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Pedro Costa

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Pedro Costa, da Clean Feed, recorda o génio do free jazz alemão.

Peter Brötzmann (1941-2023)

Em 1967 o mundo estava a celebrar o amor e a paz, era o flower power e o amor livre. O jazz chora o desaparecimento de John Coltrane enquanto o que jazz com identidade europeia era apenas pouco mais do que um sonho.

Nesse ano Peter Brötzmann grava For Adolphe Sax com Peter Kowald e Sven-Åke Johansson e este tsunami varre completamente todos os alicerces do jazz e até do free jazz. Enquanto o free jazz americano bebia a sua espiritualidade nos blues e no gospel, utilizando motivos muito simples como pontos de partida para a improvisação e celebração, Peter Brötzmann, ao invés, era uma máquina de guerra, uma verdadeira metralhadora (como se apresentou em Machine Gun, de 1968).

Nascido em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial, na cidade de Remscheid, perto de Wuppertal, cresceu e tomou consciência muito crítica em relação às opções tomadas pelo seu país nas últimas décadas. A sua música não bebia no som dos escravos, nos blues ou na espiritualidade negra americana, mas nos canhões, na guerra e especialmente no difícil, horrendo e humilhante pós-guerra.

Estive com ele em muitas ocasiões ao longo dos anos. Editei na Clean Feed vários discos dele, e programei-o umas quantas vezes nos festivais e concertos que organizei, nomeadamente em Ljubljana onde, em 2013, durante a minha co-curadoria fizemos uma programação à volta dele com quatro concertos, mas principalmente uma mega-exposição do seu trabalho como artista plástico com obras realizadas entre 1959 e 2013.

Noutra ocasião, em 2005, programei o seu trio para o Teatro Variedades no Parque Mayer. Neste festival estiveram três lendas do jazz europeu, uma por dia — Louis Sclavis, Alexander Von Schlippenbach e Peter Brötzmann. Precisamente nas costas do Teatro Variedades ficava, e fica, o Hotel Lisboa Plaza. Foi durante o soundcheck do concerto que tudo aconteceu. Alarmados pelo volume de som que vinha do teatro ainda antes de ser ligado o PA, o Hotel ligou para a polícia que entrou em contacto com a Câmara e, “pára tudo!”. Só me lembro de andarem a medir os decibéis nos quartos do hotel enquanto se percebia que nem valia a pena falar com quem soprava a plenos pulmões como se não houvesse amanhã.

Uma outra vez na SMUP, primeiro ensaio e primeiro contacto entre o homem e os Black Bombaim (que daria no histórico disco Black Bombaim & Peter Brötzmann). Antes de Brötz chegar à sala de ensaio da banda filarmónica da SMUP, já a banda rock tratava de pôr os amplificadores no máximo. Na sua chegada perguntei-lhe se não queria ligar o PA e colocar um microfone para equilibrar as coisas, ele disse “vamos ver”. A verdade é que quando deitou o saxofone à boca já não se ouvia a guitarra, o baixo e a bateria. A potência era tanta que tive de ir à casa de banho à pressa buscar papel higiénico para fazer uns rolinhos e enfiar nos ouvidos. No fim desse primeiro take disse-me com toda a calma, “é melhor ligar o PA, não me consigo ouvir”. Já eu tinha os ouvidos a zumbir, mesmo com o papel enfiado nos ouvidos.

Tocou até cair, aos 82 anos, como ele sempre quis que acontecesse. Foi um monstro do jazz, os seus discos são obras-primas da música e dentro das centenas que gravou não há nenhum sequer mediano. Com ele foi sempre full blast, sempre 100%, até ao fim.


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