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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/04/2024

Dizer alto e bom som.

Portalegre JazzFest’24 — Dia 1: é sempre a subir para ouvir mais de perto

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/04/2024

Voltar ao lugar de onde tantas outras vezes se trouxe vivências que fazem querer regressar. Há nisso uma garantia: mesmo que neste viver sejam renovadas as personagens, sentimos o convite permanente para novas narrativas no mesmo espaço. Dispostos a viver a música com músicos, viajando desde logo com, e por eles, para aqui chegar. O campo está vigoroso de um verde florido, um catálogo multicolor, abrindo tantas possibilidades policromáticas. Ligam-se os olhares dos percursos até aqui com os de cá feitos, que deixaram em tapeçarias suas explícitas visões, também policromáticas, diversas, acrescentando riqueza. A coerência a ligar tudo entende-se bem ao fazer o percurso interior pela colecção do Museu da Tapeçaria de Portalegre — Guy Fino. Olhando em redor, percorrendo as paredes de tapetes como janelas para o exterior, esse mesmo atravessado para aqui chegar. Texturas idiomáticas de fios de lãs policromados, tingindo em permanentes possibilidades, tamanhas impressões podem mesmo ser vistas como belas capas, daquelas que guardam música em discos.

Policromática é também a música que vemos acontecer no Auditório do Museu, primeiro palco da presente edição do JazzFest. Num mesmo instrumento uma plêiade de formas de tocar, como apresenta o marimbista Pedro Carneiro. Parece haver mais baquetas que lâminas de madeira que compõem a extensa marimba, sendo esta especial e que foi expandida em mais possibilidades sonoras, em quartos de tom. Bolas de lã, de corda, meias-calvas, outras baquetas sem bolas, apenas crenuladas, encapsuladas em câmaras de ar até, para uma extensão tão orgânica para chegar mais além dos dedos das mãos do percussionista. Dois conjuntos paralelos, como aqueles feitos das teclas brancas e das pretas nos pianos. Os códigos e segredos revelados antes da música. Um mago a explicar como se fará sem truques os passes que se escutarão. Como se fosse assim simples, tocar sabendo onde tão somente tocar. A cor da madeira depressa se revela de vários tons e mesmo em cores quando passa a ser escutada. É um instrumento de alta ressonância, tubular na propagação do som, cheio de possibilidades inesperadas, que Carneiro trata de ir revelando, com maestria. Um improviso que arranca com a tonalidade da sala, seguindo a afinação do tom vindo, acredite-se, do ar (condicionado). Depois, num segundo improviso, devolve um som cheio, envolvente, ressoante e telúrico, leva-nos por uma penha acima, aquela que se avista desde a janela poente. Luz que penetra o auditório permeando a marimba, desenvolvida desde os balofon do oeste africanos, instrumentos levados às Américas e que os guatemaltecos aprimoraram secularmente ao que hoje vemos e, sobretudo, ouvimos. Uma leveza envolvente, sem par entre outros sons de madeiras. Carneiro, lendo a “partitura” que a intuição lhe indica em cada instante, explora a marimba no suporte do som, percutida também entre as partes metálicas que a sustêm e ressoam; os tubos a dado momento são de sopro e sobrevoam silvos marimbando o que as arcadas de cerdas trouxeram das margens das peças de madeira. Para Carneiro, percutor daquela sonoridade, entretanto a plateia via-se ali como um instrumento mais, as vozes de todos nós. À chamada da mão direita, em uníssonos vocais, houve lugar para um concerto colectivo, para além de um músico em palco e uma plateia de ouvintes. A começar com toda a disponibilidade conjunta para o festival que arranca.



O lugar que pediu para se subir mais alto, o Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre, nas faldas serranas e raianas no Alto Alentejo. Nesse lugar encaixaram-se dois pianos, naquela geometria em curva que o contorno da cauda desenha em forma complementar quando em espelho, com os dois teclados colocados frente-a-frente. Pedro Burmester no piano esquerdo, Mário Laginha no direito. Dois pianistas que o público conhece bem e o JazzFest esperava ver. Num programa preparado para quatro mãos. Começo com “Grande Tango”, na reinvenção da música argentina pelo libertário do tango Astor Piazzola, transpondo-se as frases do fole de bandoneón para as cordas dos pianos. Seguiram o programa com um primeiro de dois temas apresentados de Laginha como compositor — “1° andamento do Concerto para 2 pianos”. Em contexto jazzístico e trazendo o imprescindível legado do terceiro pianista que em palco faltava para com estes dois voltar a fazer o “Concerto 3 Pianos”. Mas outros tocarão (amarão) a música que Bernardo Sassetti amou (tocou). Assim volta musicalmente quem falta nos faz, pela música que ficou por compor, tocar e partilhar. Uma bela e transparente música, que nos toca interiormente a cada momento que a escutamos e se propaga encadeada nos nove chamamentos evocativos de Sassetti pelas mãos de Burmester e Laginha. E são como nove poemas que se escutam desde logo nos próprios títulos-temas, como “I Left My Heart in Algândaros de Baixo” que Sassetti deixou gravado em Unreal: Sidewalk Cartoon para a sua editora de sempre — Clean Feed. Depois de Burmester assumir a primeira das nove composições cinemático-poéticas, seguiu-se Laginha no evocativo propósito com “Prelúdio em Sol Menor”, um tema com 20 anos, a soar ainda mais belo hoje, como a alma do ideal amanhã. Depois, a dois pianos, e entre um e outro, tocaram, como em poema que se revela neste atrevimento de enumerar, colando, os nomes das composições: “Renascer / Noite / Inquietude / De um instante ao outro / Simplesmente Maria / Olhar / Reflexos”. Depois dos 9 andamentos emocionais, fica como que para retemperar o conforto a frase lapidar da folha de sala, aceitando que “A tristeza da sua ausência é largamente ultrapassada pela alma maior que a sua música transporta”. O difícil momento de mudança no programa ficou às custa de “Bolero” de Maurice Ravel, uma peça por todos conhecida, tocada a dois teclados, em crescendo, em avanços progressivos numa cadência metrométrica precisa que Burmester assumiu com mestria, e que a plateia interiormente trauteou e dançou num acompanhamento que se demonstrou cúmplice na ovação de pé rendida aos dois pianistas. Haveriam de voltar para dois temas extra-programa, em dois regressos pedidos pelo público. No último ouvimos “Choro Fado” de Mário Laginha pela arte de mãos dadas de Laginha e Burmester, mostrando alto e bom som o que une o jazz à clássica.


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