Livro

Phil Freeman

Ugly Beauty: Jazz in the 21st Century

Zer0 Books / 2022

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 15/06/2022

pub

Pode argumentar-se que cada novo livro sobre jazz é, antes de mais nada, uma tentativa de entender o que significa tal palavra no turbilhão do presente. É uma questão complexa: para cada cabeça que acredita firmemente que o jazz se tornou outra coisa qualquer mais ou menos na mesma altura em que John F. Kennedy chegou à Casa Branca, em 1961, outra se ergue para contra-argumentar que o jazz é uma cultura viva e mutante que joga, como diria Nate Chinen, com as mudanças que o avanço do tempo – ou seja das ideias, da cultura, da tecnologia – impõe. Phil Freeman, crítico, investigador e mentor da Burning Ambulance, um site e podcast que existe desde 2010 e que agora também é selo editorial, acaba de apresentar a sua própria contribuição para esse continuado debate com Ugly Beauty – Jazz in the 21st Century, livro lançado com chancela da Zer0 Books.

“O livro concentra-se na cena americana, mas existem secções que se debruçam sobre músicos do Reino Unido e da África do Sul”, explica o autor, numa troca de e-mails. “Eu estou de alguma forma familiarizado com certas cenas de jazz europeias, particularmente Portugal e países nórdicos (Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia), mas acho que a cena europeia tem a sua própria identidade especial que tem valor para uma abordagem separada por outros escritores que estejam mais dentro do assunto”, justifica, apertando o foco muito mais do que o que o título do seu novo livro poderá inicialmente sugerir. O jazz, no século XXI, não existe apenas no eixo Estados Unidos-Inglaterra, o mais representado nos artistas que se abordam em Ugly Beauty, tendo-se afirmado como linguagem realmente global com válidas cenas estabelecidas em todos os continentes. Quando Freeman escreve que o seu livro “não é tanto uma enciclopédia, antes uma colecção de postais” é preciso entender que esses postais foram “enviados” sobretudo de Nova Iorque, tendo o autor feito pontuais desvios por Chicago, Los Angeles ou Londres. E mesmo o texto em que Freeman mergulha na cena Sul Africana nasce de uma descoberta feita em Nova Iorque, quando viu pela primeira vez o pianista Nduduzo Makhathini ao vivo numa galeria de Bleecker Street.

Ainda assim, num momento em que o jazz parece atrair novas audiências e renovar atenções por parte de meios de comunicação não especializados, facto que se poderá atribuir ao trabalho de uma nova geração de artistas menos interessados em abordagens dogmáticas e mais apostados em testar os limites do género quando procuram cruzamentos com outras linguagens musicais e até quando introduzem novas ferramentas nessa prática, um olhar como o que Philip Freeman propõe reveste-se de redobrado interesse.

“Isso é algo com o qual lido de forma extensiva no livro, discutindo, por exemplo, a mistura de jazz com música electrónica de Shabaka Hutchings nos The Comet Is Coming, ou falando com músicos mais novos (com menos de 40 anos) sobre se sentirem tão ligados ao hip hop como ao jazz e combinarem estes dois conceitos musicais num só”, concorda o autor. “Pessoalmente, eu acho que é uma coisa boa, desde que a música seja boa, e é — muito melhor do que nos anos 90, quando os músicos de jazz traziam um rapper ou um DJ para tentar enxertar ou transplantar hip hop para dentro da sua música. Raramente resultou, mas agora há músicos que cresceram a respirar hip hop e que tomaram a decisão consciente de ir para o jazz, em vez de fazerem o contrário. Também fico feliz porque os músicos de jazz mais novos parecem estar a abraçar o seu papel de ‘entertainers‘, demonstrando um estilo visual cativante e fazendo concertos que são capazes de atrair jovens. Até um veterano como o Branford Marsalis entende isto; ele uma vez disse-me que existe uma razão para as pessoas dizerem que vão ‘ver uma banda tocar’. Shabaka, Kamasi Washington e Christian Scott aTunde Adjuah — estes perfomers dão-nos um espectáculo, e o público (e os jornalistas) respondem”, confirma Freeman. Esses retratos – vívidos e urgentes –, são traçados com a desenvoltura própria de quem passou a vida a reportar a partir das mesas de clubes e das plateias de festivais, percorrendo as artérias de grandes cidades em busca do som que nunca se repete: “It’s January 2, 2020, a brisk but sunny day, and I’m to meet saxophonist JD Allen at Samurai Hotel Recording Studio”, escreve Freeman situando-nos não apenas no tempo, mas num lugar muito específico, com a precisão de um repórter que faz questão de nos levar consigo na sua aventura de descoberta.

Escrito sobretudo durante o confinamento, Ugly Beauty condensa alguns anos de trabalho de Philip Freeman. “Algum dum material deste livro já tem alguns anos, sim”, confirma o autor. “Algumas das cosias são adaptadas de peças que escrevi para as revistas Wire e DownBeat ou para publicações online como a Stereogum e o meu site Burning Ambulance, mas existem várias secções que contém entrevistas novas”. “O livro está estruturado como uma série de perfis/ensaios curtos sobre 40 artistas”, prossegue o autor, “alguns deles destacados individualmente, outros em pares ou em grupos em que vejo ligações entre eles. A maior parte desses perfis/ensaios começa com uma descrição de uma performance que tenha visto do artista, depois analiso o seu trabalho e incluo declarações sempre que se justifica. O livro está dividido em cinco secções, cada uma com uma pequena introdução a explicar o seu tema principal. Estas secções falam de músicos tradicionais; vanguardistas que estão a levar o som para a música clássica e para a música de câmara; os chamados músicos de jazz espiritual; cinco trompetistas que eu penso que representam o futuro; e artistas que têm uma abordagem punk rock no seu trabalho. Mas existem conexões de secção para secção também” clarifica Freeman.

A tradição de JD Allen, Ethan Iverson ou Jason Moran, a vanguarda de Vijay Iyer, Tomeka Reid, Mary Halvorson ou Linda May Han Oh, a espiritualidade que se desprende da música de Shabaka Hutchings, Yazz Ahmed, Nubya Garcia ou Brandee Younger e Kamasi Washington, o trompetismo de Ambrose Akinmusire, Theo Croker e Marquis Hill e o novo agit-jazz de Moor Mother, Kassa Overall, Jaimie Branch ou Matana Roberts merecem pertinente atenção de Phil Freeman que em cada um destes artistas encontra os vitais elementos que colidem na fluída fórmula de que se faz o jazz no século XXI. “From my point of view, though”, escreve Freeman no remate do seu perfil de Christian Scott aTunde Adjuah, “the word ‘jazz’ is not a box or an envelope; it’s an umbrella, or a house. All who wish to stand under it, or live within it, are welcome”.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos