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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 09/01/2024

A vibração como forma de traduzir o som.

Prétu: um afronauta a caminho do Teatro do Bairro Alto (e do futuro)

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 09/01/2024

Prétu 1 – Xei di Kor chegou em outubro de 2023, mas foi, para muitas e muitos de nós, um verdadeiro “álbum em movimento”: movimento, pela sede de cruzamentos históricos e estéticos, desfazendo a previsibilidade com que a branquitude gosta de congelar as identidades artísticas negras; movimento, pelo impulso político de resgate e resignificação de sons, poéticas e imagens que são reflexos de lutas passadas-presentes e brechas de uma vida justa possível; movimento, porque este foi um álbum que vimos crescer ao vivo, em performances sempre distintas e desafiantes, que se fizeram ouvir pelo país, fosse em festivais de música, eventos culturais ou em momentos de militância e resistência política.

Toda essa jornada, todos esses movimentos, desaguaram no álbum que agora será apresentado no Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, a 19 de janeiro, em mais um gesto da excelente e desafiante curadoria que Yaw Tembe vem desenvolvendo na instituição. Será, seguramente, mais um capítulo de partilha de um álbum que, como nos referiu Xullaji, se foi instruindo pela experiência ao vivo e que, como entre nós assinalou a Margarida Valença, se assume como “um encontro com a ancestralidade, uma viagem cósmica feita por um afronauta, num percurso à procura da libertação.” A apresentação no TBA será, portanto, mais uma paragem da viagem sampledélica de Prétu, embora a ocasião assuma um carácter especial, não só por ser um concerto de lançamento do álbum, mas também por Xullaji se propor a ampliar a própria experiência de inclusão que a sua música profetiza. 

Quem acompanha o trabalho de Xullaji sabe da sua constante preocupação em garantir que os ambientes em que toca não sejam contaminados pela toxicidade das continuidades coloniais e patriarcais que caracterizam tantos dos espaços de fruição cultural das nossas cidades, e em particular dos seus centros. Agora, paralelamente a esse esforço, acrescenta-se também uma tentativa de inclusão de pessoas surdas ou com dificuldades auditivas, recorrendo a um conjunto de coletes sensoriais, com diversos pontos de toque vibratório, capazes de captar as frequências, as vibrações e os ambientes sonoros da música tocada ao vivo, ampliando as possibilidades de acesso a pessoas e comunidades que dela têm estado quase sempre excluídas.

Em antecipação do concerto, fomos convidados pelo TBA para acompanhar o ensaio desta experiência, feita em parceria com a Access Lab, tentando perceber como estes coletes se podem transformar em tecnologia de reimaginação de um futuro mais inclusivo. E foi desse futuro que nos falou Sebastião Palha, depois de sentir a música de Prétu através dos coletes vibratórios: “Consegui sentir quando a música era mais intensa e quando baixava a intensidade. Sentia o ritmo, os graves, consegui perceber as diferenças dentro do próprio som.” Na sua perspetiva, este tipo de tecnologias permite uma participação mais partilhada das experiências artísticas: “O que acontecia antes é que me sentia um bocado excluído porque os meus amigos participavam em concertos, estavam a sentir os concertos e eu não os percebia da mesma forma. Agora estas possibilidades permitem-me sentir ainda mais parte da experiência. Nós achamos sempre que os ouvidos é que têm uma experiência própria, mas nós também, com os nossos corpos, temos uma experiência própria e que pode também ser partilhada. É uma nova forma de relação com a música”. 

Foi também esta nova forma de experiência que Xullaji sentiu quando, depois de colocar o seu colete, as primeiras vibrações começaram a ressoar no seu corpo. A expressão de espanto e surpresa no seu rosto era reveladora da forma como aquelas as vibrações ressoavam, adensando o entusiasmo em identificar quais as músicas que estavam a ser reproduzidas. E para quem, como Xullaji, tanto se interessa sobre os dilemas tecnológicos na era do colonialismo digital e da tecnolotaria, talvez esta experiência possa alimentar novas ideias sobre como projetar, ainda mais, as tecnologias ancestrais africanas e a sua busca por subjetividades e gestos de comunicação que fintem o “metaverso imperial, previsível e vigiado”. Instigados pelo músico, também nós testámos os coletes e nunca imaginámos que “A Luta Continua”, o tema em que se faz acompanhar por Tristany, e pelos samples de David Zé e Amílcar Cabral, nos pudesse entrar, desta forma, não pelos ouvidos, mas pelas costas, e depois pelo corpo todo. 

Seria difícil imaginar uma música mais apropriada para este exercício de experimentação do futuro. A música com que Xullaji viu nascer o projeto Prétu, insere-se nessa longa e ancestral linhagem musical que Amiri Baraka dizia querer transcender, tanto sónica como cosmicamente, os códigos da branquitude ocidental e da sua musicologia formal. Trata-se, antes como agora, de uma música que é expressão de uma atitude sobre o mundo e que se vê traduzida em texturas, frequências e ambientes sonoros capazes precipitar um voo sobre o futuro com o olhar fixado passado. Como Sankofa. Como Sun Ra. Como Os Tubarões. Como Underground Resistance. E daí o ritmo, daí a vibração, daí a percussão, daí a bass music que, como Xullaji contextualiza perante o grupo, “tem raízes em África, segue viagem pelos Estados Unidos e por Londres, também pela Jamaica ou pelo Brasil, chegando à Arrentela e em breve ao TBA”. O baixo, afirma ainda o músico, sente-se mais do que se escuta, especialmente na música que assina como Prétu, onde esta assume também uma forma ritual, experiencial e transcendente. Como esta tecnologia, os graves sentem-se de forma ainda mais expressiva, na espinha e na pele, estabelecendo uma nova forma de relação com o som, que acreditamos poder ser ainda mais exponenciada quando se conectar com a dimensão visual do concerto. Isto porque à experiência sonora, Xullaji acrescentará ainda o vídeo, uma constante nas suas performances como Prétu e que, no TBA, ganhará uma nova relevância, com um desenho de palco e de luz que será uma surpresa para todas as pessoas que se juntarem. Garantidos, para já, estão Alesa Herero e Raquel Levy, nas vozes, Mick Trovoada, na percussão, Henrique Silva, na guitarra, John D’Brava, no cavaquinho, Braima Galissa, na kora, e ainda Ilda Vaz e Landim, como convidados. E para quem mais se quiser abeirar, os bilhetes já estão disponíveis na bilheteira do TBA ou no seu sítio online.


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