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Prétu

Prétu 1 - Xei di Kor

TchadaElektro / 2023

Texto de Margarida Valença

Publicado a: 06/10/2023

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Xullaji, habitualmente conhecido como Chullage, músico, poeta sónico e visual, habituou-nos a uma expressão artística única — pelo pensamento do qual esta é resultado, pela denúncia das desigualdades sociais, da exclusão, do racismo, pelo storytelling e pela capacidade de descrição das realidades vividas nos bairros das periferias de Lisboa.

Num surto “esquizofónico”, como o próprio descreve, Xullaji tornou-se Prétu, e apresenta-nos um novo álbum que é a primeira parte deste seu novo projeto. Talvez seja confuso para alguns. Afinal Prétu é Xullaji, e Xullaji também é Prétu. E Prétu 1: Xei di Kor, a primeira parte em forma de álbum, é muito mais que um mero objeto musical. É uma viagem sem início nem fim marcado. Um encontro com a ancestralidade, uma viagem cósmica feita por um afronauta, num percurso à procura da libertação. 

“Xei di Kor”: o tema que abre o álbum em jeito de manifesto diz-nos muito sobre onde vai e de onde vem este trabalho. Prétu propõe uma reinvenção da identidade da pessoa préta, a morte das barreiras ditadas pela branquitude, a afirmação de um pensamento político e de uma direção atenta e denunciadora das perversidades do colonialismo e do racismo, e as formas diversas e menos óbvias como estes ainda se manifestam: “Hoje dou um tiro no bicéfalo/ Morre um branco, morre um preto/ E nasci eu: Prétu — xei di kor”.

Esta reconstrução e reimaginação da identidade está alinhada com o próprio processo artístico, no qual surgem ínfimas possibilidades na expressão através da arte que aqui não se cinge somente na palavra e na batida. Sendo politicamente comprometido e esteticamente africano, numa visão que tem o pan-africanismo como guia, Prétu não é somente um statement político e um ressuscitar de um pan-africanismo congelado na história. Há aqui um encontro com uma espiritualidade, um cruzamento com referências do passado, que é também presente e futuro.

Trazendo as suas raízes cabo-verdianas em jogo, algo que no entanto não é novo no trabalho de Xullaji, em Prétu existe uma busca e a construção de uma identidade – cultural, política e estética. Não é, todavia, um identitarismo auto-proclamatório e individualista, mas sim a convocação e a construção da identidade coletiva de uma população — da sua história, das suas trajetórias, das suas lutas.

O resultado desta construção de identidade transmite-se num objeto estético que se alastra em várias dimensões: os vídeos, que Xullaji teve mão na sua produção, e os seus elementos — cada objeto, pessoa e símbolo colocado em detalhe, desde os dançarinos em “Xei di Kor”, o cenário de guerrilha em “A Luta Continua”, as fotografias de família em “Fidju Maria” ou as capulanas, os corpos pretos a trabalhar atrás de balcões, a afundar no Mediterrâneo, ou as referências à frase “I will build a great wall” ou os cartazes de “Black Lives Matter” em “Waters”.

Numa fusão entre o tradicional e o eletrónico, Prétu sincroniza o cancioneiro da música tradicional africana, da música de intervenção cabo-verdiana, angolana e guineense, usando samples de artistas célebres como Os Tubarões, Bana, Princezito ou Vadú. Aqui o sample surge primeiro e dialoga com o que vem depois — através da sensação trazida pela música, a imprevisibilidade dá conta de um processo artístico que vai de encontro a uma liberdade e a uma expressão que não tem limites nem nenhum destino determinado na direção em que segue.

Esta simbiose não tem a pretensão somente de, de alguma forma, refrescar a música africana aos novos tempos, mas sobretudo trazer aquilo que desta ainda é atual, e conectar estas palavras, os sons da morna, do batuku ou do funaná, à realidade material vivida pelas pessoas prétas: as que foram esquecidas pelo silêncio deixado pela história, as que travaram as lutas rumo à independência dos países africanos, as que perderam a vida na travessia do mar Mediterrâneo, as que emigraram, as que são exploradas a tirar minérios para baterias de smartphones, as que trabalham nos centros comerciais, as empregadas domésticas, ou as que constroem as cidades para os outros, como nos dizia Sérgio Godinho.

Esta conexão com a realidade é a porta para uma viagem de ordem mais elevada que não é exclusiva a uma mera caracterização social e demográfica desta população. E é aqui que a dimensão estética entra como um fator de agregação de todos estes símbolos — de pensamento político, de vestes da roupa, de referências literárias, de cores, das músicas e de uma toda uma imagética a que poderíamos chamar pan-africofuturista, que pretende elevar a cultura africana sobre a qual este projeto parte a uma outra dimensão e a um outro lugar. Lugar este, que só é possível através desta conexão de um foro espiritual, imagético e cultural com tudo aquilo que existe e que já foi pensado por outras pessoas no passado.

Apesar de esta mistura da música tradicional africana com o eletrónico — algo que tem sido também usado por outros artistas, na afirmação de um movimento à qual se tem chamado “Nova Lisboa” —, Prétu não se enquadra nesta Lisboa, que pelo contrário olha com ceticismo e denuncia sem papas na língua a sua perversidade: através da mercantilização da música negra num vai e vem de tendências que mudam conforme o mercado, a expropriação da cultura negra sem que haja um retorno para as comunidades, ou a celebração desta por parte de quem mantém o mesmo racismo e preconceito contra quem é do bairro, como podemos ouvir em “Fla Ma Ka Gosta di Prétu” — “Diz que não gosta do bairro, lá tem salalé. Mas vem no B.Leza, ouvir balancé”.

Numa altura em que um certo anti-racismo se tornou mainstream depois do movimento Black Lives Matter e as discussões em torno desta temática têm aumentado, o mesmo ceticismo é revelado nas reservas que deixa a um lugar de fala que tem escutado uma “elite préta enquanto outra préta faz a lida” ou aos “Brancos a marchar no BLM tipo um passeio”. Prétu propõe um outro caminho, um que tem como referências o pensamento de outros autores negros que podemos encontrar, por exemplo: nos vídeos de “Fidju Maria”, que conta com a participação de Dino D’Santiago — desde Grada Kilomba, bell hooks, Angela Davis ou Malcolm X; passando pela referência ao “I’m not your negro” de James Baldwin em “Mi Ka Bu Nigga” com a participação de Scúru Fitchádu; e ainda por aquela que talvez se possa considerar a referência mais importante na construção deste projeto, Amílcar Cabral, o homem que liderou a independência de Cabo-Verde e da Guiné-Bissau e os que, com ele, lutaram pela independência dos países africanos.

No vídeo de “A Luta Continua”, que conta com a participação de Tristany, podemos observar uma reconstrução de um cenário das lutas pela independência, os guerrilheiros, os discursos de Amílcar Cabral, a voz de Amélia Araújo através da Rádio Libertação, os livros de Frantz Fanon — Em Defesa da Revolução Africana ou Pele Negra Máscaras Brancas. Neste cenário podemos assistir a um duplicar de cenários: um em que os guerrilheiros se encontram nos finais dos anos 60 ou início dos anos 70 a lutar pela independência dos seus países no mato, e um no presente, a correr pelo bairro com ténis calçados nos pés. A mensagem é simples: o colonialismo ainda não acabou — “indipendensia na papel, ka indipendensia na terreno” — e precisa de ser travado.

Este caminho que tem como guia aqueles que, como Amílcar Cabral, desenvolveram um projeto político em parte vitorioso, sugere uma fuga dos lugares comuns numa visão simplista sobre a questão do colonialismo. A visão presente neste álbum olha e critica de uma forma abrangente e dura as realidades materiais das vidas de pessoas prétas, tendo sempre presente a crítica ao sistema económico, social e político que as oprime. Desde o relato da vida de imigração retratada em “Bran Bran”, que conta com a participação de Landim, à descrição da exploração laboral, o assassinato de corpos pretos no Mediterrâneo ou a crítica às instituições do Estado  — “Indígena no SEF, indígena no CNAI” em “Waters”, que conta com a participação de LowRasta — ou a referência à agressão na esquadra de Alfragide a Flávio Almada, conhecido como LBC, ou a de Cláudia Simões, e o assassinato de Bruno Candé e Luís Giovani em “Uai Uai”. Prétu 1: Xei di Kor está repleto de exemplos dos lugares que esta população ainda ocupa, em Portugal e no mundo. 

E é a partir destes exemplos e referências que, ao mesmo tempo, há uma chave para uma solução, que passa por um reconhecimento da herança de onde partimos , uma “africanização dos espíritos”, uma consciência histórica e cultural, uma aproximação dos sons e das sensações da música africana, numa forma ritualizada com o objetivo de uma conexão que trespassa tempo e espaço e que se resulta num sentimento de pertença, de auto-reconhecimento e de auto-valorização das pessoas prétas.

A chave para a libertação passa pelo caminho da Luta, e uma revolução descrita em “A Revolução Não Vai Ser Um Tweet”, numa adaptação do texto icónico de Gil Scott-Heron, “The Revolution Will Not Be Televised”, Prétu abre um caminho que promete uma presença física, corpo a corpo, cara a cara, fora das plataformas digitais. Esta revolução “não vai ser online, mas frente a bastões e gás pimenta. Não vai ser efémera, descartável. Ela vai ser permanente e lenta”. Mais do que um álbum de uma pessoa individual, Prétu 1: Xei di Kor é um conteúdo feito por e para uma comunidade: uma busca coletiva por um lugar diferente fora das lógicas da branquitude, e um gesto e uma prática de Amor — descrito numa citação de bell hooks usada no vídeo de “Fidju Maria” a essa mesma comunidade.


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