Não é todos os dias que surge a oportunidade de se entrevistar uma lenda mundial do hip hop, mas desta vez temos a agradecer ao Iminente e à Versus. Tentando estar à altura de tal tarefa, depois de assistir a um dos concertos mais esperados da noite, seguimos ao encontro de Pharoahe Monch, que para nosso deleite — e de quem nos lê — nos cedeu alguns minutos do seu tempo para uma conversa no backstage do palco principal.
Humilde, apesar da sua já longa e respeitada carreira, e aberto ao novo, mesmo que carregando o estandarte da velha escola — já com barbas brancas, algo obviamente visível mas reforçado pelo próprio –, numa entrevista com o Rimas e Batidas este icónico nome falou-nos sobre a importância de se nutrir um eterno amor pela cultura, no seu todo, sem menosprezar quem se chega à frente e prospera na novidade.
Como indicador da livre troca de ideias que estaria prestes a ocorrer, Monch saiu do seu camarim a cantar nada mais nada menos que um dos hits que tem ocupado muito do espaço mediático no rap americano nos últimos tempos:, “Munch (Feelin U’)”, tema de Ice Spice. Incrível.
Acabaste de actuar neste festival cujo cartaz enaltece tanto novos artistas como artistas já consagrados: como é para ti ser considerado realeza do hip hop até hoje?
É com muita humildade que continuo a sentir-me sempre tão impactado por tudo isto, sou mesmo um grande fã. Estou a falar muito a sério quando digo que estou grato às lendas que me antecederam e toda a linhagem que faz parte em termos da cultura e de todos os aspectos disso. É mesmo muito fixe, permite-me estar aqui ainda, então presto homenagem à nossa velha escola. E nós somos velha escola agora, obviamente, já tenho cabelos brancos na barba e o caraças; somos também essa velha escola, para além das outras pessoas que são da velha escola e é importante continuar a contar e manter viva a história de como tudo isto começou. E não são só rappers e DJs; é graffiti, a sua arte, é breakdancing; são todas estas coisas que o tornaram aliciante [o hip hop], então continuo a sentir-me muito honrado por fazer parte da cultura e digo isto de coração. Sinto-me muito honrado.
Sentes diferenças entre o público europeu e o público americano?
Eu acho que nos muitos anos que ando a fazer isto passei por diferentes fases da Europa, da América e do hip hop; e, mesmo no princípio, a Europa estava a arrasar com os Estados Unidos, no sentido em que a arte era apreciada; houve um ataque à arte na América e por isso a propaganda e a rádio misturavam-se muito; obviamente que, no início, se fazes um bom disco, fazes um bom disco, o que originava comentários como “ó, ele é muito bom! Vamos vê-lo!” e isso depois transformava-se em marketing e tudo mais. Então acho que durante algum tempo a Europa evitou um bocado tudo isso e seguiu o seu coração, demonstrando “gostamos do KRS-One, gostamos de Mos Def, estão a ver? É disto que gostamos, não importa o que é popular, é isto que sentimos”. Mas agora, com a Internet e redes sociais, é difícil não se ser persuadido por pessoal que não teve de passar pelo mesmo processo, pelos mesmos “testes”, como se pode ver pelo que estávamos a cantar mesmo agora, aquela música: “You thought I was feeling you?” É um sucesso tão grande e apareceu do nada… e eu gosto dela e gosto dessa música.
É verdade, é catchy, fica na cabeça.
Mas a génese da cena muda de uma melodia incrível, de um refrão incrível, de uma música incrível – e estou a falar de Earth, Wind & Fire, Michael Jackson, Led Zeppelin, Mary J. Blige, todos esses nomes, que fizeram música incrível — para o que a Internet está agora a forçar-nos a fazer ou consumir… temos de fazer reels agora! Temos de fazer isto e aquilo; e a capacidade de concentração vai encurtando e por isso pode tornar-se em algo como [canta rápido] “you thought I was feeling you” e as pessoas ficam tipo: “isto é incrível!”. Nem precisas de mais do que isso. Mas acho que é importante reter o amor pela pintura completa, pela arte a grande escala; lembrarmo-nos do aspecto relativo ao tempo que é necessário para fazer música lendária e, ao mesmo tempo, respeitar a grande capacidade desta jovem artista, cuja canção eu adoro e estou inclusive a cantá-la.
Consegues imaginar o que seria para ela saber que um nome tão conhecido e respeitado no hip hop como o teu conhece e gosta da sua música? É de loucos.
Yeah, mas é isso que a tecnologia forneceu, ela está a ter essa exposição. Mas ao mesmo tempo há uma construção nisso, percebes? Qual é o nome dela?
Exacto, entendo, estava a tentar lembrar-me do nome, mas não o fixei. É Spice qualquer coisa.
Exacto. Portanto, não é para estar a pôr o velho contra o novo, mas: KRS-One; eu sei o nome dele, tenho o nome dele fixado, tal como do LL Cool J e do Big Daddy Kane — são nomes, é algo que vai ficar contigo. Eu acho que, apesar de o artista não ter culpa, o conceito da música descartável é que vais ser expulsa quando a próxima coisa cativante aparecer. E depois vamos dizer: “Lembras-te daquela rapariga? Qual era o nome dela?” e não te vais lembrar.
O teu mais recente projeto A Magnificent Day For An Exorcism tem uma forte presença de um elemento rock. Porque é que decidiram incorporar este tipo de sonoridade neste projeto?
Era o que eu costumava ouvir quando era mais novo. Cresci a ouvir gospel, soul, James Brown, [John] Coltrane, Stevie [Wonder]. E depois tive outro irmão que tocava Black Sabbath, Deep Purple, Led Zeppelin, o que era curioso para mim — agora entendo como a cultura do rock, assim como o blues, também é música negra. Isso era intrigante. E adoro como certos grupos interpretaram isso e onde levaram essa sonoridade. Eu sempre quis ter a liberdade de uma banda e acho que esta foi uma boa forma de expandirmos, com o meu guitarrista Marcus Machado, de quem eu sou muito fã, e com o Daru Jones, que também é espectacular. E eu acho wack arranjar um nicho e não sair de lá; acho brutal para os artistas de hip hop, ou para mim — deixa-me falar por mim — desafiar-me a mim próprio e não ficar do género, “vamos fazer outro ‘Simon Says'”, mas ao invés disso pensar, “o que é que me vai desafiar?”, para me empurrar e fazer correr riscos. Correr riscos onde as pessoas talvez até se possam rir de ti, ou não gostar do que estás a fazer, mas onde possas furar e entrar numa nova vibração. Por isso, é fácil para mim repetir um estilo, mas quero desafiar-me a mim próprio.
Há também uma clara influência de filmes de terror nesse projecto. Porquê este género de todos os géneros? Tens algum filme em específico que te inspirou?
[Risos] No geral não, é só que na altura desse álbum as coisas estavam muito más; a situação da América é mesmo muito assustadora, então não há nada que eu possa dizer ou nenhuma sonoridade que poderíamos inventar que seja mais assustadora que a insurreição ou tudo o que se passou e passa com George Floyd. Uma pessoa pensa mesmo: “Esta merda é de doidos”. E, mesmo agora, é uma coisa que se estende ao mundo inteiro, toda uma ameaça de guerra nuclear… dou por mim a pensar: “A sério? Ainda estão com estas guerras em 2022?”. Então, acho que não há nada que eu possa fermentar musicalmente que eu ache que possa replicar algo tão assustador como o racismo e o medo na América e toda esta situação de nos quererem separar enquanto humanos, quando há 30 anos eu pensava que íamos estar a unir-nos enquanto pessoas. Mas estamos a dividir-nos em assuntos que podiam ser tão simples. É assustador.
Depois de todos estes anos, o que é que ainda te inspira a fazer música?
Isso é simples e fácil. Novamente, eu amo hip hop, ouço outros MCs: Jay Electronica, Royce da 5’9”, KXNG Crooked, Joell Ortiz, podia continuar só a dizer nomes de pessoas que gosto de ouvir. Os new cats: Mach-Hommy, Your Old Droog, Roc Marciano, Tha God Fahim.
O hip hop mais underground ainda te entusiasma da mesma maneira?
Esse hip hop underground em que barras estão a ser criadas activamente de uma maneira que eu até fico: “Isto é uma loucura”. E também queria mencionar Kumbaya, que é uma artista que me “rebenta” com o cérebro actualmente, acho que ela pode explodir a vários níveis, é super técnica, toca bateria. Notável.
Há alguma música da qual te sintas mais orgulhoso? E também uma que consideres que tenha sido a mais complicada de escrever?
Elas têm todas um lugar específico e especial. São tipo uns 67 filhos que têm todos lugar no meu coração. Estas criações crescem realmente e, sabes, “Still Standing” é uma cena, “Simon Says” é uma cena, “The Life” é uma cena e valorizo-as a todas. Se eu tiver de escolher aquela que eu guardo com mais carinho no meu coração – hoje porque pode mudar amanhã — é a “Still Standing”. E todo o álbum PTSD foi difícil de escrever para mim porque é pessoal e está relacionado com a minha depressão.
És certamente uma influência para muitas pessoas que queiram seguir uma carreira no hip hop ou para aqueles que amam a cultura. Tens algum tipo de mensagem que queiras passar?
Eu acho que a coisa mais incrível de 2022 e de se estar vivo é que é uma altura bonita para se estar grato. Podes acordar de amanhã e decidir ao nascer do sol: “É isto que eu quero e é isto que eu vou fazer e vou mudar o mundo”. Podes literalmente dizer isso, podes literalmente construir a tua própria realidade no teu círculo social, nas redes, na tua vida, nas tuas crenças. E sinto que antigamente não tínhamos o poder para fazer isso, mas neste preciso momento podes dizer algo como: “Vou ser o CEO da minha própria empresa que promove espectáculos de hip hop em Lisboa e pode totalmente dar certo e explodir”. E as pessoas até podem dizer “ok, como queiras” e tu podes ripostar só com um: “Não, eu estou a falar a sério”. Se tens um sonho, agarra-te a ele, segue em frente. Estas ferramentas foram inventadas para criarmos essa mesma realidade; estão a ser utilizadas para o mal, mas foram aqui postas para dar essa oportunidade de executarmos esses sonhos nas nossas páginas, por exemplo. E são coisas que acontecem todos os dias.
E pode bem acontecer, como aconteceu com a nova a estrela de quem estávamos a falar.
“You thought I was feeling you?” [risos]