A vida deixou-o após cumprir noventa viagens completas ao astro solar. De Phill Niblock, compositor norte-americano, fica-nos um legado enorme, desde uma vida inquieta, comprometida com o pulsar da exploração criativa desde a imagem e a música, na estética avant-garde de proa levantada na arte.
Niblock viveu na beleza dos intervalos dos elementos básicos da imagem e do som, entre notas, nas microtonalidades e dissonâncias da música e entre fotografia e frames, nos instantes entre o movimento das imagens. O fascínio da continuidade sonora através das tonalidades drones, suspenso nas notas pedais dos instrumentos. O encanto da ciclicidade do movimento em imagens, num contínuo permanente. As partes feitas de repetições rítmicas capazes de devolver numa peça um todo. Assim na música como nos filmes, as duas linhas de acção primordiais tornadas em vida.
Em 1968, ano maior de ventos de mudança, nas ruas no Maio de Paris e entre montanhas nas Carolinas, na viagem de mota que Niblock contou como sendo um momento maior de revolução em si. Conduzindo estrada adiante, assente num motor a dois tempos, a sua mota ficou sob influencia do cone de ar de um velho camião de motor a gasóleo em marcha lenta, envolto numa massa sonora dos dois motores pulsantes, como forças maiores que a gravidade, em quase coincidente harmonia sonora. Resultando numa cadencia da batida dos dois motores, em frequências ligeiramente diferentes capazes de lhe ter provocado um momentâneo estado de transe, num quase despiste montanha abaixo. Mas tendo definido naquele momento um claro novo rumo — a música drone.
Finais dos sessenta foi o intervalo de revelação da música minimal, desde Alvin Lucifer aos incontornáveis nomes de Steve Reich, Philip Glass, Terry Riley e mesmo La Monte Yong. Phill Niblock, destes o minimalista menos lembrado, está ligado a essa geração de ruptura com a tradição musical secular, numa construção inovadora com base nas escolhas radicais dos elementos basilares da música. Em comum, a composição musical como autodidactas na música, presos apenas à vontade inquieta criativa, libertados de doutrinas escolásticas. Niblock em criança teve como ensino musical nada mais que seis semanas de piano, que em nada corresponderam na prática. Mas vida adiante teria na música aliada às imagens o seu lugar. Frequentador de clubes de jazz em Nova Iorque, onde viu e fotografou gente relevante como Bill Evans, Dizzy Gillespie ou Morton Feldman que relembra, ao ter assistido à prestação em 1961 de Durations: “That was the first time I heard what could really be done with long tones. It was if it gave me permission to make my own music, in a way”, em entrevista a Dan Warburton para a revista The Wire (265), em 2006.
A ideia de movimento infinito, tanto na música através da criação de loops, como em cinema com o uso de imagens sucessivas e semelhantes na forma, como coreografias, são uma matriz identitária e desenvolvida por Niblock. Um fim de princípio, um bater de asas da borboleta Phill Niblock com repercussão “sísmica” em culturas contemporâneas mais distantes até no tempo, como o hip hop é disso exemplo no modo de construção musical.
Começa na segunda metade dos sessenta a filmar em 16mm, curtas a preto e branco, pelo fascínio experimental e abstracto do registo fílmico-sonoro, como expressão documental do encontros com músicos, actores, dançarinos e pintores, numa série de seis pequenos filmes-retratos: Morning (1966-67) com elementos do Open Theater group, The Magic Sun (1966-68) com o registo da Sun Ra & His Solar Arkestra, Max (1966-68) com o percussionista e compositor Max Neuhaus, Annie (1968) com a bailarina Ann Danoff aliando à imagem colagens sonoras, Raoul (1968-69) filmando o pintor Raoul Middleman e Dog Track (1969) na sua expressão mais livre e ficcional dos seis filmes, baseado num texto encontrado e narrado por Barbara Porte. O compromisso com a edição discográfica acontece mais tarde, em 1982 com Nothin To Look At Just a Record e em 1984 com Niblock For Celli / Celli Plays Niblock, como marcos seminais do cânone da música minimal. Já em 1990 com Four Full Flutes, onde em quatro peças compostas para flautas alto e flautas baixo executadas por Petr Kotik, Susan Stenger e Eberhard Blum, abre novos campos na música concreta concebida para instrumentos acústicos.
Já nos anos 2000, pelo selo Touch, dá inicio a uma decisiva série de trabalhos discográficos: Touch Works, for Hurdy Gurdy and Voice (2001), Touch Food (2003), Touch Three (2006), Touch Strings (2009), Touch Five (2013) e Working Touch (2022). Seis edições intimamente ligadas a recolhas fílmicas e que culminam numa edição fílmico-musical no último dos títulos, 11 filmes e composições musicais associadas, reunindo temas compostos em grande parte para instrumentos solos, passando pela instrumentação para eufónio, flautas, saxofones, viola d’amore, voz, violino, percussão e gaita-de-fole.
Entre nós, e contando os tempos mais recentes, Niblock apresentou-se assiduamente como compositor, como cineasta, como videógrafo, ou num todo em simultâneo. Nas visitas frequentes a Portugal, partindo de uma antiga relação com o artista Ernesto de Sousa desde o final dos setenta, fê-lo estar presente na celebração, volvidos vinte anos, da seminal iniciativa “Alternativa Zero” em Serralves. Estando no Porto para a exposição evocativa “Alternativa Zero de Ernesto de Sousa 1977-97”, para um registo filmográfico sobre a montagem. Antes, em 1992, através da criação de uma bolsa de estudos artísticos em homenagem ao artista amigo português, promoveu em Nova Iorque, na Experimental Intermedia Foundation, a formação de músicos portugueses, dos quais nomes como Rafael Toral, Margarida Garcia, João Paulo Feliciano, David Maranha entre outros beneficiaram desse propósito.
Em 2010, na Galeria Zé dos Bois (ZdB) apresentou Stossepeng, uma peça multimédia, entre som e imagem, que contou com as prestações musicais de Manuel Mota e David Maranha em guitarras eléctricas.
Em Janeiro de 2011, no espaço da Culturgest no Porto, teve uma prestação vídeo-sonora, para leitor de CD, computador, mesa de mistura e quatro colunas. Conjugada com a projecção The Movement of People Working, com filmagens da China, Portugal e Lesoto. E no espaço Oporto (ZdB) projectou-se o seu filme Dog Track num primeiro momento de programa, seguindo-se um outro momento performativo com Niblock em manipulações sonoras acompanhado por Katherine Liberovskaya em ação vídeo e Gerd Stern nas declamações poéticas. Em Janeiro de 2012, a ZdB levou Niblock à Igreja de St. George, na companhia de Yven Etienne para uma estreia nacional de três peças. Contando com a prestação musical de André Gonçalves, Manuel Mota e Margarida Garcia em guitarras e David Maranha no órgão de tubos, e Etienne ocupando-se da sanfona. O próprio Niblock ocupou-se da manipulação de imagens projectadas em torno da obra conceptual The Movement of People Working.
A programação do festival Semibreve’2015 contou com a instalação Quietude Acelerada, onde Niblock juntamente com a artista de intermédia Ana Carvalho emergiu no espaço físico. Nas palavras de André e Inês Covas: “Um argumento sensorial, através do qual é proposto o calcorrear metafórico de uma possível vereda por entre a subtileza do Assomo e da serenidade do Desvanecimento.”
Boa parte dos que foram bolseiros de Phill organizaram uma vinda sua para celebrar a vida e obra em Janeiro de 2017. Nesse programa contou com a apresentação das obras: First Out, entre sons pré-gravados e ao vivo de guitarras; Unipolar Dance para sons pré-gravados de violinos e violas e violino ao vivo; entre outras peças. A festa ficou ainda marcada pela exibição em monitor do vídeo realizado pela sua companheira Katherine Liberovskaya, de A dynamic portrait composed from fragments of seventy (+1) extremely close-up interventions on video about Niblock by seventy (+1) people connected to him in some way.
Em Fevereiro de 2019 a Miso Music recebeu “Phill Niblock Films and Music”, uma iniciativa n’O Culto da Ajuda. Tendo sido apresentadas as composições: Vlada BC (2013) para viola d’amore; Rodent (2014) para saxofone tenor; Bag (2014) para gaita-de-fole; V&LSG (2013) para voz e guitarra lapsteel; com projecção de filme/video The Movement of People Working.
Sem saber, mas em jeito de derradeira celebração em vida, na comemoração do nonagésimo aniversário de Phill, a Silent Green em Berlim programou projecções fílmicas e actuações de peças musicais escritas e tocadas por músicos para os quais compôs Niblock, num total comemorativo de 24 horas ininterruptas de celebração. No fim de semana de 11 e 12 de Outubro passado, num programa intitulado Phill Niblock: The Movement of People Working, foram projectados oito filmes/vídeos em simultâneo da série em que o autor dedicou ao trabalho manual entre 1973 e 1991, levando-o a espaços rurais entre díspares paragens como Peru, México, Hungria, Hong Kong, Brasil, Lesoto, Portugal, China, Japão, Sumatra e o Árctico. Filmando o milenar movimento do saber fazer manual, em tarefas do quotidiano rural, serrar, gradar, martelar, semear, martelar, tingir, colher entre outras. A perseverança das tarefas vitais dos dias acompanhada por ambiências sonoras microtonais em drones. Numa monumental obra cinemático-musical de 25 horas que possibilitam múltiplas combinações de projecções e som. Nesta performance berlinense a obra foi complementada pela actuação a cada duas horas com músicos tocando obras compostas em grande parte por Niblock para a ocasião. Participaram no evento: Katie Porter & Lucio Capece (clarinetes baixo) em K&L for KL; Biliana Voutchkova (violino) com Unipolar Dance; Anna Clementi (voz) em Zound Delta I; Thomas Ankersmit (sintetizador Serge) com Surge 2 (UA); Seth Josel (guitarra) com Sethwork; Robyn Schulkowsky (bateria) em Timpani; Deborah Walker (violoncelo) em Herbal Cooled 2; Jens Brand (motores) em ExplMotors; Anna Clementi (voz) com Zound Delta II (UA); Lucy Railton (violoncelo) em Harm; Nicola Hein (guitarra) em poom; Natalia Pschenitschnikova (flauta) na peça Nataliawork e o próprio Phill Niblock na composição e direcção sonora de todas as peças apresentadas.
Com este último e tão recente fôlego demonstrou uma vitalidade pulsante até ao final de vida num movimento continuo, vivendo militante num radiante perpetuum mobile.