pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2022

O poder da realidade.

Pulla: “O filho de peixe é peixe, não é um cavalo. Eu sou filho de Deus”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2022

No dia 4 de Março de 2023, Pulla desce a Lisboa para actuar no Lisbon Playground, o autoproclamado primeiro festival de grime em Portugal. Foi neste contexto que fomos até ao bairro do Viso para colocar algumas questões ao artista que editou este ano o seu segunda longa-duração, Casos Arquivados.

Podiam prever-se algumas surpresas, afinal estamos a falar de um cantor que, através da sua presença online e de forma independente, tem vindo a mover milhares de interessados para a sua obra e cuja verdadeira identidade é protegida por uma balaclava branca, não lhe sendo conhecidas entrevistas ou aparições públicas. Mais difícil de antecipar foi ainda a palestra privada a que assistimos na primeira pessoa naquela tarde. Durante quase quatro horas seguidas, eu e este formador informal, que, para além do seu conhecimento e vivências, apenas revelou os olhos, viajámos por uma narrativa complexa alimentada por religião, filosofia, tecnologia, biologia e até metafísica . Rapidamente percebemos que o guião que tínhamos preparado era demasiado térreo para a informação que urgia sair daquela cabeça e que justificava a reputação de “sensei”, alcunha pela qual é conhecido na sua zona, tal como confessou.

“Vou-te pintar um cenário”, tomou a iniciativa o artista. “Eu venho de outra geração, cresci a ouvir Red Hot Chili Peppers ou até Amália, o hip hop não estava disponível como está hoje”. Recuamos até ao final dos anos 90, quando teve o primeiro contacto com a cultura. A sua juventude ficou marcada pelas míticas festas no Hard Club. Fazia parte do grupo que trazia calor aos eventos: “Os artistas até perguntavam se não éramos de fora, às vezes éramos uma enchente de 50 gajos”. Apesar de envolvido na cultura e assíduo nos encontros nortenhos, nunca se identificou propriamente com a música que por cá se fazia. Foram os seus primos angolanos que lhe deram a conhecer o que na altura bombava nos EUA – uma descrição mais crua sobre o que se passava nas ruas, sentido que em Portugal tudo se dava através de “metáforas escondidas”, não havia coragem para descrever a realidade tal e qual a sua essência: “Eu nesta altura já era trap, já era drill”.



A Internet ilude-nos e diz-nos que a carreira de Pulla começou com “Não mudava um 🎬”, tema publicado no seu canal de YouTube apenas em 2018, no entanto, durante o pico da popularidade dos fóruns de hip hop tuga, estiveram online alguns temas ou improvisos da sua autoria durante curtos períodos de tempo. “Cheguei a ser contactado pelo NGA para colaborar, mas ainda não era a minha altura, ainda não estava preparado enquanto artista”. Curiosamente foi apenas em 2016, enquanto conduzia ao som de Adele — que passava na rádio –, que sentiu a inspiração para voltar ao estúdio e iniciar o seu percurso a sério, da forma mais profissional possível, “sem o apoio da indústria”, deixa claro.

“Onde há Viso de baixo e há Viso de cima” há também um visionário com fome para levar o nome do seu bairro a todos os cantos do mundo. Foi durante uma crise de identidade que relembrou a importância da sua missão: “Não estava bem, fui até à minha escola primária, onde tudo começou” e concluiu que não há nenhuma figura de sucesso que tenha saído dali. Foi com facilidade que enumerou jogadores de futebol ou empreendedores vindos de bairros vizinhos, enquanto nos questionava quantos conhecíamos dali, do Viso. Começámos a perceber melhor a sua revolta contra a indústria, meios de comunicação e plataformas de divulgação, nomeadamente na disparidade de atenção mediática que existe entre o norte e o sul: “São todos iguais, não vão acreditar em ti”.

Servindo-se de uma carteira quadrada, exemplificou como entre duas entidades não há desenvolvimento se não existir uma atitude circular: “Se estiver eu e tu, e eu disser que comprei um Mercedes, o teu ego não te permite ficar feliz por mim, então a nossa relação é um quadrado, não há progresso. Agora se tu conseguires perceber que com o meu carro podemos ir os dois mais longe, aí estamos a crescer. Da mesma forma que se estivermos a discutir pontos de vista opostos, nunca vamos sair daqui, cada um tem a sua verdade. Só quando é adicionado um terceiro elemento e dá razão a um de nós é que se chega a alguma conclusão. O verdadeiro poder das pirâmides está no topo, no elemento que eleva a base e o quadrado.”

Há uma certa arrogância no tom das suas afirmações, algo que assume: “Eu sou arrogante para quem é humilde, mas é porque as pessoas não percebem o papel que estou a desempenhar”, explicando que a sua postura é necessária para reclamar o trono dos que se consideram reis da indústria e que precisa de reivindicar os seus feitos: “Eu preciso deles”, referindo-se aos rappers mais estabelecidos, “para as pessoas perceberem o meu tamanho. Eu não tenho comparação, mas pelo menos assim podem comparar-me em pequenos aspectos”. E reforça a subjectividade das opiniões de quem observa: “Se tivessem alguém com más intenções a tratá-las mal, iam questionar se eu afinal sou mesmo arrogante. Só dizes que esse homem é alto porque está um mais baixo ao lado.”

Por esta razão, o rapper sentiu a necessidade de os superar cumprindo as regras do jogo: Silêncio Vale Ouro. Numa altura em que comercialmente é mais interessante lançar singles devidamente publicitados para atrair picos de hype, decidiu apostar num álbum de 12 faixas: “Os dinossauros gostam de álbuns, então eu dei-lhes o que eles querem. Vi mais um buraco, não existe um álbum 100% drill, não existe um álbum 100% drill português, nem existe drill 100% português”. Esta foi a sua proposta para responder às exigências de um sistema que quer derrubar. Utilizou a figura do Pelé para contextualizar a eternidade que pretende conquistar: “Em cada época é relembrado o recordista e o pioneiro. Um dia, o Ronaldo vai ser substituído, mas as pessoas vão lembrar-se do Pelé porque foi o primeiro”. Este projecto foi o grito de Pulla na cultura: “Olhem para mim, tenho o primeiro álbum de drill português em Portugal”.

A sua concepção desenvolveu-se privilegiando a inovação e o profissionalismo. Da sua infância veio a ideia de criar um boneco de si mesmo e vender como formato físico do álbum, ideia que também reclama como sendo inventor. Para além disso, teve-o também disponível em pen-drive, CD e NFT: “O Google diz-me que fui o primeiro, eu preciso de saber. Em três dias úteis esgotei o formato físico, antes de estar disponível na Internet”. Confessa ainda que conseguiu fazer dinheiro com a música, apesar de não ser esse o seu combustível. “No final, o dinheiro é uma linguagem universal de poder”. O projeto ficou disponível fisicamente no dia 12 de Fevereiro de 2021 (12/02/2021) — um palíndromo e ambigrama — “nesse dia, os planetas alinharam-se e só volta a acontecer daqui a milhões de anos”, explica, “quando em 2022, o Kanye West anunciou o seu projecto num novo formato físico [Stem Player] para 22 de Fevereiro, eu percebi perfeitamente o que ele queria, foi o grito que eu precisei de dar um ano antes”. Sublinha também que criou o “FaDrill” em “Esfrega o Olho II”, tema em que recorreu à guitarra portuguesa de Diogo Silva e ao bandolim de Renato Oliveira para registar a primeira fusão entre fado e drill. 



Através deste projecto foi capaz de realizar um dos milagres a que se propõe: “eu transformei água em vinho, eu fiz chover peixe”. Contou que quando empresas como o TikTok ou a Verse apostaram numa estratégia de marketing que consiste em pagar por recomendações que resultem em novos utilizadores, colocou toda a sua rede a trabalhar, ensinou-os a criar valor a partir do nada: “Tu vinhas comprar o meu álbum, ainda ganhavas dinheiro. Eu ensinei os meus filhos a pescar e todos juntos fizemos uma grande refeição”. Relembra que em criança os professores lhe chamavam Cristo. Se na altura não percebia, agora não restam dúvidas: “O filho de peixe é peixe, não é um cavalo. Eu sou filho de Deus.”

A poucos dias de editar o seu boneco de afirmação na cultura, Silêncio Vale Ouro, já crescia dentro de si o que mais tarde viemos a conhecer como Casos Arquivados. Contou que nessa semana recebeu duas notícias: uma reunião com uma editora major interessada em assinar um contrato de distribuição e um processo em tribunal que resultaria numa condenação grave. Sem dinheiro para chegar a um acordo com a acusação, reuniu com a editora: “Eles não sabiam o quanto eu precisava daquilo, estava quase a lançar o meu projecto e estava prestes a ser trancado”. Não conseguiu nenhum resultado. “E desta vez eu estava inocente, o processo envolvia todos os meus casos anteriores. Chego a tremer ao estúdio, estava encostado à parede”. Foi directamente para a cabine e de improviso saiu: “Sistema quer-me trancado, mas calado não vou ficar nunca/ não tens guito ou advogado entrega-te a esses filhos da puta”.  E completa: “aquela energia saiu mesmo dentro de mim, não é tão complexa em termos líricos, mas saiu mesmo dentro de mim.”

Seguiu-se sob o mesmo processo criativo o seu dia de anos (“7/7”) quando abriu a esquadra no Viso, a sua primeira noite na esquadra (“Água”) ou até quando começou a roubar por necessidade (“4250”). “A certeza que este projecto ia ser todo de improviso aconteceu no som “R.u.Lost”. “Reparei que eu estava a narrar o bairro, mas tocando em mim, narrando o bairro através da minha existência. Dei-me a conhecer todo na primeira pessoa, sem nada ser calculado. Se agora que eu quero ir por outro caminho vou de cana por causa dos meus casos arquivados, tenho que os desenterrar todos.”



A partir de uma situação de fragilidade ergueu o seu projeto mais pessoal até ao momento, um álbum que privilegia a entrega emocional, em oposição ao Silêncio Vale Ouro, que é pensado ao detalhe e “demasiado polido”, como o próprio caracteriza. Apesar disso, não deixa de ser narrado pela construção social que consolidou à volta do seu nome de bairro: “Na minha carreira só há três vislumbres em que podem mergulhar no Hugo/Mário, a semente disto tudo. São o ‘Da Vida’, ‘Da Vida 2’ e o ‘Água/Pedra’ (…) ali é a personificação sob o meu apelido, a minha praça, não foi o Mário que levou as facadas e ao Hugo também ninguém fez isso”. Durante o tempo que esteve em Angola foi apelidado de Pulla por ser um descendente de pele branca: “Para eles, os brancos não dançam, pulam”. É o Pulla desde a sua adolescência e encara a cor branca como representativa da luz que emana: “Eu sou a luz que entra no teu quarto quando a tua mãe abre a janela às seis da manhã.”

Entre as várias histórias a que tivemos acesso durante esta conversa, o que ficou mais claro é que a sua missão vai bem para além da música e que a sua ambição não está trancada pelas fronteiras nacionais — “Quando eu chegar a África, não vou ser conhecido como um artista português, vou ser conhecido como um artista europeu. Se eu não provar o que digo, estás só a ouvir um tolo”. Para tal, explicou que está a construir vários castelos para poder erguer um tecto tal que englobe todos os pólos, não o castelo de uma comunidade, mas um tecto para todas as comunidades, sem regras pré-estabelecidas para se pertencer à nobreza: “Eu sou nobre, que ontem era camponês, eu vou para a vossa guerra ser rei dessa terra. Se para ser rei da minha terra tenho que lutar pelas guerras dos que são maiores que eu, vou lutar”. 

Assim, elucida-nos como teve a ousadia de ele próprio editar um videoclipe em realidade virtual. “Eu queria digitalizar-me, a capa do meu projecto é o código binário, eu desenhei o meu Matrix. Nas novas Playstations já podem estar ao lado do Pulla através de uma experiência 3D, porque da necessidade nasceu a criatividade para, mesmo sem saber, editar um vídeo em realidade virtual.” É o seu segundo milagre: “Eu devolvi a visão ao cego”. As suas conquistas representam mais luz para aqueles que não acreditam: “Eu estou a fazer uma merda no Porto em que só com indústria é que consegues fazer. O facto de eu arriscar e reinvindicar abre literalmente os olhos”. Para ver o terceiro milagre protagonizado por Pulla, nada melhor que correr até ao LX Factory no próximo ano: “Neste concerto acredito que vou morrer em frente a toda a gente. Vou carregar a cruz, vai ser isso que vai acontecer. Preciso de muita gente para me ver morrer. A minha cruz está a ser montada, eu já senti qual é o milagre que me falta cumprir.”


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos