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Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 22/02/2022

Depois de olhar para dentro, agora é tempo de olhar para fora.

Phaser: “O Genesis é quase metalinguístico na medida em que retrata o meu percurso enquanto o planeava e o criava”

Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 22/02/2022

O video-álbum foi lançado em 2021, durante a pandemia, e esta terça-feira, dia 22 de Fevereiro, surgem as remisturas de Genesis com as participações de 18 artistas. A viagem de Phaser pela música e pelo cinema continua, mas agora a perspectiva é outra: o ouvido e o olhar de Miguel Loureiro viram-se para o que está em volta, ao mesmo tempo que as suas visões sonoras são observadas por outres, de fora para dentro. 

A viagem percorrida por Genesis, trabalho publicado no YouTube e vendido numa pen USB, não está terminada. Os temas do mesmo foram objecto de versões, perfazendo uma hora e 11 minutos de música. um6ra, Wugori, Dianna Excel e Bejaflor foram alguns dos nomes que contribuíram com o seu twist. O Rimas e Batidas quis saber mais e é a isso que vamos, agora e aqui mesmo. Ora venham lá.



O video-álbum Genesis foi lançado o ano passado em plena pandemia e teve o impacto que a situação excepcional que vivíamos possibilitava. Agora anunciam-se remisturas dos mesmos materiais. Podes concretizar um pouco mais o que vamos ouvir?

Este projecto é extremamente importante para mim. Através deste álbum de remixes quero dar palco a toda a gente que se mostrou interessada em participar, desde produtores que conheço bem a outres com quem tive menos contacto. Para além disso, todos os produtores que participaram passam a conhecer-se melhor e abre-se uma janela para novos ouvintes conhecerem o Genesis. Descobri a beleza na reinterpretação das minhas criações pelas mãos de outras pessoas, quase como se as minhas músicas ganhassem uma vida diferente. Ouvir outra pessoa pegar num pequeno som que fiz e usá-lo de uma forma que eu nunca usaria é concretizador, e honestamente entusiasmante. Com 14 faixas, 18 artistas e uma hora e 11 minutos de música, surgiram remixes nos géneros de pop, hyperpop, techno, funk, IDM, hip-hop, industrial e trance, e mais algumas faixas que não quero ser eu a categorizar. Estou mesmo feliz com este projecto, grate a todes os que participaram e ansiose por apresentá-lo.

Genesis foi disponibilizado ao público no YouTube e em plataformas de streaming e distribuído numa edição em pens USB limitadas e numeradas. Se no primeiro caso se trata de uma prática comum nesta era digital, no segundo houve a intenção de buscar um suporte algo diferente do habitual, físico ainda, mas electrónico. Passou essa decisão pela ideia de que uma abordagem musical (e videográfica/cinematográfica) distinta das dominantes implicava uma disponibilização igualmente alternativa?

Não foi preciso muito tempo até perceber que ia ter um problema enorme em criar e/ou encontrar a forma física do Genesis, tendo em conta que é um video-álbum. Para um álbum facilmente faria CDs ou discos em vinil, mas isso desvirtuaria a parte cinematográfica do projecto e, mesmo que existam outros formatos que o encapsulassem na íntegra, já não conheço muita gente que lhes dê uso prático, como uma cassete ou um DVD. A divulgação do video-álbum no YouTube foi algo lógico, porque é a plataforma onde o projecto consegue viver sem perder nenhum aspecto de si mesmo, porém quis fugir ao digital e ter algo palpável para poder tocar e olhar sem ser num ecrã.

Também queria que o projecto assumisse uma forma física que fosse fácil de transportar, e acabei por encontrar na pen USB o equilíbrio perfeito. Poder usar o álbum como acessório, levando-o connosco para onde quisermos, acho que é das minhas maiores conquistas em termos de conceito. Todas as pens foram vendidas numa caixa reciclável de composto de bambu, com uma corrente para servir de colar. Conheço pessoas que já falaram deste álbum à família enquanto jantavam porque lhes perguntaram, “o que trazes aí ao pescoço?” Recebi, inclusive, mensagens de alguns pais a congratularem o projecto, o que me deixa o coração mesmo quentinho.

O projecto Phaser é interdisciplinar e intermediático, integrando música e cinema (ou vídeo, pois apercebo-me de alguma inspiração na video-arte). Gostaria de saber mais sobre este duplo interesse, as motivações para o seu cruzamento, a intenção de dar à música uma narrativa visual e as referências que tens…

Sempre vi a música e o cinema a percorrerem caminhos semânticos muito parecidos; enquanto o cinema trabalha a narrativa de uma forma visual, a música fá-lo com som. A video-arte acaba por ser outra forma de explorar a simbiose entre a dimensão conceptual, o som e a imagem. Lembro-me de ver o Hi This Is Flume do artista australiano Flume, e ficar deslumbrade com o universo que ele conseguiu criar através do som e da imagem. Esse projecto fez com que tivesse coragem de encarar o Genesis como o meu dever artístico, tanto que a parte da faixa “To Feel” no video-álbum é uma ode directa a esse projecto. O meu objectivo na música é continuar a explorar essa relação de simbiose artística entre o som e a imagem. A forma como escrevo e componho é extremamente visual e sensorial, na medida que imagino algo diferente para cada música e cada música me sabe a algo diferente. Tenho a certeza de que muitos músicos partilham esta forma de sentir, mesmo que alguns não lhe prestem atenção. A questão da consciência é muito importante para mim. Como trabalhei no mesmo projecto durante dois anos tive bastante tempo para me sentar comigo mesme e dissecar o que estava a sentir, a fazer, e o porquê. Esse tipo de consciência acabou por moldar a forma como abordo o processo criativo, e fez com que o que faço seja mais vezes intencional ao invés de subconsciente.

O teu posicionamento situa-se entre a club music e a intervenção artística, alimentando os âmbitos de cada uma destas partes com elementos da outra. Tendo em conta que, regra geral (se bem que com muitas excepções), estes dois mundos se ignoram mutuamente, quais são os teus propósitos? E onde queres chegar com esse mix, tendo em conta que, no teu caso, as imagens não são apenas ilustrativas, assim como a música não existe apenas para suportar as imagens?

No fundo, o meu propósito é continuar a criar. Como artista, imponho a mim mesme esse objectivo e dever. Gostava de um dia ver uma obra minha feita em contexto de galeria, como gostava de um dia tocar para muitas pessoas. Saber que o que faço na música é motivado pelas minhas intenções e motifs artísticos, e saber que isso motiva e molda a minha visão, faz com que acabe por não ver grande distinção dentro da criação artística sem ser nas suas dimensões técnicas. Encontro no mundo da arte o mesmo que encontro na música, auto-reflexão, expressão artística e libertação pessoal. Os expoentes da club music e da intervenção artística vivem com es artistas, e es artistas também são consumidores de ambos. No meu trabalho quero continuar a explorar diferentes formatos de consumir música e arte, assim como as diferentes relações que as imagens e o som podem ter.

A tua abordagem da música e do cinema alinha-se com o que se vai designando como “música queer” ou como uma “arte queer”, nas suas várias manifestações, em Portugal como noutros países nos domínios (em separado ou em conjunto) da performance, da dança, do teatro e do audiovisual (e da forma como no audiovisual todas essas outras disciplinas artísticas podem interagir). Tens isso como implícito, como algo que surge inevitavelmente, ou há uma explicitação, uma intenção?

Como artista queer, vou continuar a criar sem limitações, sem constrangimentos, e a exercitar a minha liberdade pessoal e artística através da música. Por exemplo, quanto à identidade de género, conheço muita gente que se familiarizou com o conceito através de artistas musicais. É impossível negar o cariz interventivo da arte e da música, assim como o seu impacto na sociedade. Essa dimensão é uma das grandes forças deste medium e na minha opinião é algo que a minha arte ainda não encapsulou totalmente. A minha própria jornada de auto-descobrimento vai sempre dar a mão com a minha música ou com a minha arte, e tenho a certeza de que os meus próximos projectos vão ser um espelho ainda maior de quem eu sou e o que quero dizer.

A tua música é criada com base no uso de sintetizadores analógicos, num tempo em que as opções da música electrónica vão imediatamente para a utilização do computador. Trata-se, à partida, de um statement?

Quando era criança, o meu pai motivou-me a aprender a tocar guitarra, e no meu secundário fiz parte de uma banda de indie rock. Foi essa a primeira experiência que tive com o processo de criação musical. Como cresci a interagir com um instrumento físico, parte da minha tendência a perseguir os sintetizadores analógicos e os instrumentos físicos vem daí. Quando comecei a produzir no computador com plugins e instrumentos virtuais fiquei absolutamente fascinade com a possibilidade de criar quase qualquer som que quisesse, e com a quantidade de ferramentas que tinha à mão, por mais que ainda não as soubesse utilizar. Hoje em dia já consigo afirmar que dediquei tempo suficiente à produção digital e aos instrumentos físicos para os conseguir dominar com o mesmo nível de confortabilidade. Ainda assim, prefiro pegar em sintetizadores analógicos para começar a compor algo. Quase todas as faixas do Genesis têm sons tocados no Minilogue XD. Sempre senti que conseguia traduzir melhor o que estou a pensar através dele, como se fosse uma extensão do meu corpo. Não é um statement, porque sem o meu DAW a minha música não existia. Sinto-me mesmo grate por viver numa época em que qualquer pessoa com um computador tem acesso a ferramentas e sonoridades que os músicos de há 30 anos nunca imaginavam. Penso imenso nisso, e na quantidade de música que não chegou a ser criada por falta de recursos, o que acaba por me motivar ainda mais para criar.

Em Genesis, mas julgo que também em todo o teu trabalho, há a ideia de identificar a “viagem” proposta ao público (o que já por si é um tema de discussão interessante) com o processo, o teu processo criativo, numa exposição obviamente que encenada dos alicerces da obra final. No caso de Phaser, esses alicerces são mais do que os da obra em si, são os de ti próprie, são a tua pessoa, e essa é uma das características que singularizam o projecto. O que me podes dizer sobre isto?

Nestes dois anos aprendi que este tipo de projectos é intrinsecamente psicológico, uma longa jornada de auto-conhecimento, e sem eu querer acabei por me encontrar a mim mesme no meio deste projeto. A noção de “viagem” para mim simboliza também a aceitação do que vier no processo criativo como fazendo parte dele, existindo um início, um meio e um fim. Acredito que essa noção também se estende a Phaser, numa escala muito, mas muito maior. O Genesis é quase metalinguístico na medida em que retrata o meu percurso enquanto o planeava e o criava, e as minhas diferentes metamorfoses.

Na apresentação que fizeste de Genesis sublinhaste dois factores que gostaria que aprofundasses nesta conversa, o da honestidade da obra (“tornar a experiência o mais honesta possível”) e o da sua sensorialidade (falaste nos “ambientes que melhor representam as músicas a nível sensorial”). Um é ético e o outro vivencial. Até que ponto são forças condutoras da tua arte?

A honestidade em Genesis existe no seu formato. Seria desonesto apresentar este projecto em qualquer outro formato. Mesmo que fosse mais prático chamar-lhe de álbum ou curta-metragem, não representaria a sua essência na íntegra. A sensorialidade foi um factor importante na criação em geral, mas na criação cinematográfica acabou por ter um peso maior. A decisão das localizações foi premeditada tendo em conta o que cada música simbolizava e o que queria que cada música transmitisse, mas não sabia que isso acabaria por moldar tanto o que tinha planeado. Quando chegámos aos locais de rodagem, a música a tocar e o local acabaram por fazer com que gravássemos shots diferentes que não estavam planeados e que surgiram pelo que sentíamos ao estar ali.

Como nenhum criador é uma ilha, estando de algum modo em relação com o que o rodeia, como te situas na cena musical/artística presente do nosso país, seja por confluência, por distinção ou por alheamento?O que mais te toca na produção de outres artistas e que caminhos não queres, de todo, seguir?

Tenho vindo a descobrir pouco a pouco a cena musical electrónica, as pessoas que para ela contribuem e que dela vivem. No meio desse processo apercebi-me da existência de um enorme sentido de união, entre produtores, DJs, consumidores, e é esse sentimento de união que eu quero continuar a sentir e a cultivar na música. Acredito plenamente que dentro do meio artístico crescemos todes juntes. Vou continuar a perseguir este sonho, por mim, por todes es que acreditam em mim, por todes es que querem ouvir o que tenho a dizer, e por todes es artistas. É muito cedo para ter certezas de um rumo, mas sei que não quero parar.

Para além de Genesis, e das remisturas de Genesis que aí vêm, o que devemos esperar de Phaser, a persona, e de MiguelLoureiro, e artista, no futuro?

Em qualquer direção que eu siga, sei que a relação entre som e imagem vai estar sempre presente. Por agora quero continuar a refinar a apresentação ao vivo do Genesis e explorar a dinâmica de concerto. Tanto como produtor ou como DJ, os momentos ao vivo em que partilhamos o mesmo espaço e as mesmas emoções a ouvir a mesma música são os que me fazem sentir mais vive. Levamos todes vidas diferentes, somos todes pessoas diferentes, mas estamos ali pelo mesmo objectivo, viver a música e a companhia uns dos outros. Já tenho um esboço mental de como quero que seja o meu próximo projecto, e posso dizer que vai contar com muitas mais colaborações. Em Genesis olhei para dentro e agora quero olhar para fora.


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