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Publicado a: 28/04/2018

Portishead: Outro mundo

Publicado a: 28/04/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

É estranha, a forma como tanta gente se relaciona com a música: num momento abraça-se a diferença, para depois se defender a permanência, como se cada um procurasse um lugar de conforto para então fazer um mapa de todos os recantos e assim se defender da continuidade ou evolução, estabelecendo fronteiras com muros altos não apenas para prevenir que algo saia, mas sobretudo para impedir que algo entre. Quer-se apenas o que já se conhece e cópias infinitamente produzidas da mesma coisa com a menor oscilação possível. E isto porque a diferença é penosa e exige um desgaste emocional que nem sempre se está apto a ceder. Como entender então, perante este quadro, Third, o novo álbum dos Portishead? Para quem conhece o verso e o reverso de Dummy, Portishead e Roseland NYC live, Third pode ser tão excitante como a desvitalização de um dente. É um álbum desconfortável, com uma arquitectura estranha (onde andam os samples orquestrais?), que renega o caderno de encargos do trip hop e descobre um novo passado de onde extrair as coordenadas para outra viagem. Passou mais de uma década depois da edição do álbum que continha “Only you” e ainda assim havia quem esperasse que nada se tivesse passado e que a canção permanecesse a mesma.

O mais excitante de Third é o universo de referências que revela. Pode afirmar-se que os dois primeiros álbuns lidaram com a época compreendida entre a descoberta do estéreo e a imposição da gravação multipistas – de Henry Mancini (“Only You”) e Lalo Schifrin (“Sour Times”) a Isaac Hayes (“Wandering Star”) e Weather Report (“Strangers”) vai a distância da profunda revolução tecnológica que marcou o período compreendido entre o arranque da década de 60 e meados dos anos 70. Essa foi a época da imposição dos standards de gravação e reprodução que ainda hoje usamos (a idade digital é outra história, mas muitas das suas conquistas apenas simplificam processos, não alterando radicalmente a sua própria natureza – o ambiente multipistas de um estúdio passou agora para o laptop, mas o princípio é o mesmo), a época em que a noção moderna de organização de som se impôs. A espessura orquestral dos samples recolhidos por Adrian Utley e Geoff Barrow trazia consigo toda uma ideia de tempo e de som que marcou os dois primeiros álbuns dos Portishead, embutindo as canções de um natural romantismo a que a voz de Beth Gibbons apenas adicionava drama.

 



O hip hop, claro, tinha tudo a ver com o programa de acções estéticas dos Portishead, que ergueram os dois primeiros álbuns a golpes de sampler e gira-discos, posicionando-se mais próximo de experiências como Enter The Wu-Tang (36 Chambers), editado um ano antes de Dummy, de que quem se apressou a estabelecer ligações aos Moloko poderia supor. A passagem para a dimensão orquestral em Roseland NYC Live significou, muito simplesmente, a descodificação das ideias já contidas nos excertos de Schifrin e Hayes de que se faziam as suas canções. A noção de espaço inicialmente conseguida por produtores como Joe Reisman (que gravou Mancini em 64) e Tom Mack (que produziu a sessão de “Mission Impossible” em 67) era imposta, basicamente, através de uma inteligente colocação de microfones em estúdio, mas tanto Isaac Hayes como Joe Zawinul (os produtores de Black Moses e Black Market, dois álbuns samplados pelos Portishead) tinham já à sua disposição gravadores de multipistas que lhes permitiam desenhar o espaço consoante as suas ideias e necessidades. Dummy e Portishead referenciam directamente esta época de re-imaginação do espaço dentro do estúdio, quando a música passou de ser registada em directo através de uma estratégica colocação de microfones que tinham que captar para as duas pistas disponíveis tanto os sonoros ataques da orquestra como os subtis sombreados das escovas na bateria para uma nova realidade em que o espaço era desenhado posteriormente quando na mistura se equilibravam os diferentes instrumentos gravados separadamente.

Third é feito de uma matéria completamente diferente.

No mesmo ano em que a invenção do estéreo chegou às edições em vinil, 1958, foi criado na BBC o laboratório de investigação e criação de música electrónica Radiophonic Workshop onde talentos como o de Delia Derbyshire sobressaíram graças à criação de bandas sonoras para séries como Dr. Who. Pegando nas ideias base da escola francesa de música concreta, utilizavam-se as possibilidades de gravação em fita e da sua modulação (oscilação de velocidade, inversão, processamento através de efeitos, etc.) para a invenção de novos sons que traduziam uma era de incríveis possibilidades tecnológicas. Esta entusiasmante época de criação na BBC foi alvo em 2003 de um fabuloso documentário de título Alchemists of Sound que serviu para clarificar os pioneiros processos usados pelo Radiophonic Workshop e para sublinhar o impacto desta visionária música em toda uma geração de criadores britânicos, habituados a ouvir música electrónica realmente desafiante em genéricos de telejornais e programas desportivos, em séries infantis ou em sinais identificativos de estações de rádio da rede BBC. Um dos convidados deste documentário foi Adrian Utley, que referiu a profunda influência exercida pela música do Radiophonic Workshop na sua própria actividade como compositor. Third, finalmente, clarifica essas afirmações.

Menos apoiado na citação directa via sampling (técnica que foi circunscrita à construção das bases rítmicas), o novo álbum dos Portishead parece apostado em reinventar um universo de referências sonoras e a tal época balizada pela criação do estéreo e a invenção das multipistas parece ser substituída pelo período em que a síntese sonora foi posta em prática. As experiências conduzidas pelo Radiophonic Workshop estão directamente ligadas ao aparecimento da síntese modular pela mão de Robert Moog e essas são, muito claramente, as novas balizas estéticas dos Portishead. “Third” soa a White Noise (projecto intimamente ligado ao Radiophonic Workshop), a Silver Apples, a Delia Derbyshire, a Morton Subotnick e ao rigor e calculismo rítmico do kraut dos Can. A galáxia orquestral está agora a anos-luz de distância, como claramente demonstrado por pérolas como “Machine Gun”, austero exercício para percussão electrónica, voz e glaciar electrónico (os últimos 40 segundos são um dos melhores momentos musicais dos últimos 10 anos!).

 



A mudança foi o claro motor que conduziu a Third, demonstrando os Portishead estar muito pouco interessados em reactivar fórmulas de resultados comprovados no passado. “Estamos a mudar-nos para outro mundo”, afirmou Adrian Utley em entrevista ao Expresso. Neste novo mundo mantém-se a voz espectral de Beth Gibbons, alma permanentemente torturada que continua capaz de traduzir a mágoa como muito poucas outras cantoras, mas o centro das canções parece ter-se deslocado da performance vocal para a imposição de uma ideia muito própria de atmosfera de que a intérprete de “Silence” é apenas um dos elementos. E é aqui que surge o carácter experimental de Third. Nos dois primeiros álbuns, as atmosferas desenhadas eram consequência da selecção de samples, que já traziam no seu código genético uma carga emocional muito própria, mas agora o desenho atmosférico passa pela procura própria de texturas, apoiadas sobretudo nas guitarras e no seu processamento e nos teclados, declaradamente vintage, como se Utley e Barrow quisessem regressar a um tempo sem contraponto dramático: “The Rip” é assim – guitarra e o que soa a um teclado primitivo (ou um theremin) num arranque quase pastoral e depois uma injecção cirúrgica de ritmo que faz o tema descolar para um território onde se sentem ecos das experiências de Simeon Coxe (embora o tema mais devedor dessa referência seja “We Carry On”, cuja base não destoaria no álbum de estreia dos Silver Apples, de 68) e da severidade rítmica dos Can.

Third é o melhor álbum dos Portishead porque é o menos Portishead dos seus álbuns. Escapar a um caminho que os próprios definiram não é apenas um acto de coragem, é um sinal de profunda maturidade artística que todos os que adoptaram as primeiras peças da discografia deste grupo por causa de uma conjuntura e não devido às suas qualidades intrínsecas poderão muito bem não compreender agora. Para que não haja dúvidas de que estes são “outros” Portishead, o single é a rajada aural de “Machine Gun” que em maxi começa por surgir só, sem remisturas, versões instrumentais ou distracções semelhantes. É outro mundo. E é admirável, mesmo não sendo estritamente novo. Mas os Portishead andaram sempre atrás do tempo, ignorando saudavelmente o novo em detrimento do intemporal. Aí, nada mudou.

 


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Texto originalmente publicado na revista Op.

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