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Fotografia: Diogo Baptista / gnration
Publicado a: 18/06/2025

Pela abolição da linha de fronteira.

Piny & Xullaji no gnration: pisando para deixar de existir

Fotografia: Diogo Baptista / gnration
Publicado a: 18/06/2025

Segundo ponto de escuta e observação no programa “Zona Franca”. É aqui que vão acontecendo primeiros encontros nas áreas da coreografia e da música. Um convite ao espaço de representações em campos de cruzamento. Resultado de uma produção conjunta entre o Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, e as duas salas culturais de Braga, gnration e Theatro Circo. Desde esta articulação há esse sinal de zona sem controlo e livre de restrições, convidando à criação. Parece que Piny e Xullaji não demoraram tempo algum para se ligar a essa possibilidade de trabalho — num espaço sem fronteiras. Piny recebeu o convite para criar e o nome de Xullaji fez sentido na sua vontade desde esse instante, era algo que esperava apenas a oportunidade para acontecer. O tema foi desenvolvido pelos dois, está-lhes na ordem das preocupações e reivindicações — como a outros também. E se abolissem as fronteiras? O mundo seria feito de lugares mais justos e solidários.

“As fronteiras não satisfazem as necessidades das sociedades contemporâneas. Tanto do ponto de vista filosófico como moral, as políticas restritivas em matéria de fronteiras não se justificam. Antes de mais, as fronteiras dividem e subjugam as pessoas”, como refere Laurent Wenjun Jiang no ensaio académico “Why We Should Open Our Borders”. São heranças trazidas de modelos de imposições territoriais que tentam passar a ideia baseada no respeitar das culturas e da identidade de povos. Mas esse é um modelo gasto, embora desgastando mais e mais, continuando a servir como serviu até aqui, numa ideologia de contraponto económico e de tensão — quem é mais que quem? Bridget Anderson, Nandita Sharma e Cynthia Wright, no editorial “Why No Borders” do número especial da Refuge, descrevem a fronteira como sendo “completamente ideológica”, argumentando como as políticas de fronteiras nos categorizam em “desejáveis e não desejáveis”, pelas competências, raça ou estatuto social, etc.; estabelecendo relações de “sujeitos e subjectividades”, (re)colocando as pessoas em “novos tipos de relações de poder”. 

É isto que é identificado como a causa última das divisões e desigualdades entre comunidades. São barreiras — impostas ao êxodo, à vontade tão humana de circular. Como verseja Regina Guimarães e canta Ana Deus com A garota não, no seio dos Três Tristes Tigres, em “Exodus”: “As mãos apalpam o céu / E crescem asas nos pés / De lés a lés / Caminhantes / Ó vida que se semeia / Todos nascemos migrantes”. Ou putativamente — como em falso subterfúgio — são fechadas essas linhas para garantir condições de salubridade à soberania, de recursos e habitabilidade. E dessa voz — que diz Não, a de Cátia Mazari Oliveira — que da sua escrita nos canta: “Calem-se os fachos que ardam bandeiras / Aqui o assunto não são as fronteiras / É sempre bem vindo quem venha por bem / Problema é haver uma casa pra cem / Salários tão baixos amarga a batuta / Que felicidade interna tão bruta”, no tema “Não Sei o Que é Que Fica” para o qual convidou Xullaji a trazer rimas próprias também. 

Nesta noite, de 9 de Junho, a blackbox do gnration é chão seguro para desafiar a linha de fronteira. Não se trata de olhar como dar o salto — condição de outrora para sobreviver à repressão daqui, ou condição num agora para aqui chegar fugindo dessa mesma imposição noutros lugares. Não se trata de desafiar a linha para contrabandear — tão somente sobreviver na raia, nessa economia restante e transfronteiriça. Aqui, neste agora, Piny e Xullaji estão para coreografar e musicar o apagar da linha. Para isso é preciso apontar, escrever, desenhar um mural — como um muro estendido, que nem o de Berlim, que caiu num certo e feliz dia. Um mural de uma ponta à outra, fazendo cenário, onde ainda se escreve pela mão de joelhos de Piny, no embalo das lâminas enferrujadas de um kisanji nas mãos de Xullaji. Essa África ancestral de ambos está aqui dentro, mesmo longe no mapa do aqui e agora. É agora, porque a guerra progride, porque a invasão avança, porque a ganância do território é tornada lei. Pisa Piny! Pisa em nome das que são espezinhadas por quererem avançar. “No-bor-ders”, disparado em batidas silábicas para ser dançado na ancestralidade duma dança tornada urbana no acontecer mestiço. Sobre as palavras ditas e escritas se faz esta coreografia. “Repetition Is Not Decorative — It’s Deeply Ritual”, lê-se, ouve-se e dança-se. São as pessoas que constroem fronteiras — dizem-nos neste chão. O ritmo de uma na pressa que há-de levar a água ao moinho. Há que sentir este espaço de liberdade criativa, entre a denúncia e a reivindicação: “Spacing. Racing. Chasing. Facing. Tracing. Pacing”. Um espaço reclamado sem fronteiras, sem uma finitude — como está escrito para ficar gravado nos dias. Porque foram assim os dias de construção em residência destes dois artistas. Escrever ideias, como num gigante bloco de notas, para mais tarde debitar e dançar. Fazem-no a dois, e invertem papeis estabelecidos à partida — dança o músico e rapper, e toca a bailarina e coreógrafa. 

“O que se pensa / O que se diz / O que se sente / O que se faz”. Azimutes do pensamento transposto sobre o manto das palavras para pensar, dizer, sentir e fazer pelo tempo e pelo espaço. Mas as fronteiras — linhas de barreira e tampão. “Space has no location, it doesn’t belong to no one, it has no time frame, no beginning, no end”, como está escrito no chão que os sustém, no reforço da ideia da não fronteira. O chão que se pisa para suportar o estar de pé para tocar e dançar, mas onde o pisar serve para tornar diminuto e fazer desaparecer — gesto assumido, mas numa harmonia de passos de uma dança que tem hip hop, vai do breakdancing ao sapateado (mas descalça, sempre nessa condição). 

No fim as pessoas presentes foram convidadas ao mural das palavras, e leu-se ainda mais de perto outras mais das que aqui se transcrevem:

“Que mundo é este que nos faz criar asas, para voar sobre a miséria
E keep flowing para descongestionar as artérias
Que nos levam ao coração palpitante das metrópoles 
Bombeando o nosso cangue como nutriente que alimenta a acrópole. Wall Street
Up Against the Wall Street. Fall Street. Crawl Street. [Homens] de Crawl Magnon
Num vai-vem, vai-vem, dia-sim, dia-sim, esteja bem ou assim-assim
The clock is tucking. Can’t stop, wont stop. Can’t stop running to the bus stop.”


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