A cada vez maior indefinição do conceito de jazz. E como isso é o reflexo dos tempos criativos nos domínios de uma música que, muito justamente, se estabeleceu por força da expressão de liberdade. As ferramentas até podem ser diferentes, mas a raiz é a mesma, como é aliás frase referida na conversa pública antes do concerto de Pedro Ricardo Trio, neste Novembro Jazz’24, na Casa da Criatividade em S. João da Madeira. O festival que decorre de 9 a 29 deste mês e que já trouxe ao palco formações distintas como Paula Morelenbaum Bossarenova Trio, Eduardo Cardinho, Hugo Lobo Trio e Samalandra. Numa escolha criteriosa, plena de significado, de novos rumos e possibilidades pensadas por Gisela Borges e Rui Miguel Abreu, como curadores do programa. Mês que ainda fará acontecer as passagens de Zajguar e LANA GASPARØTTI (hoje, dia 23), e que a encerrar contará com Júlio Resende juntando Bruno Chaveiro ao Coro dos Pequenos Cantores de S. João da Madeira (dia 29). Em comum, a ideia de desafio do conceito e limites do próprio jazz, que não se acomoda — está bom de ver (e ouvir) — em perfis únicos nem em compartimentos estanques. Precisamente, é por aí que passa a conversa entre os músicos que configuram o trio que se apresentou em palco neste dia 22 de Novembro e os curadores diante do público. Ouvir e falar da música antes mesmo desta ter lugar de palco é uma iniciativa notável a que se propõem os organizadores deste festival, ainda para mais quando há um campo aberto, lugar para redobradas descobertas — entre as palavras e os sons.
Pedro Ricardo apresentou-se para muitos como músico através do registo Soprem Bons Ventos, pela britânica Soundway, nome deveras esperançoso e que transporta essa carga de fortuna num velejar por mares incertos. Escrevemos sobre música, onde também o campo das possibilidades é infindável, como nas rotas no içar das velas. Um músico que compõe, para este registo de estreia, longe da suas raízes geográficas mas culturalmente comprometido com as mesmas, e esse resultado escuta-se em disco como um cruzamento entre a linguagem da musicalidade tradicional portuguesa servida num modernismo do jazz. É inseparável o facto da presença recente de Ricardo por terras do muito do novo jazz britânico. Nomes como Ezra Collective são confessas referências próximas, mas como o são em igual modo José Afonso, ou as Adufeiras de Monsanto para Marco Duarte, o baterista/percussionista que Ricardo trouxe a palco numa formação completada por Pablo Rizo nos teclados a dar expressão ao já mencionado registo discográfico a solo. A conversa ajuda a inscrever a música num certo sentido de manifesto — cunho autoral de sentido tradicional-futurista. Cientes que outros trouxeram na bagagem as linguagens tradicionais aos campos do jazz, e recordamos a exemplo o pianista João Paulo Esteves da Silva ou José Salgueiro na bateria. Há, no entanto, na música e na consciência de Ricardo um enveredar por novos campos de cruzamento, como quem assume a música de onde vem mas num apontar de azimute rumo ao desconhecido. Marco Duarte lembra, a certo momento oportuno da conversa, o quão afastados estão os ritmos tradicionais presentes nesta música dos campos de linguagem jazz. A conversa prolonga-se fora da Casa da Criatividade e leva-nos em partilhas que fazem questionar a integração, nos cânones académicos do ensino-aprendizagem, das linguagem tradicionais e, chamemos-lhe por simplicidade, o jazz como modernidade na música.
Em palco expressam e corporizam os temas por onde a conversa nos levou um par de horas antes. Pedro Ricardo assume a tarefa, em modo de desafio, de transpor um alinhamento de temas feitos a solo com outros dois cúmplices em palco. E que nesse fazer trazem expressão das suas entidades, embora como interpretes que demonstram autorias nos detalhes e na instrumentação utilizada. É, aliás, no requinte ornamental que esta música de Ricardo habita com identidade, servindo a base feita ora de guitarra acústica dedilhada — em modo cantautor, com a voz surgindo cantarolada e em surdina, mas que remete para trovadores de intervenção já aqui referidos —, e o baixo eléctrico sulcando o tempo estilo modernista. Com Rizo, hoje com um piano acústico como ferramenta coadjuvante dos teclados sintetizadores que o acompanham, traz um cromatismo pleno de inventividade e expressão que aponta ao cosmos e ao tempo vindouro. Já no empático baterismo de Duarte encontra-se a raiz de muito do que se ouve, habita aí um lugar familiar trazido pela evidência das estruturas melódicas tradicionais que em certos temas apontam às chulas e noutros aos ritmos binários dos pandeiros e adufes, sem que contudo estejam presentes. Há requintes tímbricos vindos do metal de uma ponta de enxada ou dos címbalos customizados. Como também, com igual destreza e empenho, serve o ritmo que leva ao padronizado no drum’n’bass. De entre o vivido encontrámos a conjugação de linguagens, do que aponta para um campo aberto e indefinido com “Cantar das Kandakinhas”, tema inscrito no seu longa-duração e que perdurou na cabeça, cantarolando-se no interior esse ali aprendido: “Olha meu irmão / já fui, já vim / olha meu irmão / já vim, já fui”; tomada como “ladainha” para os tempos modernos.