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Fotografia: Filipa Couto
Publicado a: 29/03/2022

"Um ponto de vista do interior para exterior dum universo em constante movimento".

Pedro Maia sobre Janela do Inferno: “Em todos os espectáculos tentamos explorar uma ideia de rotação constante”

Fotografia: Filipa Couto
Publicado a: 29/03/2022

Uma terceira coordenada. Ao eixo Berlim–Açores, Lucy Railton e Pedro Maia decidiram acrescentar uma terceira coordenada. Um trabalho de investigação conjunto, sonoro e visual, conduziu ao que os próprios intitularam como Janela do Inferno. Natureza efervescente, sempre viva e que se materializa num objecto que se tem transformado desde a primeira apresentação no Walk&Talk. Oportunidade, também, para assistirmos ao regresso de Railton a Lisboa, esta noite no Teatro do Bairro Alto.



O que podemos ver através da Janela do Inferno (Window of Hell)? Uma metáfora para os dias de hoje?

O título do projecto não é político nem uma metáfora para os dias de hoje. Nasceu durante a residência realizada nos Açores, que foi o ponto de partida do projecto. Decidimos que grande parte dessa residência que daria forma ao projecto fosse inspirada por várias caminhadas em pontos específicos da ilha que nos mostrassem diferentes tipos de paisagem e vegetação. Janela do Inferno refere uma dessas caminhadas, a minha preferida, onde uma grande parte do material foi filmado. Uma caminhada entre vários túneis, antigos aquedutos, densa vegetação, riachos, e que dá lugar a uma parede vertical onde é possível ver uma enorme cavidade feita pela erosão da água ao longos dos anos, uma espécie de cascata que foi cravada na rocha com passar do tempo e que criou uma espécie de portal para o exterior, um olhar de dentro para fora, um ponto de vista do interior do vulcão para um exterior sempre em movimento.

A vossa colaboração parte de um convite Walk&Talk. Como foi trabalhar em conjunto num contexto tão singular como o dos Açores? Que pesquisa realizaram especificamente para este trabalho?

O projecto começou com um convite do festival para fazer o espetáculo de abertura. Conheço a Lucy já há alguns anos e temo-nos cruzado em vários festivais. Quando o Walk&Talk fez o convite achei que era o projecto ideal para finalmente colaborarmos. Achei que seria musicalmente interessante para este projeto trabalhar com field recordings, violoncelo e sintetizadores modular. 

Eu já tinha estado nos Açores, a Lucy não, isso foi bastante interessante de explorar e pensar no projeto antes de fazermos a residência lá. Inicialmente eu e a Lucy, ambos a residir em Berlim, íamos discutindo ideias e que forma podia ter esta colaboração, numa primeira fase com base nas minhas memórias que tinha dos Açores e alguma pesquisa online de assuntos e lugares. Sabíamos que queríamos deixar a ideia bastante em aberto até estarmos os dois nos Açores, em residência. Durante a residência sabíamos, desde logo, que queríamos que o trabalho fosse baseado na nossa experiência nesses lugares e que o foco da criação resultasse da nossa exploração das características geográficas, clima, natureza e os atributos muito particulares das ilhas. Por isso cada dia da residência começava com uma caminhada e terminava com a revisão do material recolhido, começando assim dia a dia a dar forma ao que seria o trabalho criativo e ao projeto.

Psychic geography (geografia psíquica) é uma corrente de pensamento que ganhou uma nova importância nos anos mais recentes. Porque pensas que tal acontece? Será o contraponto à hiper digitalização do território através dos Sistemas de Informação Geográfico e toda a complexidade relacionada com análises de gigantescas bases de dados? Como é que este conceito influenciou o vosso trabalho?

Interessava-nos um conceito mais aberto sobre a ilha, não nos interessava fazer um retrato ou vários postais das ilhas, mas sim explorar as nossas ligações interpessoais com os vários lugares e várias experiências entre registo de som e imagem. Interessava-nos essa deriva entre espaços, tempo, diferentes formas de registar o que víamos e ouvíamos e o que sentíamos com isso. Especialmente nos tempos actuais em que estamos rodeados de bases de dados e constantes fluxos de informação, queríamos que este projeto fosse a nossa experiência sensorial desse lugar e uma outra experiência sensorial para os espectadores, manipulada por nós, mas com espaço para os espectadores terem a sua própria experiência.

Filmaste as imagens em digital e depois editaste em película. Qual a razão de percorrer este “caminho inverso”?

Eu normalmente filmo e trabalho em analógico. Tenho centrado grande parte do meu trabalho nessa exploração analógica e na manipulação química, óptica e física da película, por isso o analógico é sempre uma parte importante do trabalho criativo. Mas para este projecto eu queria explorar uma nova forma de filmar e decidi que durante a residência queria experimentar filmar com uma câmara de 360º, câmara que filmasse para todos os eixos sem o habitual ponto de vista fixo. Interessava-me essa liberdade na rodagem e de manipular os vários pontos de vista em pós-produção. Interessava-me criar uma espécie de universo paralelo com distorções ópticas que câmaras normais não conseguem captar e basicamente aproximar a captação de imagem à captação de som onde a câmara era operada numa espécie perche e multidireccional. Desde o início sabia que queria também explorar essa intermedialidade entre o digital e o analógico, justapondo as possibilidades de trabalho em analógico e em digital, um ao lado do outro a contaminarem-se. 

Não me interessa a imagem ou estética digital por si própria, e nesse projeto apenas me interessava a forma de filmar que essa câmara me potenciava, e por isso desde o inicio sabia que o material gravado em digital seria posteriormente impresso em película 16mm e manipulado durante o processo de revelação, trazendo alguma organicidade às imagens e transformando as imagens digitais em algo diferente e trazendo um pouco da fragilidade do trabalho em película para fragilidade geográfica das ilhas devido à actividade sísmica.

Como foi o processo de ligação entre o som e a imagem? Cada um ficou responsável pela sua “área de trabalho”? Houve uma constante contaminação positiva entre as duas áreas?

A relação entre som e imagem começa muito antes de haver alguma ideia, estava já pré-definida quando decidimos trabalhar juntos, pois ambos conhecíamos o trabalho um do outro e sabíamos o que é que cada um podia trazer para o projecto. Neste projecto toda a imagem foi feita por mim e todo a música e som pela Lucy e com muita pouca intervenção ou influência directa de um sobre o outro. Queríamos ter liberdade e independência total, principalmente durante a residência. Obviamente que nos influenciámos um ao outro, mas o trabalho em cada campo foi sempre distinto e individual. Durante a residência fazíamos várias caminhadas juntos, onde recolhíamos material, mas decidimos não discutir muito sobre o que podia ser o projecto para deixar espaço para cada um seguir a direção que queria e posteriormente confortar essas direções. Após a residência e depois de cada um saber o caminho que queria seguir é que começamos a discutir e a criar as simbioses entre imagem e som. Só aí é que a Lucy viu as primeiras imagens e eu os primeiros sons, só aí é que projecto começou a ganhar a forma em que é apresentado.

Vives em Berlim. O que Berlim oferece que outras cidades não?

É uma cidade com a qual tenho uma relação de muitos anos. Desde a primeira visita para participar na secção Talents da Berlinale em 2005 até me mudar permanentemente em 2013, com muitas visitas pelo meio. Vi a cidade a mudar e eu próprio mudei com a cidade. Tem um ritmo de vida muito específico e particular. Para mim começa por ser um excelente ponto de encontro com os vários artistas e músicos com quem trabalho ou quero trabalhar. É uma cidade que tem inúmeras qualidades, tanto culturais como a natureza que rodeia a cidade por exemplo. Umas das principais razões de ter vindo e estar em Berlim é o meu trabalho como freelancer num laboratório de cinema que faz com que o meu trabalho e pesquisa sobre cinema analógico possa continuar a evoluir.

O que se pode esperar da apresentação de Janela do Inferno no TBA? Alterou-se muito desde a estreia nos Açores?

Todas as apresentações são diferentes, pois tanto a música como a imagem são improvisadas. Temos um fio condutor, uma espécie de curva narrativa (mesmo que abstracta) que tentamos seguir, mas, claro, com muito espaço para improvisação e contaminação entre música e imagem. Esta é a terceira apresentação (e possivelmente última). Depois da estreia no Açores no Festival Walk&Talk, apresentamos o filme-concerto há duas semanas no gnration, em Braga, e agora em Lisboa. Da primeira versão que apresentámos nos Açores para a versão que apresentámos em Braga mudámos algumas coisas, algumas que tínhamos decidido previamente e outras que aconteceram espontaneamente durante o concerto. No TBA tudo é possível pois no próprio dia durante o soundcheck é que vamos decidir algumas das direcções a seguir nesse concerto. Em todos eles tentamos explorar uma ideia de rotação constante, esse foi o guia tanto para as imagens, como para o som ou o espectáculo em si. Um ponto de vista do interior para exterior dum universo em constante movimento.


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