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Fotografia: Adriana Diamantino
Publicado a: 16/05/2025

Dando entrada num portal em forma de festival.

Profound Whatever’25 — Dia 1: na razão de ser profundo

Fotografia: Adriana Diamantino
Publicado a: 16/05/2025

Os territórios que desde tempos milenares são ocupados por gentes que deixam marcas e onde na paisagem encontramos pistas deixadas, contêm uma razão. É do domínio da arqueologia encontrar e descodificar essa presença do passado humano no espaço habitado. Tantas vezes o mesmo local sobrepõe em camadas estratigráficas o que o tempo tenta fazer esquecer. Há esse chamamento ao local, que é milenar, na motivação para permanecer e ganhar raiz. Foi assim neste vasto caldeirão orográfico nas faldas da Gardunha, ao alcance da Estrela e a Marofa num voo de pássaro. 

Foi José Alves Monteiro (1890-1980) um dos primeiros a dar conta e a intrigar a mente deste chamamento profundo ao território. Alves Monteiro foi também investigador na esteira de Leite de Vasconcelos e com os seus “vinte e tantos anos repartia o seu tempo pelo cultivo das Musas e por investigações regionais de carácter histórico-romano”, como dá conta o Museu Municipal que recebe o seu nome. Reuniu um acervo notável, recolhendo epigrafias e estelas romanas. Outros lhe sucederam no fazer, no olhar da paisagem inquietos. Vieram desse Monte de S. Roque e Levada os primeiros vestígios: unifaces, núcleos de silex e talão punctiforme em quartzito — rudimentos de vidas passadas. Na arte rupestre, já depois das figurações zoomórficas, sucedeu-se a arte esquemático-simbólica como novo ciclo artístico. Entram as simbologias geométricas, ídolos bitriangulares ou oculados, inscritos na pedra como nos do povoado de S. Brás, nas margens do rio Zêzere. 

Para Raquel Vilaça, outra historiadora desses tempos neste agora, esses povoados estavam criteriosamente situados no espaço, não sendo de todo desconexos, eram antes peças integrantes de um território partilhado, formando uma cultura que ia aprofundado. E Salina Frías refere-se na leitura de epigrafias deixadas que seriam dedicadas e evocadas divindades indígenas sobreviventes, semelhantes a um deus das montanhas e do céu, estando Bandua ou Arentius como divindades atestadas nestas terras. Fundão onde “havia um poeta surrealista que queria prolongar a rua Cale até ao mar”, como escreveu Manuel da Silva Ramos um certo dia. A Profound Whatever tinha que ter lugar neste espaço — há razões para ser aqui o lugar.

Há uma década que outras gentes de agora vão deixando marcas indeléveis na arte musical e por conseguinte neste espaço de actuação. O colectivo Profound Whatever, que começou informal, tem inscrito, nos campos da música criativa, livre e improvisada “uma música sem merdas”, como preferem assumir. A 4ª edição do festival da editora está em curso n’A Moagem — Cidade do Engenho e das Artes entre os dias 15 e 18 de Maio para um total de 18 concertos, reunindo 40 músicos dos campos das linguagens livres e criativas. A noite de arranque do festival trouxe 4 concertos em 3 deles juntou em palco músicos em estreias conjuntas. 

Um colectivo de 4 percussionistas de dispositivos electro-acústicos quase não idiomáticos, Fruta da Época, apresenta-se com o baixo de Nuno Jesus — este ano produtor do festival — e com João Lucas nas manipulações de fita magnética. Enchem a caixa acústica do palco do Auditório d’A Moagem. Tudo tocado num contínuo sonoro, num embalo como um repasto para um sonhar acordado, ou antes um sono leve sobre o conforto dos sons. Entre ondas rádio percutidas, objectos do quotidiano fora do lugar, um bombo feito mesa de trabalho — inspirado em Lê Quan Ninh — e dispositivos de electrónica indecifráveis se fez um tapete sonoro. Sobre ele dançou a pulso o baixo de Jesus e se fizeram desvios magnéticos as fitas manipuladas por Lucas. Nada parece ter ficado por tocar — empregnando de impressões musicais o que trouxeram na bagagem.



Ilda Teresa Castro, que de mui pronto se fez artista em vários domínios, é desde 2018 o par de Vítor Rua na reformulação dos Telectu pós-Jorge Lima Barreto. Castro, que integra ainda The Banksy’s, tem um disco a solo que fez estreia e lançamento pela Profound Whatever — Intelligentia Liquida. Dele se retiram 4 sábios mandamentos em forma de composições. Mas também as palavras que contam “que num tempo em que mergulhamos tão profundamente em IA [inteligência artificial], sabendo tão pouco sobre Inteligência liquida — como a da água, sem a qual a vida na Terra não seria possível”. Razão maior para descer a tela de fundo de palco e projectar-se um fluxo constante tornado-se ilustrações simpatéticas — como que vibrantes por simpatia ressoante, pela a emanação vinda do sintetizador. Terra é esse dispositivo com o qual produz meticulosas expressões modais de riquezas tímbricas que interagem directas no ouvido interno em muitos momentos. Alterna estruturas de graves em amplas notas pedais, com danças melódicas de alta frequência e cíclicas em rituais ascendentes. Uma procura contemplativa mas que inquire o espaço emerso e convoca a imersão profunda. Justamente o fluxo da água na superfície como linha fronteira de passagem. Há um espaço eco-acústico para ser habitado — em conexão, com função regenerativa dos ecossistemas. Razão para, num antes de tudo, Castro dedicar o concerto às vitimas e perdas humanas das mais vis e hediondas guerras em curso.

Vítor Rua e Nuno Rebelo são dois inconformados e incontornáveis hábeis criadores sonoros desde tempos muito lá atrás. Que já subiram a palcos incontáveis vezes juntos em diversos grupos, mas nunca antes em tempo algum para tocarem um com o outro, num para o outro e para quem os escutar — duo em estreia absoluta neste Profound Whatever. Caso para celebrar e para isso há razão acrescida pelo lançamento de Dois Sóis Cintilam Sob a Nebulosa do Silêncio Enquanto Um Universo Adormece na Outra Dimensão. Um titulo tão extenso e descritivo como a música que lhe está associada. Duas guitarras que de semelhança apenas o número e a natureza das cordas, em todo o resto são dispares mas andam em telepática conexão. Para isso contam em serem operadas por estes dois sábios condutores sonoros. Ainda não se inventaram guitarristas artificiais — seriam dispensáveis perante estes. Em diálogo de lampejo indelével: Rua é harmónicos e Rebelo saltério em guitarra ao colo, de pauzinhos e arco. Passa ao dedilhar para atender à vastidão ecoante da outra guitarra cúmplice. Rua prossegue oceânico — traz vestimenta em cor condizente. Rebelo envereda por uma veia baileyana, numa exploração musculosa e inquieta pelas cordas. E quando o e-bow de Rua entra para o campo sonoro, o mundo estelar deve ter ficado mais cintilante, levando Rebelo a mais expansão dentro da sua técnica extensiva. Um impulso magnético exacerbado e um saltério em guitarra mais agreste. Quando passam aos grande motivos de amplo consenso sónico, enfurecem-se as nebulosas das cordas e tampos. Rua passa a ter uma guitarra a seus pés e troca as mãos pelo pés — toca de pé, faz dela uma jangada à tona do som. Juntos conduziram a exaustão e consumação até a um disparo de silêncio final que se revelou ensurdecedor. 



O trio de trabalho fundanense Deambula tem dois Gonçalos (guitarra e bateria) e um Gabriel Neves no baixo, e fazem do palco exterior d’A Moagem o lugar de estreia em quinteto com Bernardo Rocha nas palavras ditas (e exclamadas), trompete e megafone, e com Catarina Silva na trompa francesa. “Entregamos a nossa humanidade de forma gratuita… diáriamente.” Assim abre Bernardo nas palavras o cenário. Porque o apagão mais grave, e que está há já muito tempo em curso, “é o da memória, o lugar de escuta dos dias de hoje”. Essa escuta que já não se quer profunda. Profundo é este lugar como lugar de escuta. O trio serve na dimensão segura o desprender das palavras na métrica pausada e grave. Passam às vozes sopradas que vão da trompete abstracta ao pendor groovesco da trompa enleada com o pulsar do baixo. Entra-se na ideia de fabular — mas nada efabulada — para trazer José Mário Branco na força das palavras ditas. Nessa fábula dos animais que vão caçar (ao trabalho) e levam um tiro (perda de emprego e mau tratos) e passam a ser outro (que nem imaginavam ser). “É assim a vida na selva”, retoma Bernardo Rocha. Catarina nunca deixou de emanar poesia num trompismo que se virou indomado — feito revolta da lei da selva. Vem a voz da calmaria — “nem sempre é simples verbalizar.” “Este punho, outrora símbolo de resistência, hoje encontra-se refém” — a palavra ainda pretende (e é) uma arma! Musica e palavras ditas numa poética muito por conta de uma ideia vigente de “algema do nosso pulso”. Para isso é preciso alertar, à trompete — colocando um telemóvel em modo de aviso na vez da surdina. No lugar do silenciar a musica, as palavras soam como alarmes. Foi profundo na escuta, na partilha na inquietação, neste final de primeiro dia do que quer que seja — é para ser, foi assim.

Hoje dia (16) a partir das 21h30, de volta à Moagem onde se juntam em trio José Lencastre (saxofone), Joana Guerra (violoncelo) e João Valinho (bateria). A seguir, num dos concertos mais aguardados desta edição, estará o septeto constituído por Catarina Silva (trompa), Kresten Osgood (bateria), João Clemente (guitarra), João Mortágua (saxofone), João Hasselberg (contrabaixo), Nuno Santos Dias (Waldorf) e Vasco Fazendeiro (percussão). Fecho da noite de pendor intenso com os Dead Language.


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