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Publicado a: 05/06/2017

Pode um artista ser maior que o género?

Publicado a: 05/06/2017

[TEXTO] Samuel Pinho [FOTO] Direitos Reservados

O grime é um género sujo, pesado e nem sempre dócil nas mensagens que se esforça por veicular: não fosse o género ter origem no dancehall e no rap americano mais cru – com características de garage made in Reino Unido à mistura – e talvez ninguém diria que as suas raízes geográficas se situam algures na ilustre e muy refinada cidade de Londres; mais concretamente, na zona Este e underground da metrópole europeia.

O estilo não é novo – já existindo há quase 20 anos – embora seja de inegável evidência que o seu ressurgimento se deu há relativamente pouco tempo, por via de um trintão dono de uma ética de trabalho inatacável: Skepta, a a par de outros detalhes que adiante nomearei, é o responsável tanto pelo sucesso caseiro, como pelo buzz que o género tem gerado além-fronteiras.

Para nosso deleite, o MC e produtor pisará o palco do NOS Primavera Sound no dia 9 de Junho, numa actuação que promete agitar até os alicerces mais basilares da cidade do Porto. Em jeito de antecipação à actuação do reigning king do género, segue-se uma análise ao detalhe com o intuito de de separar o trigo do joio. Isto é, distinguir o talento do buzz gerado e auferir a sua real influência no UK rap game da atenção momentânea, conferida pelas bênção de Drake ou Kanye West.

 



As primeiras faixas da autoria de Skepta datam dos anos 90, num registo muito similar ao que hoje difunde. Porém, e atalhando caminho, detalhamos somente os marcos mais fundamentais do seu percurso. O passo que muitos músicos só projectam, sem nunca chegar a consumar, tem lugar em 2005: com o irmão JME, cria a Boy Better Know, uma grime label independente que funcionava mais como colectivo de artistas e pretexto preferencial para a realização de gigs memoráveis. Sem website próprio, sem página de Twitter ou de Facebook, é caso para referir que para além de não anteverem o fenómeno pelo qual seriam (plural majestático) responsáveis, não estavam logisticamente preparados para ele.

Nas lides do grime desde o início do género, Skepta já gozava de uma total integração no meio musical na era das rádios pirata e dos shows que invariavelmente acabavam com intervenção policial. Não obstante, a integração mencionada foi fatal, e até essencial, para o percurso trilhado. É que o artista que hoje se ouve está longe de personificar o Skepta de há meia dúzia de anos a esta parte.

No período compreendido entre 2008 e 2012, produziu música sem alma: bangers ocasionais sem conteúdo, versões clean de um grime que se quer sem filtros. Preferencialmente, de um estilo que se quer como música de protesto, de reivindicação social e que sempre se exibiu como porta-estandarte e bandeira dos mais oprimidos. No culminar desse mesmo período, o artista deu por si a tentar replicar o estilo de rappers americanos de sucesso, fugindo a si mesmo e embarcando num ciclo depressivo que obrigou a uma auto-análise profunda. O próprio equiparou, em jeito de confissão e num plano mais mainstream, esse seu episódio ao momento skinhead de Britney Spears. Um exemplo nítido da plasticidade que assola inúmeros artistas que encabeçam listas, rankings e tops de vendas por esse mundo fora.

Culpados? O sistema, a indústria, a pressão e ele próprio. Num monólogo em formato vídeo que o próprio divulgou no YouTube, há quatro anos atrás, assume que “aspirou a ser como certos artistas”, encontrando pouco de si no final do caminho escolhido.

Se já antes prezava a independência e a liberdade, Skepta assumiu um compromisso público e bem mais visível daí adiante: o de só divulgar projectos com conteúdo, através do seu modus operandi e estilo anti-establishment tão próprios.

Em 2014, decide-se a transportar o grime das ruas para as casas londrinas, muito à semelhança do processo evolutivo de que foi alvo o próprio rap, ainda que no lado oposto do Atlântico. Como consta de uma entrevista recente, é o próprio quem dá o mote:

“I can’t make hard street music for the rest of my life. Your references change (…) hip-hop started at the streets, just like grime did. It took a long time for hip-hop to become comercial. Now there’s all these big black icons that came from nowhere to somewhere. Look at Jay-Z! People stopped being threatened by the music and just started to appreciate that it’s good. I want that to happen with grime.”

A arrogância patente no estabelecimento de tão ambiciosa meta não é obra do acaso: como pioneiro do género e membro da 1ª geração de artistas, era visível a ambição aliada à filosofia DIY que Skepta à data manifestava, tornada núcleo dos seus projectos futuros. E daí, não mais abrandou.

 



No mesmo ano lança “That’s Not Me” – com o irmão – faixa energética em que, a par de admitir os erros do passado (que promete não mais repetir), expurga todo o ódio pela indústria, através de rimas aceleradas a toque de uma batida futurista. Se toda a música é um urro de protesto, o hook é dela o resumo perfeito.

“Nah, that’s not me
Act like a wasteman? That’s not me
Sex any girl? Nah that’s not me
Lips any girl? Nah that’s not me
Yeah, I used to wear Gucci
I put it all in the bin cause that’s not me
True, I used to look like you
But dressing like a mess? Nah, that’s not me”

O respectivo vídeo, filmado com o curto orçamento de 80£, venceu o Mobo Best Video desse ano e consumou a consagração do artista. Se arrecadar um prémio com tão reduzido budget, com uma filosofia tão independente e livre de estereótipos maiores não pode ser contabilizado como sucesso, nem sei o que poderá.

E que (eventuais) deméritos se podem apontar a um músico que toma como sua a tarefa de elevar todo um estilo musical?

Por essa altura, as valências e princípios de Skepta já se iam fazendo notar além-fronteiras. Prova disso foi a actuação de Kanye West nos Brit Awards do ano seguinte: estão lembrados de um palco preenchido por negros, lança-chamas e Lionel Richie a encabeçar uma plateia estupefacta? Pois, por lá também estava a 1ª linha de grime MCs como Skepta, Stormzy e Novelist, mais duas dúzias de artistas com características semelhantes. No fim, o agradecimento de West foi direitinho para o homem que hoje é tema e, apesar da reacção efusiva da sala, as críticas externas não se fizeram esperar.

Quem poderia prever um espectáculo tão-pouco convencional, em directo e na televisão nacional? Porém, também o contra-ataque do MC britânico não se fez demorar e “Shutdown” – lançado sensivelmente 1 mês após a cerimónia – contém 2 samples que certamente ficarão para a história da modalidade.

 



O primeiro faz-se ouvir ainda a melodia não soou: é Drake, a anunciar “Mans never been in Marquee when it shut down eh? Trusss me daddy” e a exibir uma parceria que – à data – ninguém antevia.

Por incrível que pareça, o sample que a esse se segue é ainda mais incisivo, e porventura sintomático da verdadeira crítica contida na faixa. Escutamos com surpresa a voz de uma mulher que adivinhamos de meia-idade, a lamentar “a bunch of young men all dressed in black dancing extremely aggressively on stage, it made me feel so intimidated and it’s just not what I expect to see on prime time TV”, numa clara alusão à actuação nos Brits. Mais tarde, tudo Drake levou: algures entre finais de 2015 e meados de 2016 tomam lugar uma série de eventos envolvendo o artista canadiano. Skepta é convidado a exibir Shutdown durante o set de Drake no Wireless Festival (Londres). O mesmo Skepta faz chegar ao Instagram uma imagem do canadiano com a sigla BBK (Boy Better Know) tatuada no ombro. Por fim, e após a actuação com Rihanna nos Brits 2016, Drake prescindiu das habituais after-parties para surgir de surpresa (para apoteose do público) num gig em Londres, ladeado por Skepta e outros artistas.

 



Tal conjunto de interacções levou à oficialização dos laços consumados entre ambos: o canadiano havia assinado pela label do britânico, num ato sem precedentes que conferiu um evidente boost tanto às pretensões do MC, como de todo o género, trazendo o tópico para o centro do panorama musical.

É ingénuo achar que as interferências de Drake e Kanye West não tiveram um papel preponderante na emancipação do grime à escala mundial; porém, só vieram acelerar um processo por si só já condenado ao sucesso, ou pelo menos, a chegar aos nossos ouvidos com a veemência com que hoje o faz.

Mesmo com concertos de uma ponta a outra do planeta, tornava-se indispensável o ato de legitimação final. Este, com um período de gestação moroso, chegou sob forma de álbum: distribuído a partir da casa do artista, Konnichiwa é dado à luz em Maio de 16, arrebatando tudo e todos.

 



Se nos cingirmos aos prémios, valeu-lhe os Ivor Novello de Best Songwriter e Best Contemporary Song , para além da nomeação para British Album of the Year nos Brit Awards em 2017; ainda assim, é o Mercury Prize (2016) – prémio em que superou Radiohead ou David Bowie – que lhe é mais querido.

Mesmo tendo tudo isto em conta, é discutível que Skepta seja o mais célebre MC a: o debate não é novo, embora esse papel pareça pertencer a Stormzy, com um estilo de música mais orientado para as massas, até piscando o olho a colaborações ocasionais com nomes mais sonantes (Pusha T, Linkin Park ou Kehlani) e com conteúdos mais filtrados, não tão incisivos. Pese embora a base de fãs de Skepta seja composta pelos amantes da primeira hora do grime, que apreciam o som tal como um diamante em bruto por lapidar.

Num som que se define como sujo, Skepta rejeita qualquer tipo de limpeza.

 


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