoa acha que já conseguiu encontrar uma forma de entrar e chegar a essas instituições, mas arranjam sempre uma forma de subverter a situação e manterem-te outra vez de fora, é uma luta constante. Eu acho que isso só vai mudar realmente quando houver uma massa de gente suficiente a confrontar essa fortaleza. 

Acho que de alguma forma esse é o trabalho que agente tem desenvolvido na cidade, porque somos muitas pessoas, artistas, profissionais de outras áreas, que têm feito essa forma de enfrentamento – simplesmente por existir. Por existir, por estar em movimento, só com isso já enfrentam a sociedade inteira. 

Mas é justamente isso, a nossa corrida é para existir bem, para continuarmos vivas. Para a gente poder acessar os espaços, mas acessar com confiança, com conforto, com respeito, ter acessibilidade plena, como todas as outras pessoas. Infelizmente, esses avanços ainda têm sido na base do enfrentamento, por exemplo, a minha arte ainda diz muito do meu tempo, dos meus corres e ainda é uma arte de enfrentamento. Por isso, eu não consigo construir utopias, a minha arte é uma arte do agora, da realidade que eu vivo. E é por isso que eu também tento lutar, para movimentar o agora, e o agora é de várias outras, para que eu também possa construir outras narrativas, outras dramaturgias a partir das minhas criações. E é por isso que é urgente que as instituições vejam essa movimentação e criem sistemas de ações afirmativas para a população imigrante, racializada, LGBTQIAP+.

E é essencial também criar esse exemplo. Para as pessoas também terem uma referência: ela conseguiu chegar aqui, é possível eu também lá chegar e estar do lado dela, para que sejamos cada vez mais. Eu acho que é importante abrir esta porta e dizer “venham, passem por aqui também, vamos todes.”

Entendo a coisa do abrir a porta, mas eu acho que ninguém abriu a porta sozinha. Eu tive, sim, uma comunidade grande de imigrantes racializades, transvestigéneres, que abriram, que acessaram essa porta comigo, que foram a força junto comigo. Então, eu também, de alguma forma, trago comigo, e com a ascensão da Puta, a energia, o sonho e o corre de muita gente. Fico feliz se o nosso trabalho servir de exemplo para outras pessoas, mas que elas não tenham que passar pelo que estamos passando. Ainda não existiu a ascensão verdadeira, ainda trabalhamos incessantemente para isso, sem folgas, sem descanso, e sem o devido financiamento para entregar o trabalho que entregamos. Mesmo na cena artística precisamos fazer diversos trabalhos paralelos para sermos devidamente remuneradas, e que nem sempre dialogam com o nosso ideal político. 

Sinto que é também algo que vai buscar muito também às raízes ancestrais das pessoas imigrantes. Essa ancestralidade da qual em Portugal e em qualquer país ocidental branco fomos abdicando para pertencermos a este ideal hegemónico branco. Tornámo-nos um povo branco culturalmente bastante homogéneo para garantirmos o nosso poder e domínio sobre outros povos. Já não temos acesso a essa riqueza cultural, espiritual e ancestral porque optamos por cortar essas raízes para pertencermos a este bloco de supremacia branca. Pessoas imigrantes que têm essa consciência, que ainda conseguem manter intactas as suas raízes mesmo depois da violência e apagamento causados pelo colonialismo, mesmo depois de toda essa violência brutal para tentar apagar o vosso passado e as vossas heranças culturais – sinto que isso também é uma energia que vos propulsiona para a frente. Sentes que essa energia existe no trabalho que fazes? 

Sim, eu fico tentando pesquisar também um pouco o que é a ancestralidade travesti. Tem muita coisa da prostituição na História, tem muito da Puta na História. E tem muito da população racializada. Foi por esses caminhos que eu fui entender também essa ancestralidade da Puta na diáspora, na imigração. Porque estamos nesse movimento há muito tempo: de fuga, do corre. 

A prostituição, principalmente para as travestis, há muito tempo que é fruto dessa falta de acessos. O que restou por muito tempo para nós foi a prostituição e a maioria de nós é racializada. 

Quem são essas entidades da noite? Quem é que nos protege quando a gente está sozinha? Quem são? Quais são os sons da noite? Quais são os equipamentos de proteção individuais reais de uma travesti que trabalha na prostituição deve utilizar? E que utilizou até aqui para se manter viva e que ensinou para a próxima, e que foi ensinando para outra e para outra e para outra, fazendo com que essa profissão ilegal —  nem é bem ilegal, nem deveria ser ilegal — mas que essa profissão fosse chegando até aqui, aos dias de hoje. Esta profissão enfrentou guerras, catástrofes, políticas, pandemias – e se mantém viva. Essas mulheres, essas travestis, esses homens que foram sobrevivendo nas margens têm muito anos, sabe? E tudo isso nos é passado pela oralidade, a nossa ancestralidade não está escrita em livros, está na vivência, no corre, nas formas de sobrevivência e nas entidades que nos protegem.

Nas performances ao vivo tens um posicionamento político bastante vincado. Durante a tua performance não ocultas isso, inclusive pedes por amor e apoio às travestis e às pessoas transgénero – quando há elementos mais conservadores no público, notas as reações dessas pessoas? Como te sentes nesse local de confronto? É nesse equipamento de proteção individual que vais buscar também segurança para estares nesse lugar?

Tudo o que a gente já rodou até aqui teve uma boa recepção. Foi chique. Mas eu imagino que durante o show as pessoas vão passando por vários estados. Eu acho que quem fica até o final do show vai ter uma percepção muito mais alargada do universo da Puta. Cada música vem trazendo um tema: pode começar a falar sobre prostituição – que é logo um tema que pode assustar, que pode distanciar. Assim como as questões de género, as questões raciais, elas podem distanciar. As pessoas conservadoras habitualmente já se distanciam desses temas, obviamente elas vão ter mais dificuldade de entender a mensagem. Quando as pessoas escutam o que é, no meu caso, uma ex-profissional do sexo, travesti, preta, racializada, elas já vão munidas de um julgamento, já pressupõem várias coisas a partir desse imaginário que é colocado. Então, quando chegam no show, elas encontram outra coisa. Elas levam um susto. A maioria dessas pessoas só demonizam as travestis, só demonizam as religiões de matrizes africanas, só demonizam as pessoas racializadas e tudo que provém dessas pessoas por falta de conhecimento. Então, quando encontram uma travesti inteligente, artista, com a energia super boa, com uma vibe super boa – elas começam automaticamente a desestigmatizar, a desfazer  tudo isso que trazem dentro das malas delas. O show é também esse momento de esvaziar essas malas. É um processo um pouco dolorido, quando você abre a sua mala lá, com tudo o que você trouxe na vida e você descobre que dentro dessa mala tem preconceito, tem racismo, tem xenofobia, tem todos esses esses temas que a gente traz no nosso diálogo artístico e você, como membro do público, de alguma forma tem que tirar isso da sua mala. Sentir a sua mala com peso diferente, e ir-se acostumando com aquilo que vai ficar para trás. É um processo complexo, mas é tão lindo quando a gente consegue ver. 

Mas para a nossa surpresa muitas dessas pessoas se encantam com o show, se soltam, dançam, e estão atentas com toda a produção: a sonoridade, o visual, o figurino, performance – são vários elementos e quando chegam ao final do show estas pessoas também vão levar essas memórias e ideias para casa. Vão levar reflexões para casa. Já tivemos na plateia diversos homens heteros cisgéneros que ao final do show vieram nos parabenizar, nos abraçar e agradecer a aula que foi dada, ou confessando que se identificaram com a música “Hetero Curioso”. Para nós chega ser engraçado, a música contém muita ironia, mas para eles serviu como uma possibilidade de descoberta à sua sexualidade. 

E eu acho que é compreensível. As pessoas vão se acostumando com os pronomes, se acostumando com essa novidade na vida delas — que a sociedade colocou na marginalidade, colocou na invisibilidade. Então, quando chegamos com toda a nossa potência, com tudo o que a gente é e começamos a frequentar os espaços públicos, a ser valorizadas na cena artística, algo se modifica na forma que estas pessoas nos veem.  



A meu ver, é um processo de liberação do dia que estão a fazer com o vosso trabalho. O dia tem muitas correntes, tem muitas máscaras, tem muitas estruturas que precisam de ir abaixo e de ser reconstruídas. Eu acho que artistas como tu estão a fazer esse trabalho. E é um trabalho muito forte e intenso. Como é que fazes? Apoias-te na tua comunidade para te conseguires manter forte nesse percurso que estás a traçar?

É esse o processo também do álbum EPI Travesti, que está sendo construído single a single e vai contando sobre a história da Puta. Não é propriamente a minha história na prostituição, mas é esse início na noite que cumpre depois todo o seu potencial no dia — tudo o que a noite me deu de equipamentos de proteção individual, de sagacidade, de energia, de confiança, de auto-estima. Para eu poder ensinar para o dia – porque é quase isso que a gente faz – ensinar para o dia, ser pedagógica no dia. Para a gente se emancipar, para a gente se autonomizar no dia também. Porque na noite a gente já está emancipada e autonomizada há muitos anos. Agora é trazer esse processo para o dia.

Eu acho que isso para homens cis heterossexuais deve ser díficil de fazer, terem de se confrontar com o facto de fugirem à heteronormatividade, à cisnormatividade — e pode até levar assim a atitudes violentas e abusivas, porque é de facto algo duro de confrontar numa sociedade patriarcal onde tanto peso é colocado nessa ideia de ser hetero e cisnormativo.

É justamente por todo esse histórico de agressão, distúrbio, de machismo, que a gente constrói essa aula, essa linguagem, esse jeito de dialogar que utiliza a arte, a dança, o audiovisual, a música e que utiliza também esses componentes que vem da nossa ancestralidade travesti. 

O hoje, que é o que nós vivemos aqui e agora, também tem um pouco do que a gente projecta para o nosso futuro – que basicamente passa pela vida, pela ascensão, pela emancipação, pela autonomia. 

Eu acho que a gente tem acertado, porque nós entramos em espaços muito distintos, inclusive espaços maioritariamente cisgénero e brancos, e nós fomos muito aceites nesse sentido do material, da forma que a linguagem artística se tem apresentado. 

Eu acho que tem sido muito positivo. Vários questionamentos surgem, obviamente, acho que é um show para se questionar: tanto a gente que faz, que está ali, lidando com essas temáticas todos os dias, que também nos coloca em movimento e em aprendizado constante sobre os nossos temas — e emprestamos um pouco dessa nossa pesquisa de vivência para uma plateia que às vezes chega ali sem saber nada sobre esse tema. E leva para casa um desafio. 

É mesmo um desafio. Acho mesmo inspirador o trabalho que fazes porque eu tenho noção da quantidade e densidade das estruturas que o teu trabalho está a desafiar, até dentro dos feminismos. Porque com base no contacto que vou tendo com a comunidade activista feminista, não só cá mas mesmo globalmente, há ainda transfobia, discriminação contra o trabalho sexual — uma série de contradições. Como é que posso dizer que estou lutar pela autonomia das mulheres se estou a negar a autonomia e autodeterminação a todo um grupo que muitas vezes são as que precisam mais desse acolhimento na luta? Por isso acho que dares voz e corpo a essa narrativa algo muito poderoso.

Obviamente quando a gente fala de mulheres cis, existe uma gama de possibilidades aí. Mesmo sendo mulheres, pensando politicamente, existe uma gama de possibilidades. Eu não desisti delas. A minha mulheridade obviamente foi construída, junto com outras pessoas transvestigéneres. Uma boa parte dessa construção da minha mulheridade também vem de mulheres pretas que eu leio, que cruzaram a minha vida, que me ensinaram muito sobre o que é ser mulher, o que é estar em sociedade. Trago muito nas minhas músicas essa referência da mãe preta. Essa mãe preta que também está ali na base social, que é a base social, e que de alguma forma ampara pessoas transvestigéneres. Um grupo de mulheres negras que vem pensando no futuro, que vem pensando em possibilidades, que estão com a gente. Eu tive essas mulheres. Então, eu prefiro olhar a mulheridade por esse recorte. Por um recorte de algumas mulheres pretas e também de algumas travestis pretas. Para não esquecer o que realmente importa. Quando a gente se preocupa muito com o que ou com quem quer nos matar, com quem quer nos impedir, com quem quer nos silenciar, a gente acaba também ampliando essa força negativa, tornando-a maior do que ela é. Então, eu durante esse processo prefiro focar na nutrição. Ao invés de olhar para o caos como um todo, foco no que me nutre, no que constrói de alguma forma. 

Eu acho que é mesmo nessa busca pela alegria, pelo prazer e pelo bem estar também o que torna o radicalismo individualmente sustentável. OK, a sociedade está na m*rda e está tudo contra mim, mas eu não vou deixar que isso me impeça de viver a minha vida, de ser feliz e de chegar onde eu quero chegar. Às vezes essa é a única forma de sobrevivência para muitas pessoas. Estás envolvida com a Casa T desde que ela foi criada?

Sim, fui a idealizadora e uma das fundadoras do projecto, em um momento de desespero, onde já não aguentava mais ver a falta de acessibilidade para habitação de pessoas transvestigéneres na cidade. E junto a Gabriela Gomes, Billie Gunz, Luan Okun e várias outras pessoas da comunidade T fundamos a casa, que completa dois anos de resistência. 

Já não vivo mais lá, mas continuo como colaboradora dos projectos que estamos desenvolvendo.  

A Casa T é o centro de acolhimento, sociabilização e autonomização transvestigénere. Atendemos a comunidade LGBTQIAP+ como um todo, mas temos especial atenção para as pessoas imigrantes racializadas — que geralmente são as pessoas que mais precisam. A Casa T surge a partir dessa necessidade; após eu e várias outras pessoas que fundaram a casa identificarmos tanto nas nossas vidas quanto nas vidas de outras pessoas da cidade que nós estávamos constantemente tendo problemas com senhorios, sendo despejadas. 

A vida também que pessoas transvestigéneres imigrantes levam na cidade passa muito por esse lugar de não conseguir emprego formal, e aí tem que se virar de outras formas. Quando a gente não consegue emprego formal, a gente também não tem acesso à documentação, uma coisa é sintoma da outra, não é? Se você também não tem acesso à documentação, obviamente você não tem empregos dignos, você não consegue alugar uma casa, não consegue fazer um contrato, então fica à mercê de negociações orais e não contratuais onde é frequente o bullying imobiliário. A gente sempre estava à mercê dos senhorios; se decidem mandar você embora hoje, amanhã você tem que sair, mesmo durante a pandemia onde foi dito que seriam proibidas tais práticas.

Por outro lado também passamos por problemas quando foi para construir a Casa T; quando os senhorios sabiam que nós queríamos construir um centro que iria acolher pessoas imigrantes, racializadas, transvestigéneres, eles associavam a prostituição e não queriam alugar. Nós ficamos um mês inteiro em vigília diária todos os dias: tinha uma equipe de pesquisa e uma equipe de visitação, então todos os dias a gente tentava  negociar com senhorios as casas que a gente gostava, as casas que a gente achava que tinha algum suporte para nos receber. E foi muito complexo o processo de conseguir a casa. 

A Casa T foi nos mostrando várias coisas desde o momento da criação dela. Os problemas habitacionais, como é que a gente passa por um processo contratual e consensual de alugar uma casa. Como manter um projecto social que não é assistido pelo Estado? Depois de muita luta conseguimos  transformar a casa numa associação, mas ainda não é uma IPSS. A gente tem um acesso muito mais dificultado e lento às coisas. A Casa T desde que surgiu foi idealizada, fundada, pensada, instituída por pessoas trans e até hoje quem gere tudo isso somos nós, sem nenhum financiamento estatal ou de nenhuma empresa. Então, a gente vive de donativos como o nosso GoFundMe. Que, juntamente com os projectos da casa, temos vários projetos artísticos,  projetos informativos, que de alguma forma auxiliam para pagar aluguel, contas, comida, despesas. Hoje a casa recebe 9 pessoas, mas muitas outras já passaram pela casa durante estes 2 anos. 

Depois quando essas pessoas estão ali, a gente vai descobrindo que é um grande privilégio ter uma casa, ter água quente, ter um banho, ter essa possibilidade. Então, a gente pensa, “ok, não é só a casa, como é que a gente abre alguma possibilidade de autonomia?” Então, a gente cria vários projectos dentro da casa para as pessoas, para os moradores, irem desenvolvendo as suas aptidões, e irem se inserindo no mercado de trabalho. 

A gente está nesse momento em diálogo com empresas, em diálogo com a Câmara Municipal, com outras associações. Também em situações de problemas de saúde, problemas de saúde mental que às vezes precisam de um acompanhamento psicológico, psiquiátrico, ou hormonal também — tudo isso que para pessoas imigrantes é um pouco mais complexo –, hoje temos na saúde pública esses serviços, mas às vezes as pessoas imigrantes não têm acesso e nem sabem dessa possibilidade. Então, desde a informação, até acompanhar a pessoa lá nos lugares onde há esses serviços, a Casa T tem feito esse trabalho de encaminhamento também. 

Não é um lugar para a gente viver para o resto da vida, é um lugar pra gente se autonomizar, respirar, ganhar o fôlego e poder voltar para nossa corrida, para o nosso dia a dia. A Casa T tem esse fluxo de pessoas que está sempre em mudança. Aproveito para pedir para quem estiver lendo para dar atenção para esse projecto, nos apoiar, divulgar, ir em nossos eventos, é muito importante a participação de todes para continuidade e melhorias.

Sentes que isso também tem impacto na tua criação artística?

Foi na Casa T que fizemos o lançamento do nosso primeiro videoclipe “Bruxonas”, foi vivendo ali que consegui descansar dos diversos abusos imobiliários para focar na minha carreira artística. E assim como aconteceu comigo existem diversas artistas emergentes que estão trabalhando incessantemente enquanto vivem lá, tanto em prol da casa quanto em seus trabalhos artísticos pessoais. 

Espero eu que muita coisa, porque quando há só uma demográfica, um grupo homogéneo dominante, isso acaba por matar qualquer ecossistema criativo que possa haver. Não há espaço para crescer se não houver diferenças, se não houver confronto, questionamento, diálogo, se não houver alguma coisa que faça as pessoas reflectirem sobre tudo o que conheceram e experienciaram até hoje. 

É um trabalho muito cansativo, não vou mentir, é um trabalho que me tira muita energia mas que eu eu fico imaginando; se alguém lá atrás não tivesse começado esse trabalho, eu não estaria aqui hoje viva contando. E também não poderia fazer este trabalho para as próximas que virão. Então, de alguma forma, é também pensar a comunidade, de pensar para além da nossa vivência umbilical. Construir pontes a partir disso, desses encontros.

Quais é que são assim os teus projectos para o futuro, ou que projectos recentes gostarias de partilhar?

No dia 25 de Junho, às 20h, vamos nos apresentar no palco do Arraial da Pride desse ano, que é uma conquista muito grande. Será nosso primeiro show em Lisboa em praça pública, no Terreiro do Paço. Vai ser tudo! 

Também já tenho diversas composições que já são apresentadas nos shows, e que estamos trabalhando para gravar as músicas e videoclipes para finalizar o álbum visual EPI Travesti. Até então tivemos uma recepção muito boa de nosso trabalho audiovisual, e é algo que venho desenvolvendo e aprimorando, nossos três vídeoclipes foram selecionados para festivais importantes em diversas partes do Brasil, em Bogotá e Lisboa. Mas todos foram feitos com investimento pessoal e da equipe e, por isso, seria muito importante que produtoras, gravadoras, distribuidoras, espaços de aluguel de equipamentos reconhecessem nosso trabalho e que nos apoiassem para os próximos. 


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