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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/12/2021

Um tempero especial.

Pimenta Caseira: “Vemo-nos integrados no mesmo mercado de nomes como Tom Misch, Yussef Dayes ou Kamasi Washington”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/12/2021

“O músico de jazz mantém uma relação com o tema que é livre, que permite constantes escolhas criativas (…) e é por isso que cada performance é irrepetível”. É assim que Luís Figueiredo, professor de jazz da Universidade de Aveiro, explica o segredo do improviso no jazz. E foi exactamente apoiados nessa liberdade que há uns anos surgiram os Pimenta Caseira

Se recuarmos o suficiente, até meados de 2014, chegamos ao momento em as noites de terça-feira do Cais do Sodré passaram a ter um novo tempero. Não era importado e muito menos convencional e o único sítio onde se encontrava esta distinta especiaria era no número 12 da Rua Nova do Carvalho, no Tokyo, espaço que em breve reabre portas numa nova morada. O convite para uma residência musical chegou a Fred Martinho, aka B.E.R.A., como uma oportunidade “de ouro para, literalmente, sem pressão, semana após semana, ir à procura de um novo som”. E foi com esta premissa que começou a história improvisada de Pimenta Caseira. Com o passar do tempo a residência evoluiu, saiu do Tokyo e passou para o Rive Rouge, em 2019, momento em que surgiu o processo de escrita de canções e a vontade de ir para estúdio. Mas 2020 aconteceu e mais um ano se passou.

É, então, em 2021 que a banda desvenda o primeiro álbum de estúdio, Cais, Vol.1, e o Rimas e Batidas quis saber tudo sobre esta jornada musical.

Apesar do conceito já estar pensado, o nome “surgiu numa sessão com o Héber [Marques] dos HMB, que deu essa dica [para explicar] a forma meio guerrilha como trabalhávamos e continuámos a trabalhar”, conta-nos Fred que, para além de fundador de Pimenta Caseira, é também guitarrista e co-fundador da banda HMB e membro dos Groove 4tet. Ao contrário das suas outras experiências musicais, com Pimenta Caseira o percurso tem sido diferente do habitual. “Demorámos este tempo todo porque basicamente tivemos dois anos a residir, a experimentar, à procura do instrumento certo, os músicos certos (…) tínhamos os músicos de residência e os outros apareciam, uns voltavam na semana a seguir e assim chegámos à banda”, revela Fred. No entanto, o músico não fecha a possibilidade a futuros trabalhos com novos elementos. O grupo que gravou o primeiro disco é composto por Fred na guitarra e na talkbox, Zé Maria no saxofone e flautas, Gui Salgueiro, aka Yanagui, nas teclas e Ariel Rosa num kit híbrido de bateria orgânica e SPDs.

Desde a sua fundação, o objectivo nunca se perdeu: a procura de uma nova sonoridade. “Nós nunca fizemos um plano, ou seja, o que acontecia era totalmente espontâneo e continua a ser assim, mas o género e a linguagem em comum já lá estava e todos nós temos muitas coisas em comum, toda a gente ouve muito r&b, soul, hip hop, essa vibe que agora se apelida como lo-fi, que para mim é J Dilla, todos tínhamos essa linguagem em comum e então foi muito simples. Apesar de ter demorado tempo, a direcção a tomar era a coisa mais natural que nós tínhamos para fazer”.

A naturalidade de criação da linguagem dos Pimenta Caseira foi algo inata. Fred conta: “quando começamos a tocar existe um acordo silencioso entre todos. Estamos mesmo em sintonia e acho que a facilidade do nosso som surge desta rara sintonia. Trabalhar em banda ou com outros músicos numa situação ao vivo é dos maiores exemplos de democracia, cinco pessoas em simbiose porque temos de estar todos de acordo em relação a várias coisas. Estamos todos de acordo com o BPM, a tonalidade, a estrutura da música, e depois começamos a entrar por aí fora, na empatia, na maneira como os timbres dos instrumentos casam…” Mas não é só na sintonia que a banda se destaca, é também no facto deste som, apesar de ser criado por uma banda, não soar a banda, ou seja, “quando estou a tocar guitarra com Pimenta, tento que a guitarra não soe a guitarra, que soe a uma cor. Os efeitos que eu ponho e que dou ao instrumento não são necessariamente os que nos levam imediatamente a pensar “guitarra”. A mesma coisa com o baixo. Nós podemos ter um baixista, mas a abordagem que o baixista tradicional teria e o som que ele tiraria desse instrumento nunca seria o som que a gente está à procura para esta banda”.

A sintonia está de tal forma vincada na identidade do projecto que Fred afirma: “mal falamos uns com os outros, fora de brincadeiras, a malta encontra-se, começa a tocar, normalmente nunca numa sala de ensaios, ensaiámos muito pouco ao longo destes anos todos, tanto para o disco, como para os concertos e para as sessões que fazíamos na residência. Os ensaios eram só mesmo afinar a estrutura do que se ia fazer e reservar todos os instintos e toda a explosão para o momento de estar em palco em frente às pessoas”.

Apesar do processo criativo ser contrário ao habitual para uma banda, que passa do estúdio para o palco, os Pimenta Caseira fazem do palco um laboratório musical e para Fred esta naturalidade da actuação ao vivo começa a ser uma lacuna na produção musical actual. “Ainda no outro dia com HMB estávamos a falar disso, em que hoje em dia vemos os miúdos com uma capacidade de produção e de gerar um produto incrível, temos montes de amigos com vinte e poucos anos a assinarem coisas incríveis, mas não conseguem muitas vezes transpor isso para o plano ao vivo. Já demos conta disso, de que está fixe, mas ainda não está lá, apesar de em estúdio o produto já ser incrível e ter um nível internacional. Eu sempre fiz ao contrário, sempre parti da experiência ao vivo para a produção. Mas neste caso foi extremo, sim, porque tivemos muito tempo em frente das pessoas a testar.” 



Questionado sobre se seria falta de oportunidades de palcos, Fred responde que se trata do “contexto dos tempos”. “Eu quando comecei não havia sequer acesso, não se pensava sequer em produzir, mas era muito mais fácil ligar a alguém e marcar uma sessão e ir para um estúdio e ir para uma sala qualquer e tocar e aprender assim. Eu sempre aprendi nessa perspectiva de estar envolvido com músicos. Acho que é mesmo só uma questão de ser muito mais fácil esta geração fazer isso e, no fim de contas, em termos sonoros, não necessariamente em termos de conteúdo, de grosso modo, as coisas estão a um nível incomparável pensando em sete anos para trás. O nível de som que as novas gerações conseguem sacar e fazer e a imitar, a facilidade com que se replica e se salta de um género para o outro é incrível. Eu acho que isso se torna mais fácil do que marcar uma sessão e a evolução é mais rápida [uma vez que] todos têm de estar dispostos a evoluir numa banda, todos têm de estar a acompanhar ou alguém tem de estar a puxar e os outros têm de ir atrás. Pode haver um líder, mas a vontade tem que ser mútua, de que pensar ‘porque é que o som da banda ainda não está neste ponto?’, ‘porque é que ainda não chegámos lá?’. Pode-se fazer isso numa sala de ensaios como numa sala com pessoas à frente. Eu acho mais estimulante fazer com pessoas à frente, mas porque nos sentimos confiantes e porque cada um de nós tinha essa bagagem. O nível de cada um era o suficientemente apelativo para irmos à procura em frente das pessoas. Porque há coisas que não se podem fazer em frente a uma audiência, não é? Não podes estar a descobrir coisas em relação ao teu instrumento, o que é um bocado desrespeitoso, mas estávamos felizmente já com essa viagem feita.”

A música de improviso destaca-se por dois motivos: o primeiro pela incerteza, uma vez que é impossível prever e rotular, e o segundo, consequência do primeiro, pela surpresa. A reação face ao improvável torna a música de improviso uma experiência musical única, quer para o músico como para o público. A descoberta ao vivo, com Pimenta Caseira, “tem sido mais excitante e talvez tenha sido por isso que levámos tanto tempo a gravar material original. Nós começámos por interpretar e improvisar em canções da rádio, de heróis nossos, canções mais obscuras, J Dilla, Tribe Called Quest, tocávamos Drake, mas numa perspectiva muito livre, nunca foi uma cover. Pegávamos na canção, que era matéria-prima e começávamos a improvisar e a tocar e a dar a nossa abordagem. A sensação é incrível, porque há sempre um factor de risco e um factor de desconhecido e isso, pelo menos, que venho de um ambiente e background de improvisação jazzístico, é o que me atrai. O que move essa comunidade é o não saber o que é que vai acontecer. Às tantas, as pessoas quando veem aos concertos já sabem que não sabem o que vai acontecer, apesar de, citando mais uma vez aquela época das residências, lá terem estado na semana anterior, as pessoas não sabiam o que ia acontecer na semana seguinte. E isso era o que as fazia voltar e o que nos fazia a nós ir para lá e ir com os instintos completamente alerta”.

Com Pimenta Caseira nada é previsto, pensado ou idealizado: “agora com o material de originais, sinceramente, a abordagem foi a mesma, nós antes de irmos para estúdio fizemos uma sessão em modo ensaio, para ver e rever temas, eu trouxe canções, o Zé Maria trouxe canções, fizemos uma versão dos Wet Bed Gang, fizemos uma outra versão de uma canção minha dos Groove 4tet, ‘Do the right thing’, título inspirado numa obra incrível do Spike Lee. Fizemos uma sessão muito rápida em que vimos as estruturas, aprendemos as melodias, decidimos algumas coisas e fomos para estúdio”. E uma vez em estúdio, o processo criativo manteve-se fiel à identidade experimental da banda, passando também a ser um palco de experiências e descobertas. “Em estúdio descobrimos em vários takes, e às tantas, tínhamos o que queríamos e partíamos para a canção seguinte. E depois fizemos uma coisa que nunca tínhamos feito, produzir em cima de matéria-prima. Tínhamos o áudio, a sessão live e depois fomos quitando em cima dessa sessão e foi outro processo de descoberta. Estamos super contentes e surpreendidos com o som”. 

Ainda que a essência da banda nunca se tenha perdido, houve momentos que ficaram para trás, impossíveis de rebobinar, já que antes para se ouvir Pimenta Caseira “tinha de estar ao pé dos meus amigos e dos meus irmãos e estarmos a tocar, porque é quando surge aquele som, e isso atraiu-me durante anos. Ir ao Cais do Sodré porque ia ouvir aquele som, que eu acho mesmo que é uma coisa única, o som que nós fazemos. E agora, felizmente, esse som pode ser ouvido à distância de um clique, toda a gente pode ouvir. E estamos muito contentes porque ficou mesmo capturado o espírito de improvisação, o espírito de composição e esse som que é muito peculiar”.

Mas até para uma banda experiente, existem adversidades e os PC encontraram-nas no estúdio. “Um dos desafios era como é que podemos produzir sem desvirtuar realmente o som da banda, porque depois, às tantas, podes, e não é esquecer, mas trabalhas de tal maneira que distancias do que é o som da banda. E foi curioso porque a parte de produção já foi feita durante a pandemia. Gravámos a 20 de Fevereiro e uns dias depois fechou tudo para toda a gente, e estávamos a fazer as coisas à distância. Descobrimos métodos para fazer coisas à distância e isso foi um processo interessante que nos aproximou”.

Contudo, Fred admite que o futuro de Pimenta Caseira será diferente do percurso dos seus outros projectos, uma vez que “são conceitos completamente diferentes” e explica que “não é uma coisa mainstream apesar de ser altamente apelativo, nós vimos isso noite após noite, as pessoas entravam e não estavam habituadas a ouvir música improvisacional, instrumental com as vozes robóticas e ficavam, e isso é que é curioso. Acho que é uma música que quando se tem contacto, principalmente ao vivo, fica-se. É tão fresco e tão energético e a viagem é intensa, e as pessoas ficam”. O músico espera, pelo menos, “concertos a nível nacional, e o que nos for permitido a nível de estrada, naturalmente, o faremos”.

“Mas onde eu vejo mesmo Pimenta integrada, não como um nicho, mas como parte integrante de um movimento que existe, é no circuito europeu, até mesmo mundial, de música semelhante à nossa. Nomes como Tom Misch, Yussef Dayes, Kamasi Washington, e outros por onde esses se movimentam, acho que é um mercado no qual estaríamos taco a taco nas nossas performances ao vivo e até ganhar uma audiência, mas para Pimenta Caseira, em específico, é mesmo encontrar esse mercado. Cá estamos ok, estamos a tocar nos nossos sítios e vamos ver os nossos concertos. Sabemos que isso vai acontecer, mas para fazer carreira de estrada é a nível internacional.”

E para conquistar uma audiência, Fred acredita que não tem de ser a banda a procurar um público, mas sim a meio do caminho se cruzar com um público atento a novas tendências, “que perceba as referências da banda” e que partilhe a mesma identidade. 


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