[TEXTO] Alexandre Ribeiro [FOTOS] Sara Coelho
Perigo Público e Sickonce acabam de lançar o vídeo de “Quando o Céu Cair”, faixa que abre 1991 e que conta com a participação de Dino D’Santiago.
Em Junho passado, o Rimas e Batidas reuniu-se com a dupla algarvia em Lisboa – curiosamente, o cantor estava na mesa ao lado a acompanhar – para conversar sobre o início da relação musical, as temáticas abordadas em 1991, o panorama actual no hip hop nacional ou a arquitectura sónica construída por Rafael Correia para servir os versos autobiográficos de Élton Mota.
Em baixo, podem ver o novo vídeo e ler a entrevista:
Queria voltar atrás no tempo para falar sobre o início da vossa relação artística. Quando é que se encontraram pela primeira vez?
[Perigo Público] Não consigo precisar isso porque já foi mesmo há muitos anos…
Mas foi por causa da Kimahera?
[Perigo] Foi antes. Na altura acho que nem existia.
[Sickonce] Não, não existia. Provavelmente, os primeiros contactos foram em algum concerto em que estávamos no mesmo cartaz. Na altura eu era DJ de todas as festas hip hop no Algarve porque não havia alternativa. E provavelmente houve alguma actuação tua ou de APC. Provavelmente deve ter sido uma coisa assim.
Entretanto, a nossa relação estreitou-se quando fizemos parte da Chocolate Bars, a editora do Twism, e isso é antes da Kimahera. Mas foi a primeira vez que trabalhamos juntos.
[Perigo] E depois, a partir daí, sim, começámos a manter uma relação profissional. E de amizade também.
Quanto tempo é que estiveram a trabalhar neste disco?
[Sickonce] Um ano e qualquer coisa.
[Perigo] Quase um ano e meio porque começámos a trabalhá-lo/construí-lo em Fevereiro do ano passado. Só que entretanto o álbum foi sofrendo muitas mutações porque, no princípio, o Rafa ia ter um papel um pouco diferente. Eu tinha algumas ideias pré-concebidas a nível de sonoridade e queria sobretudo que ele me ajudasse a concretizá-las. Depois, com o passar do tempo, as coisas acabaram por mudar um pouco e o input do Rafa passou a ser mais incisivo. Deixou apenas de ser o homem que manobrava máquinas e começou a trazer também as ideias dele. Juntos começámos a contar esta história.
Entre o Jeans Monroe e o 1991 passaram três anos. O que é que levou a este tempo de espera?
[Perigo] Disponibilidade. Infelizmente. Eu não vivo da música. Então às vezes não é fácil conseguirmos conjugar as nossas vidas profissionais com a música. Infelizmente, no Algarve, não existem assim tantas infraestruturas onde nós possamos fazer o trabalho com alguma qualidade. E conseguir todas essas disponibilidades e vontades levou a este tempo.
O 1991 é um retrato da vida em Quarteira. Tudo o que contas lá é realidade? Aquilo é o que vês (ou já viste)?
[Perigo] Ya, infelizmente. E quem conhece Quarteira… E se tu tiveres a oportunidade de passar por Quarteira e conversar com aquelas pessoas, tu vais entender isso. Eu nasci numa zona que se chamava Bairro dos Pescadores, que era um bairro de lata, e depois passei a viver grande parte da minha vida noutro bairro social. E foi durante os anos 90 em que Quarteira vivia-se um ambiente demasiado duro em que tu tinhas infelizmente a possibilidade de veres pessoas a morrerem à tua frente com overdoses. Ver pessoas a irem presas. Perderes amigos ou seja, o 1991 é um resumo de todas essas histórias que, infelizmente, são verdade.
O início da narrativa é a morte do pai do Perigo Público. Não se fala muito no assunto, mas esse é o ponto-de-partida. Porquê?
[Perigo] Porque eu acho que esse é um ponto-de-partida para a construção de uma nova pessoa. Eu achei que, a partir do momento em que não havia aquela figura paternal, a cidade passou a ter uma relação diferente comigo e eu tive uma relação diferente com a cidade. Apesar de eu ter perdido o meu pai aos seis anos de idade, eu tenho quase a certeza que se esse dado não tivesse ocorrido a vida teria sido completamente diferente. Até porque o meu pai era um homem com uma visão se calhar até bastante antiquada, não diria antiquada mas rígida daquilo que seria a educação dos filhos. E, por questões óbvias, isso mudou, não é? Nós crescemos. Eu tenho mais uma irmã… Dois miúdos num bairro problemático a serem criados por uma mãe que trabalha quase doze horas por dia. A tua relação com a cidade muda. Isso fez com que, para mim, fizesse sentido começar a contar a história a partir daquele momento.
Também reparei que nas letras existem referências a Deus, algo recorrente durante todo o disco. És uma pessoa religiosa? Parece uma relação amor/ódio.
[Perigo] Sim, não é uma relação religiosa. É mesmo uma relação com algo divino que não passa por nenhuma religião. Eu sei que para nós é difícil olhar para Deus sem que ele passe por alguma instituição, por algum cano antes, mas, para mim, há uma relação quase directa entre mim e Deus. E, se por um lado agradeço tudo o que ele me tem dado na vida, por outro lado também o culpo por momentos menos bons.
Qual é que foi o principal desafio na produção do 1991?
[Sickonce] Acho que a principal dificuldade foi finalmente conseguirmos levar o processo até ao fim, isto porque já tínhamos tentado começar projectos que não tinham chegado a bom porto. Mas neste caso, o Élton chegou com uma visão muito clara do que queria fazer.
Criaste beats novos para ele?
[Sickonce] Criei muitos beats de raiz. Outros foram coisas que eu estava a fazer e que lhe mostrei. Por exemplo, o “Capim” foi uma coisa de… Ele estava a gravar outra música, ouviu e gravou logo. Não sofreu nenhumas alterações. Algumas músicas – e algumas até ficaram para a segunda parte do disco – foram mesmo construídas com a ideia que ele trazia ou seja, ele tinha uma visão muito claro do que queria fazer. O processo inicial foi esse: construir a base para a ideia que ele já trazia. Só que depois no meio do processo, como ele estava a dizer, foram surgindo outros métodos de trabalho.
A faixa “#Perigo” aproxima-se bastante do grime. Como é que foi construída essa música? Não é comum termos esse tipo de sonoridade em Portugal, apesar de nomes como o Regula ou o Expeão e o Berna terem feito algo desse género em 2017…
[Sickonce] A cena foi engraçada porque, em 2000 e pouco, quando estava a dar os primeiros passos, eu produzia alguma coisa de hip hop, drum and bass e grime. As coisas de UK já me diziam muito. Eu ouvia muito garage. E na altura isso nunca fez sentido para um MC. Era feito o instrumental e ficava ali. A coisa desapareceu, mas desapareceu em todo o lado ou seja, só em Inglaterra é que continua a existir alguma coisa mais underground. E realmente agora está a voltar a aparecer. Isto para mim não é novidade, o que é novidade é conseguir ter MCs que peguem…
Em Tribruto temos uma faixa grime que nunca lançámos, mas já tocámos ao vivo e tem quatro anos. Só que nunca foi editada. Foi pós-Chavascal. A faixa do Regula também foi engraçada porque tive a falar com ele de instrumentais. Também foi muito fixe quando apareceu a do Expeão. Eu ver que realmente está a existir um movimento que também utiliza… Não que eu acredite que vai tudo para o trap. Eu acho é que devemos ter influências de tudo o que acharmos que é bom. Isto foi muito natural. No meio das coisas tinha sonoridades mais UK e o Élton tem uma facilidade em se adaptar ao instrumentais…
Normalmente, o grime exige uma velocidade diferente do que se utiliza em Portugal…
[Sickonce] Ele aceitou logo o desafio…
[Perigo] Até porque para mim também fazia sentido. E eu sigo a cena UK há algum tempo. Mas também tinha perdido a meada às coisas. Agora com esta nova vaga, sobretudo com a cena do Stormzy que voltou a agitar as águas, voltei a pegar nessas sonoridades e quando ouvi o instrumental disse: “Olha, Rafa, acho que a gente devia trabalhar isto e polir um bocado mais porque para mim faz sentido.”
O que é que andavam a ouvir durante a concepção do disco?
[Perigo] Lá está, a nível instrumental essa questão coloca-se mais ao Rafa. Houve muitas misturas. Desde as coisas de J. Cole às coisas de UK – Skepta ou Stormzy. As cenas de Mura Masa. Nós íamos pegando faixa-a-faixa.
[Sickonce] Eu acho que o que aconteceu muito e era interessante… Nós não tínhamos muito tempo para trabalhar devido às nossas agendas, mas, de duas/três horas de gravação, perdíamos ou ganhávamos mais uma hora sempre a mostrar músicas novas um ou outro.
[Perigo] E discutíamos sempre sobre o que ouvíamos. Eu ouço muita coisa fora do universo hip hop e gosto sempre de trazer isso para cá porque eu acho que o hip hop/rap nasce dessa fusão de coisas. Nós conseguimos juntar uma série de sonoridades e construir a nossa própria.
Na faixa “Tentação”, tu [Perigo Público] rimas: “A arte existe para fazeres dinheiro dela/ Vê-te a fazer o mesmo que o Jay fez com a Rockafella”. Achei que era uma das faixas mais fortes em termos de conteúdo. A arte e o dinheiro não combinam bem?
[Perigo] Eu acho que a arte existe mesmo para se fazer dinheiro dela. As coisas fazem todas parte deste comércio que permite que as coisas cresçam. É hipócrita estarmos a dizer que é tudo por amor. Não! Se não houver dinheiro, as coisas deixam de fazer sentido, não é? Deixa de existir uma evolução natural quando pára esse intercâmbio. Mas, em primeiro lugar, a arte deve ser feita pela arte. Por amor à arte. Não pensares primeiro em fazer tudo a partir do lucro. Sabendo que fazendo desta maneira, a probabilidade de fazer dinheiro é maior do que se eu produzir aquilo que me vai alma.
[Sickonce] Esta faixa é mesmo isso. É o conflito entre as duas visões. Para mim, pegando no que estavas a dizer, a arte só é rentável enquanto se mantiver arte. Eu acho que é isto.
[Perigo] Para fazer só dinheiro, acho que perde o sentido. Para nós. E ao nível que nós trabalhamos, se calhar daqui a dois ou três anos, se Deus quiser, e se tivermos outros targets, podemos ter outro discurso diferente. Neste momento, para nós só faz sentido que as coisas sejam assim…
Era disso que queria falar: é, muito possivelmente, a melhor altura de sempre em termos de quantidade, concertos e exposição no rap português. Acham que isso está a desvirtuar o género?
[Perigo] Vai ter sempre a ver com o carácter das pessoas.
Na realidade, o que queria perguntar era: qual é a vossa visão do panorama nacional?
[Sickonce] Eu acho que estão a existir oportunidades e as pessoas estão a agarrá-las. Se as pessoas se estão a sentir bem com elas próprias, eu acho muito bem que façam da forma que quiserem. A minha visão é que faço música há quase 20 anos e daqui a 20 anos quero continuar satisfeito com o que estou a fazer. É só isto. Se as outras pessoas se sentirem satisfeitas com o que estão a fazer de outras formas, por mim…
Falo disto porque foram bastante críticos sobre o assunto…
[Perigo] Vai ter sempre a ver com a verdade e com o carácter de cada um. Se para mim faz sentido que as gerações novas tenham influências de trap e mumble rap? Óbvio. Não vou pedir a um miúdo de 20 anos que cuspa coisas mega profundas igual a um MC que cresceu a ouvir Nas, Rakim e coisas que eram um bocadinho diferentes. Os inputs que as novas gerações têm são diferentes das anteriores. Existem comportamentos um bocado estranhos, mas acho que vai ser sempre normal quando existem essas janelas de oportunidade tão grandes. Há pessoal que lutou tanto e que não conseguiu e agora começa a ver o chão a fugir e acham que esta é a oportunidade que têm para agarrar. Mas acho que vai ter sempre a ver com a verdade de cada um e com o carácter de cada um.
Se o hip hop nacional está melhor? Sim, acho que é uma coisa notória, não é?
Os cartazes dos festivais de Verão reflectem isso…
[Perigo] Até podiam não estar melhores. Até podia existir essa maior oferta, mas, nesta caso, a qualidade também está lá. Independentemente das escolhas que cada um faça, das escolhas editoriais e daquilo que queira dizer às pessoas. Tecnicamente, os MCs e os produtores estão melhores.
Regressando ao disco. A faixa “Balizas Pequenas” é um testemunho forte em que voltas a falar de um ponto-de-vista bastante pessoal. O 1991 foi uma maneira de exorcizar demónios?
[Perigo] Não é tanto uma forma de exorcizar demónios, mas foi mais uma forma de prestar homenagem a todos aqueles que eu tenho vindo a perder. Não é tanto uma coisa de sofrimento. Achei que estava na altura certa de prestar homenagem a esses nomes grandes que fazem parte da história de Quarteira. Se te lembras, até há 5/10 anos, Quarteira era o terceiro pilar do hip hop nacional. E não era só porque existiam muitos MCs. Era porque, de facto, a própria cidade vivia disso e tu ias encontrar as histórias dos próprios indivíduos de Quarteira. Tu conseguias claramente transformá-las em personagens de qualquer música de hip hop americana. E, para mim, chegou a altura de fazer uma homenagem àquelas pessoas todas. Desde as pessoas que nós perdemos na infância até às pessoas que perdemos em idade adulta.
[Sickonce] E aquelas que se mantém cá.
[Perigo] Prefiro olhar para o álbum, desde o título até à última música, como uma homenagem e não como um choradinho sofrido. É isso.
O álbum encerra com um freestyle e, curiosamente, alguém foi lá comentar no YouTube e colocou a questão se seria realmente um improviso…
[Sickonce] Estava a tentar não perder muito tempo com essa parte…
[Perigo] Escuso-me sempre de comentar, seja positivos ou negativos. Da mesma maneira que não me devo embriagar com as coisas positivas, também não devo frustrar com as coisas negativas…
Ganhaste alguma fama no registo freestyle. Como é que é foi a tua forma de escrever para este disco?
[Perigo] De todas as maneiras ou seja, eu tento sempre captar aquilo que, para mim, é uma boa ideia. Eu estudei teatro, por isso, para mim, faz sempre sentido existir uma história ou um mote. Dentro desse mote, tento sempre aproveitar todos os estímulos para criar ideias e depois tentar juntá-las todas numa música. Mas depende: existem músicas que podem nascer como a “Capim”. Ok, estamos no estúdio e aquela vibe leva-nos para ali e vamos fazer aquilo de freestyle. Depois, passar na rua e ver um casal a discutir. A partir dali criar uma ideia para fazer qualquer coisa. A música “Sempre” nasceu quase toda num funeral de um amigo. Ver o sofrimento daquela mãe e das mães todas quando perdem um filho. Lá está, mais uma vez quis homenageá-las e dizer, “não chorem, os filhos que vocês perdem vão continuar a olhar para vocês do céu. Vão continuar a ser estrelas”. E o meu processo vem muito dos estímulos quotidianos. Por isso eu também tento escrever da mesma maneira que falo.
É uma maneira impulsiva de soltar as coisas…
[Perigo] Tento não poli-las muito. No máximo, corto palavrões e coisas que acho que não enriquecem a narrativa. Mas de resto, tento sempre escrever e passar as coisas da forma como falo e como as vejo.