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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2022

A ligação entre a música, a temática de filmes do Sonica Ekrano e a saúde mental.

Poly Styrene: uma social justice warrior improvável

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2022

Qualquer relato biográfico é o produto de uma época. As imagens mostram personagens que se movem num tempo estruturado em torno de pressupostos sociais, culturais — enfim, de significantes — que tecem uma malha invisível que constitui os limites da ação e do pensamento.

O punk, new wave, a contracultura surgem enquanto rasgões dessa malha, que metem a descoberto aquilo que se perde da essência humana a favor de uma ordem social pela imposição de regras quasi-delirantes e mais ou menos arbitrárias. Produtos de um enquadramento histórico baseado na incompreensão e na desconfiança da diferença (ou será que o medo estará mais associado à percepção de uma igualdade?).

Em A Civilização e os seus Descontentamentos (1930), Freud aponta esta ideia base segundo a qual, no fundo, o processo civilizacional corresponde a uma necessidade de traumatizar. Entenda-se aqui trauma como uma imposição social, uma tendência à inibição, uma pressão para o evitamento da emergência os aspectos mais animalescos na natureza humana. Se na maioria dos casos o que se procura é criar “micro-lesões” — suficientemente traumatizado para se encaixar –, onde está o limite imaginário do ponto de não-retorno?

27 anos depois da publicação de Freud, nasce Marianne Joan Elliott-Said, no seio de um romance familiar que desafia as leis da ordem social estabelecida, e que lança a dúvida: como criar uma identidade em tempos de segregação do diferente?

Uma social justice warrior improvável: de um lado, uma imagem arquetípica fecunda, mas, do outro, a ausência da substância do arquétipo. Na realidade, tão distinta é essa separação entre a imagem e a substância que faz suspeitar da ideia de que foi algo da ordem do social que forçou a sua entrada na identidade.

Parece que Poly Styrene surge mais como um signo sobre o qual o socius se projecta e ao qual recorre enquanto veículo semiótico para legitimar uma nova ética social do que propriamente uma expressão identitária verdadeira (“I am a cliché”).

Sentimos esta ideia nos contra-sensos. Feminista? Proponente dos direitos humanos? Anti-fascista? Anti-capitalista? Anti-establishment? Ou simplesmente alguém à procura do seu lugar no mundo, que, por ter origens multi-étnicas, ser mulher e querer expressar a sua espontaneidade serve enquanto continente para depositar os desejos de uma geração? 

Nos primórdios da era da globalização, perante a iminência de um capitalismo global, abrem-se novas oportunidades para a criatividade, para a comunicação, para a partilha de experiências… e… para o evitamento de experiências dolorosas.

Se por um lado o frenesim de Nova Iorque foi capaz de ligar pessoas, paradoxalmente também foi capaz de os separar de si mesmos. Donde resulta um processo de desumanização, de objectificação, de mecanização e de fetichização da mercadoria, do dinheiro e do capital. Assistindo-se assim à emergência de uma pseudo-alteridade dada pelo desenvolvimento de relações especulares caracterizados pela telescopagem de papéis, por via de fenómenos transferenciais que se desenvolvem num contexto mediado pela imagem, onde a identidade do próprio e a função de alteridade do outro são frequentemente alvo de escotomização.

Sabemos que o trauma levou Poly longe de mais. Uns chamaram-lhe esquizofrenia, mais tarde bipolaridade. Recordo que, independentemente do diagnóstico “real”, estamos no campo da psicose (perturbação bipolar: anteriormente designada de psicose maníaco-depressiva). Mas, ao ver o documentário, penso que é inevitável que o espectador coloque esta pergunta: as alucinações de Poly são mesmo dela? Ou serão elas as alucinações e os delírios de uma (in)consciência colectiva que se instalou no seu corpo e que produziram nela as angústias de uma sociedade doente? Psicopatologia individual ou social? 

Curioso que do ponto de vista dos comentários que ouvimos no filme, os interlocutores tratam Poly mais como um objecto social e cultural, como um símbolo, do que como pessoa. Todos, à excepção da filha, que (re)descobre a mãe, esforçando-se para separar o mito da pessoa. 


* Psicólogo, presidente da Associação de Psicologia e Desenvolvimento Comunitário e músico.

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