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Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 25/03/2021

20 anos e centenas de discos depois, esta é a história da editora que colocou Portugal no mapa mundial do jazz contemporâneo.

Pedro Costa no aniversário da Clean Feed: “Para a música poder avançar o importante é questionar”

Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 25/03/2021

Em duas décadas de intensa actividade, a Clean Feed alterou o rumo não apenas do jazz nacional, mas da música portuguesa como um todo, colocando uma benigna pressão sobre outras editoras, músicos, jornalistas e divulgadores, porque sempre cuidaram de procurar elevar a fasquia, superar as suas próprias marcas, projectar para fora o que de melhor se fazia cá dentro.

Ao Rimas e Batidas, Pedro Costa, homem do leme do selo, pessoa de incrível memória que em conversa parece capaz de se lembrar das formações na base de cada um dos discos que lançou — e já são mais de 600 nos dois selos que mantém –, abriu o livro e sem rodeios pintou o quadro de 20 anos de altos, muitos, e baixos, alguns, ajudando a esclarecer como se mantém vivo e vibrante um selo que traduz um amor fundo pela música.

Esta editora, “Made in Lisboa”, como orgulhosamente se sublinha na frontaria da sua casa oficial na Internet, continua a lançar discos como se não houvesse amanhã. Ou melhor, sabendo que há um amanhã e um depois que se lhe há-de seguir, porque não se constrói uma história assim tão rica sem estar de olhos permanentemente focados no futuro. Os primeiros 20 anos, no entanto, já estão cumpridos e Pedro Costa conta como foram.



Antes de mais, parabéns: são 20 anos!

Tinha 32 e agora tenho 52. Eu faço anos no mesmo dia que a Clean Feed faz anos. A primeira gravação da editora foi no dia 16 de Março, que é quando eu faço anos. Foi nesse dia que nasceu a editora, vê lá. 

Comecemos por aí, exactamente. 16 de Março de 2001: quem é que estava em estúdio a gravar?

Essa primeira sessão é o nosso primeiro disco. Foi no Seixal, a 16 de Março de 2001, com concerto ao vivo. O At Seixal e é o Ken Filiano, Lou Grassi, Paulo Curado, Rodrigo Amado e Steve Swell.

Qual foi o impulso para criar uma etiqueta de jazz?

Tenho um irmão mais velho. Desde de muito novo que ele adorava música e ia comprando discos. Eu ia ouvindo e depois comecei a comprar discos com ele, ouvíamos música juntos. Desde os 11 anos ou assim que tinha esta ideia de começar uma editora. Na altura não pensava nada do jazz, nem tinha ideias concretas sobre nada, mas depois comecei a ouvir jazz quando tinha 15 anos, dediquei-me e durante anos e anos só ouvia jazz, e sempre a descobrir coisas novas, aquilo quanto mais se puxa o fio, mais fio vem. Comecei a descobrir mais sobre os vários tipos de jazz, as diferentes abordagens à improvisação e fiquei fascinado com aquilo.

Em 2000 fiz uma visita com o meu irmão e mais dois amigos a Nova Iorque, andámos lá a ver concertos, dois ou três por dia, e aí eu já ia com a ideia de começar uma editora, comecei a conhecer pessoal lá — músicos — e começámos logo a falar de os trazer cá. Na altura falei com o Lou Grassi e com o Steve Swell para os trazer cá no ano seguinte e gravar e começar uma editora. Era o concerto do Seixal, eram três noites no Hot Clube e o Luís Hilário disse-me, “trombone e bateria? Não dá para ter um contrabaixo?” E eles, tanto o Steve Swell como o Lou Grassi, vinham à Europa com o Roswell Rudd. Portanto ficavam cá durante uma semana e eu perguntei, “mas quem é o contrabaixista dessa banda do Roswell Rudd?” e o Lou Grassi disse-me que era o Ken Filiano. Eu disse, “pá, fantástico, então podemos mudar isto de um duo para um trio e assim ficamos todos contentes, incluído o Luís Hilário”. Eles tocaram em trio no Hot Clube, mas ficaram cá uma semana de férias a curtir e depois no dia 16 de Março fizemos essa gravação no Seixal, e convidei o Rodrigo Amado e o Paulo Curado para fazerem parte disso.

No início, a ideia da editora era juntar músicos portugueses com músicos internacionais, ajudar a desenvolver um bocadinho a cena cá. O primeiro disco é, no fundo, a concretização dessa ideia inicial.

E a editora inicialmente eras só tu?

A editora é a empresa, é a Trem Azul. Ao princípio era eu e os meus dois irmãos, e foi assim que essa gravação foi feita quando começámos. Uns meses depois juntou-se o Rodrigo Amado e a coisa foi mudando, foram entrando uns e saindo outros. Entretanto o Rodrigo também saiu, portanto a empresa Trem Azul tem tido algumas alterações da sociedade desde aí.

E tu tens sido o elemento constante desde essa altura?

Exacto. 

Imagino que ao longo destes 20 anos tenhas ganho uns quantos cabelos brancos e umas dores de cabeça fortes — gerir uma empresa destas nesta área há-de ter momentos de absoluta satisfação e realização pessoal, mas também há-de ter momentos difíceis. E houve crises na indústria nestas duas últimas décadas. Qual é que tu dirias que foi o momento mais difícil na história da editora?

O momento mais difícil foi para aí em 2005. Antes do Rodrigo sair, quando nós fizemos contas à vida e percebemos que tínhamos 120 mil euros de dívidas. Aquilo estava muito difícil. A loja tinha uma renda muito alta, nós geríamos a empresa um bocado a olho, não tínhamos ninguém a tratar da organização à séria e estávamos mesmo a bater no fundo. Quando a Madalena Borges entrou em 2005, a coisa mudou da noite para o dia. Ainda hoje ela trabalha cá e eu não imagino isto sem ela porque a parte da organização é muito importante numa empresa. Nós não tínhamos isto nada organizado: facturas que não seguiam para a contabilidade, perdemos IVA de muitas coisas, era tudo feeling. E nessa altura estávamos mesmo a bater no fundo. Nestes últimos anos, apesar das dificuldades, conseguimos resolver uma data de coisas que tínhamos, tipo conta-corrente, cartões de crédito, limpámos isso tudo. Não temos conta-corrente, não temos cartões de crédito, não temos dívidas. E não ter dívidas é uma coisa brutal. Portanto conseguimos dar a volta a essa parte muito difícil. 



Olha, falemos de música, que é o que realmente importa. O que é que tu dirias que nestes 20 anos é o elemento constante que define a editora?

[Risos] Eu gostava que daqui a 30 anos ou daqui a 10 anos ou hoje em dia que se olhasse e que se dissesse, “a Clean Feed é uma editora que representa uma época no jazz e na música improvisada”. Eu acho que, de certa maneira, nós temos isso mais ou menos conseguido. Temos coisas muito diferentes, acho que não é fácil de dizer que a Clean Feed é uma editora disto ou daquilo dentro do espectro do jazz, mas é uma editora que tenta representar o jazz e a música improvisada de hoje em dia. E claro que o jazz e a música improvisada mudaram muito nestes últimos 20 anos.

Dirias que é uma editora com uma atitude mais exploratória, experimental e alternativa dentro desse universo do jazz?

Eu não diria experimental, nem diria alternativa, mas diria que é uma editora… pá, uma editora experimental e alternativa diria que é a Creative Sources do Zé Ernesto. Não considero a Clean Feed uma editora radical ou experimental. Claro que temos coisas mais experimentais que outras; é uma editora que não é de mainstream, isso é certo. Muitas vezes tentam colar a cena do free jazz à Clean Feed e eu discordo completamente. De alguma forma, o que nós fazemos é acompanhar as novas linguagens: por exemplo, na altura em que apareceu, o free jazz não era mais do que música livre dentro da linguagem do jazz, o Albert Ayler, o Ornette Coleman e esses que faziam música improvisada com motivos dentro da linguagem do jazz. Mais tarde, nos anos 60, nasceu na Europa a nova música improvisada, que era uma música livre sem a linguagem jazz. O Evan Parker e o Peter Brötzmann já não tocavam dentro da linguagem do jazz. Hoje em dia existe a música improvisada que não é na linguagem do jazz mas também não deixa de o ser. O forte desta música já não são os solos, muitos discos que nós temos editados nem sequer têm solos. Portanto é música improvisada mas aqui o que os músicos procuram quando fazem essa música é estabelecer uma espécie de linguagem do momento mais do que ter espaço para se fazer solos à vez. Isso é uma característica que apareceu há pouco tempo no jazz, que é não ser nem uma coisa nem outra. Não é a livre improvisação europeia e também não é o free jazz com os pés dentro da linguagem do jazz. É uma música improvisada, mas que forma uma redoma dentro da própria música: por exemplo, os The Selva, que é o Ricardo Jacinto e o Gonçalo Almeida e o Nuno Mourão, aquilo não tem solos, portanto é uma coisa um bocadinho difícil de explicar e eu acho que é, de certa forma, um passo novo no jazz, que é música completamente improvisada sem linguagem absolutamente nenhuma. A nova música improvisada (ou a improvisação europeia) acabou por criar uma linguagem. Era uma música que inicialmente não tinha linguagem nenhuma e depois, com o tempo, foi-se formando uma linguagem na improvisação europeia. E esta música já nem é uma coisa nem outra. Às vezes até é um bocadinho pop, eventualmente, pelas melodias muita simples e por aquele ambiente mágico, mas é uma música diferente. Isso é uma das coisas novas que a mim me interessa cobrir. Ao princípio editei muitos discos de música mais free e agora, passados 20 anos, já não é isso que me interessa editar. A não ser que seja alguém que seja muito forte nessa música. 

Vocês sempre mantiveram as portas abertas a talento internacional e o vosso catálogo está pejado dele. Aliás, relataste o início e o arranque foi logo com gente recrutada em Nova Iorque, portanto sempre houve essa abertura para fora de portas, mas feitas as contas acabaram por editar mais nacionais ou internacionais? Alguma vez fizeste essa contabilidade?

Não, nunca fiz, mas tenho a certeza que editámos mais artistas nacionais. E tenho a certeza que somos a editora que mais discos editou de músicos portugueses até hoje. Editora portuguesa ou estrangeira. Não acredito que haja outra editora que tenha editado tantos músicos portugueses como nós. Talvez a Creative Sources. Mas a nível de variedade de músicos acho que somos a que mais portugueses editou. A razão disso é que nós podíamos ser uma editora só a editar artistas portugueses, mas isso limitava-nos muito musicalmente, como é óbvio, mas também limitava muito o nosso mercado. Imagina: o Bernardo Sassetti e o João Paulo Esteves da Silva entram no catálogo internacional que vai ter críticas internacionais e atenção internacional. Nunca me interessou estar a fazer editora de músicos portugueses só para Portugal. Portanto, eu acho que isso é uma coisa que funciona bem para todos. É uma coisa importante porque os músicos percebem que hoje em dia o mercado nacional não chega para fazer uma carreira. Antigamente havia muitos festivais de jazz, havia músicos de jazz que faziam a vida a tocar em Portugal e a vender discos em Portugal, nomeadamente o Bernardo Sassetti, o Carlos Barreto, o Mário Laginha. Não é que não fossem lá fora, mas o mercado deles era cá. Existiam cá condições para eles terem uma carreira e ganharem a vida. Hoje em dia isso é impossível. É muito importante para a nova geração de músicos estarem expostos internacioalmente. 

Tu sentes que a Clean Feed, para lá de ser uma editora e para lá de ser um laboratório de ensaio para muitos desses artistas, acabou por também ser uma escola? Achas que há hoje uma nova geração de músicos que aprendeu a estar na música a ouvir os vossos discos?

Eu acho que nós contribuímos para… estás a falar em músicos portugueses? 

Músicos portugueses. Por exemplo, eu estou a lembrar-me do Ferrandini me contar que no início ele aprendeu a conhecer muita música a embalar discos para a Clean Feed — porque depois podia levar uns discos para casa como pagamento desse trabalho. Vocês sempre deram muito esse apoio. Havia uma sala dentro da vossa loja que servia de sala de ensaios para muitas bandas. Portanto sentes que a Clean Feed para lá de uma editora também se tornou quase uma escola? 

Pá, de certa maneira. Quer dizer, não é que nós tenhamos tido um papel de regulador disso. Nós tínhamos era uma sala de ensaios com uma bateria, um amplificador de contrabaixo, um contrabaixo e onde os músicos podiam vir à vontade sem pagar nada, ensaiar e encontrarem-se uns com os outros. E, para mim, isso é o que eu acho que uma editora ou alguém que tem amor pela música pode fazer: proporcionar aos artistas as condições. Não é dar o peixe ao pescador, é dar a cana e a linha. E nisso foi muito importante porque naquela sala de ensaio passou por lá desde o Sam The Kid ao Filipe Felizardo com o Gabriel Ferrandini, Ricardo Jacinto. Passaram lá músicos não só do jazz, não só da música improvisada, mas de outras áreas musicais e isso criou muito contacto entre as pessoas e entre pensamentos e interesses na música. Eu acho que a loja, nesse aspecto, foi uma coisa muito importante. A editora também foi importante para ajudar a criar uma consciência: o que nós sempre fizemos foi olhar o mundo como uma coisa só em vez de estarmos aqui a separar Portugal do resto. A nós interessa-nos que saiam discos de músicos japoneses, italianos, franceses, alemães, belgas, de todo o lado, que nos ajudem a perceber que no fundo e especialmente depois da Internet ter feito parecer que é com a mesma facilidade que se chega ao Japão e a Carcavelos. E portanto acho que ajudámos a criar essa consciência que as distâncias são muito relativas e que há contactos entre pessoas de muitos sítios diferentes que fazem com que a coisa evolua de uma certa maneira e que o local onde estamos não é a coisa mais importante. Acho que também ajudámos a criar a consciência de que há muito jazz e que há muitas maneiras de fazer a música. Claro que não fizemos tudo bem e as coisas são como são, mas eu acho que, olhando para trás, contribuímos para que isso acontecesse, para que houvesse mais abertura para os músicos que aparecem hoje em dia, mais interesse em comunicar com outro tipo de músicos, fazer uma música mais aberta, ouvir uma música como um todo e não apenas considerar quem estuda os solos do Bud Powell ou do Wes Montgomery. Os músicos começarem a ver que o background deles também interessa, que é possível um músico que esteve a ouvir hip hop ou heavy metal trazer esses elementos para a música. Tudo é possível, não é? O importante aqui é questionar. Porque é que quando eu faço uma composição tem de ser com a bateria lá atrás? Porque é que tem de haver solos? Porque é que os instrumentos têm de ser aqueles? E isso é uma coisa que eu de certa forma sinto um bocado de orgulho, porque é importante para a música avançar, principalmente hoje em dia. Quando nós falamos da música dos anos 60, principalmente no final dos 60, a música era uma só. Era o Gil Scott Heron, o Miles Davis e o Jimi Hendrix e tudo era uma coisa só. E acho que hoje em dia estamos a voltar isso. E isso é uma coisa fantástica.

Olha, uma das coisas que acho que a Clean Feed fez muito bem foi habituar-nos a todos a ver o nome de uma editora portuguesa nas páginas de crítica de uma série de publicações internacionais. Como é que vocês conseguiram abrir esses canais e ser absolutamente normal estar a ler o nome do Rodrigo Amado ou a ler o nome da própria Clean Feed, mês após mês, nas páginas da imprensa especializada internacional? Como é que esse trabalho foi feito?

Isto foi gradual. Foram pequenos passos. O primeiro foi quando editámos o disco do Gerry Hemingway, o quarteto com o Ellerry Eskelin, Mark Dresser e Ray Anderson. Eu acho que aí foi quando internacionalmente a Clean Feed começou a ter impacto. Quando as pessoas lá fora perceberam, “alto, que isto está aqui uma editora nova de Portugal a editar músicos importantes e a ter aqui um interesse e um impacto”.



Sentes que o facto desses jornalistas internacionais estarem a ver que esses músicos estavam a gravar numa editora portuguesa, que o factor exótico — ninguém imaginava que música dessa poderia ter origem em Portugal — , representou aí um papel para lhes atrair atenção?

Eu acho que sim. Portugal é muito diferente do que era há 20 anos. Há 20 anos era altamente exótico um país como Portugal ter algum impacto internacional — e era assim em todas as áreas. Era tudo coisinhas pequeninas, era alguém que tinha um restaurante em Paris e que fazia comida muita boa, ou era alguém que fazia pão em Nova Jérsia, mas não havia corpo, volume, não havia um holofote a apontar para Portugal. Hoje em dia é muito diferente. Ganhámos o Euro, tivemos o Salvador Sobral… a seguir a ele ganhar, eu ia lá fora e estavam-me sempre a falar disso. Músicos e tudo, a coisa mais incrível. E eu nem tinha a música ouvido sequer. Portanto nós conseguimos aí uma série de vitórias… o turismo, a comida portuguesa, o vinho e o azeite têm todos um impacto-

Mas o vosso trabalho é anterior a isso. Esse trabalho de divulgação junto da imprensa internacional começa muito antes dessa atenção existir sobre Portugal. 

Exacto. Isso foram conquistas, inclusive para os portugueses. Eu lembro-me de quando a editora começou o pessoal não levava muito a sério, achava de modo geral que os nossos discos seriam sempre segundas, terceiras ou quintas escolhas dos músicos para editar. Ou seja, nós não estávamos a editar discos realmente bons, estávamos a editar discos… pronto, os músicos eram realmente bons, mas eventualmente aquilo era bom demais para ser verdade. Lembro-me disso. Lembro-me das pessoas suspeitarem um bocadinho dos nossos discos. “Isto é impossível”. Eu lembro-me que quando nós começámos o José Duarte dizer-me, “pá, eu preferia que não pusesses isso lá” e “ah, agora vais ter que começar a fazer as coisas que não gostas, vais ter que começar a editar músicos que não gostas”. E isso para mim foi uma coisa que me fez uma certa ressonância na cabeça, do tipo, “então eu começo uma editora, o sonho da minha vida, como é que este gajo acha que eu vou fazer as coisas que não gosto agora que eu dei um passo destes, que é mesmo o contrário, que é mesmo para fazer aquilo que eu gosto”. Portanto, o pessoal não acreditava muito que isso era possível. E se calhar eu próprio também não acreditava. Ao princípio, quando começámos, editávamos um ou dois discos por ano. Era uma coisa complementar ao negócio da distribuição. Mas, quando começámos a editar mais discos, os músicos começaram a falar uns com os outros, nós começámos a conhecer mais gente e de repente estávamos a receber propostas de coisas que não imaginámos serem possíveis. Eles viam Portugal como um meio caminho entre África e a Europa. Eles achavam que isto era uma grande desorganização, que tínhamos dois mil e não sei quantos mortos por ano em acidentes de automóvel — e era verdade. E éramos os que bebíamos mais álcool, e tínhamos problemas com a heroína. E nestes 20 anos essas coisas todas deram a volta. Hoje somos o país-modelo no tratamento da toxicodependência, do álcool, dessas coisas todas, somos um país com uma consciência. Há 20 anos estávamos na cauda da Europa em todos parâmetros.

A gestão do catálogo nasce sobretudo de propostas que vos são feitas ou vocês também têm por hábito abordar artistas e dizer “gostávamos muito de editar o teu trabalho”?

Felizmente já tivemos essa fase, que isso é que foi a coisa mais incrível: foi desafiar os músicos, saber que aquele quarteto vai fazer um concerto no Tonic  na altura e mandar o e-mail ao Dennis González e dizer, “pá, eu gostava de editar o trabalho deste quarteto”. E nós conseguíamos pagar o estúdio e aos músicos. Outras vezes trazíamos cá esse grupo, fazíamos uma tournée e gravávamos cá. Isso foram os melhores anos da editora, foi quando nós realmente podíamos fazer isso. Eu organizava concertos e fazia montes de coisas e o dinheiro ia todo para a editora e tudo ajudava ao trabalho de criar um catálogo forte e de ter projectos desenvolvidos por nós. Com o tempo, os concertos foram desaparecendo, o dinheiro que entrava desapareceu e hoje em dia nós não temos hipóteses de fazer isso, infelizmente. Claro que posso dar a dica, especialmente a músicos portugueses, que estou interessado na banda, mas não posso cobrir os custos como antigamente, é impossível, e tenho muita pena.

Mas o que é que aconteceu aí? Porque nós chegámos a ser uma espécie de um case study, tínhamos mais festivais de jazz por metro quadrado que países muito maiores que nós e de repente esse ecossistema implodiu.

Pá, não sei. De alguma forma era uma trend, provavelmente era mais barato fazer um festival de jazz do que de outras coisas, era uma coisa que se calhar as autarquias viam como uma música séria. Eu acho que as autarquias viam um festival de jazz como uma coisa cultural, estás a ver o pensamento, não é? Chegou a uma certa altura e as Câmaras ficaram todas endividadas, veio para cá a Troika gerir directamente as Câmaras — algumas ainda estão sob a alçada da Troika, nomeadamente Portalegre –, houve um controle muito maior dos gastos das autarquias e, eventualmente, eles mudaram de opinião em relação a esta música. É difícil de dizer, mas uma coisa é certa: as autarquias, que eram quem fazia os festivais, não têm muita capacidade de promoção. Portanto, um festival como a Gulbenkian contrata um produtor e contrata alguém para fazer a comunicação exclusivamente para aquilo. A pessoa que trata da comunicação de uma Câmara Municipal tanto trata do jazz como trata do festival de marionetas como trata o promover do cortar da fita. Uma coisa importante que devia ter sido feita nesses festivais era contratar pessoas para aquele evento específico e não estar a usar os meios da autarquia. Quando estava na Culturgest, por exemplo, a pessoa que fazia a comunicação tinha que fazer a dos meus concertos, que eram 12 por ano, e mais os restantes concertos e actividades que lá havia. Estás a ver a dificuldade que é estar a ligar para os jornalistas, “olha, agora tenho isto, para a semana tenho aquilo…”, é difícil para a pessoa que faz tudo dar o realce àquela actividade. Nós em Portugal temos público, mas temos é que fazer o trabalho de chamá-lo.

Ainda recentemente falava com um músico inglês que gravou um disco para uma editora polaca e foi gravar esse disco ao Paquistão. Mas houve financiamento tanto do British Council do lado dele como do Ministério da Cultura polaco para financiar esse tipo de operação. Cá, tendo em conta o reconhecimento internacional que a Clean Feed angariou nestes 20 anos, não seria natural que alguma instituição ligada à cultura em Portugal já vos tivesse dado algum tipo de atenção ou apoio directo nessa área?

Eu acho que era natural. Nós temos uma situação que é: a editora pertence a uma empresa. Portanto, as empresas não têm acesso aos apoios à cultura. Nós em 20 anos nunca tivemos apoio nenhum, nunca tivemos essa atenção. Eu acho que era merecido termos uma atenção, não para ganharmos dinheiro mas para podermos fazer o nosso trabalho mais condignamente, especialmente nesta altura que é muito difícil oferecermos um contrato digno a um músico para editar um disco. Eu acho que nós somos merecedores dessa atenção porque também nunca tivemos nenhuma atenção dos privados, como termos um patrocinador na editora, alguém que apoie as nossas edições, que era uma coisa que também faria todo o sentido, mas que nós nunca conseguimos. Claro que se fôssemos uma associação sem fins lucrativos era mais fácil, mas como empresa sem fins lucrativos [risos], porque nós chegamos ao fim do ano e é zero ou menos mil ou mais mil, não saímos daqui. Estamos um bocado de mãos atadas, mas muitas vezes esses apoios vêm de forma indirecta e vêm de outros países. Pá, os noruegueses que nós editamos são todos apoiados lá. Quando nós editamos os discos deles, eles não estão à espera que a gente lhes pague para editar, nem que pague o master… esses apoios, se existissem cá, já era muito bom. Se os músicos fossem apoiados de forma a que quando nós editamos o disco não termos aquele ónus todo da produção, do master, dos músicos, portanto esse apoio indirecto já era muito importante. A GDA começou a fazer isso e já se nota a diferença, mas sem serem eles é muito pouco o apoio que existe à edição. Não sei como é que é nos livros e nas outras actividades culturais mas os discos e no jazz é muito difícil. Não existe também apoio à internacionalização, que é uma coisa que para nós era muito importante — eu edito um músico português e só vou vender discos em Portugal, praticamente. Já se começa a notar que mexe mais lá fora mas o mercado de um músico português maioritariamente é em Portugal. E era muito importante que os músicos portugueses fossem tocar lá fora porque quando eles lá vão tem um impacto enorme. Lembro-me que no último 12 Points que fui, que foi há três anos, acho eu, em Dublin, foram os Rite of Trio do Pedro Melo Alves e eles tiveram ovações em pé, eu nunca tinha visto uma coisa daquelas. Eles foram muito melhores que os outros todos juntos e foi um impacto incrível. E isso já aconteceu outras vezes comigo a assistir. Eu já organizei concertos lá fora de músicos portugueses e as pessoas ficam rendidas àquilo, só que as oportunidades são poucas porque tu estás em Itália a programar um festival e sabes que hoje em dia 90% do dinheiro para cachets vai para grupos grandes e depois para os grupos pequenos é 1000 euros. E os músicos portugueses não têm hipótese de competir nesse mercado. Os músicos portugueses não têm nada. É muito difícil um grupo português ir tocar a esses festivais por 1000 euros. Quando começam a fazer as contas às viagens e ao hotel, eles pagam para ir tocar. Existem músicos que se batem em qualquer país como se fossem locais porque as viagens não interessam, não existe essa despesa. É uma coisa muito difícil para nós e para os músicos portugueses furarem. 

Tu mencionaste agora o caso da Noruega. Há outros países com políticas culturais que sejam bem benéficas para esta área do jazz?

Não ao nível da Noruega mas na Bélgica existem muitos apoios. Em Itália, na Roménia, na Hungria. França. Já tivemos grupos aqui na Smup a tocar — são 10 músicos e vêm cá todos patrocinados a tocar à bilheteira. Isso é possível. Há sempre programas para os músicos jovens concorrerem para terem esses apoios. Claro que a Noruega é o país que tem isso mais facilitado, mas quase todos os países da Europa têm todos apoios para isto. 



Nunca pensaste mudar a operação para a Noruega?

Ou para o Luxemburgo [risos]. Convidam-me todos os anos para ir lá ao showcase dos músicos no Luxemburgo. Lá é ao contrário: têm o dinheiro, mas não têm o talento. Bem, eu não tenho nenhum interesse em ir ao Luxemburgo para estar lá três dias a ver xaropada atrás de xaropada. Mas eles têm dinheiro para tudo. Felizmente na Noruega eles têm apoios e músicos incríveis, o nível de ensino é brutal. Os gajos já perceberam há muito tempo, ao contrário do que a França fez nos ano 80 e 90 – que era apoiar a cena local, ou seja, todos os festivais eram altamente apoiados, as editoras eram altamente apoiadas, e depois ninguém os conhecia cá fora. E tu não conseguias contratar o Michel Portal ou Louis Sclavis porque eles ganhavam um balúrdio em França. Só que quando a torneira fechou ninguém os conhecia. A Noruega apoia-os principalmente para eles viajarem. O que eles estão a fazer é internacionalizar-se e à música que representam. Bem, toda a gente conhece os músicos noruegueses que andam aí, que são fantásticos, não quer dizer que sejam necessariamente melhores que os portugueses.

Tu sentiste nestes 20 anos a qualidade dos músicos portugueses a evoluir?

É incrível a diferença. Isto mudou da noite para o dia. Isto é uma coisa internacional, digamos. Existem músicos muito melhores tecnicamente nos instrumentos — existem mais escolas, existem cursos superiores de jazz para os músicos –, portanto eles são mais apetrechados, mas não só, em termos de cabeça eles são músicos muito mais abertos. Tu hoje encontras músicos que até é difícil de dizer se são músicos de jazz, disto ou daquilo, porque o que eles tocam é a música deles. É uma diferença enorme na qualidade técnica dos instrumentistas, mas também da abertura mental que esses músicos têm. Os músicos jovens em Portugal estão sempre a aparecer. Aqueles de 27 ou 28 já estão ultrapassados em termos de tipo de impacto. Agora já há uns com 20, 21 que ainda são melhores. Dás um pontapé numa pedra… O último é o João Almeida, o trompetista. Tem 21 anos. Eu estava no Toscano e já estavam a aparecer uns quantos com 5 ou 6 anos a menos.

O Bernardo Tinoco, que tem 18 ou 19 anos. 

Exacto. São montes deles. É incrível. Dantes não existiam trombonistas, trompetistas, saxofonistas. Hoje em dia há um montão de saxofonistas, de trompetistas, existem músicos para todos os instrumentos. Dantes não havia. Havia um trompetista, que era o João Moreira, e não havia mais nenhum. Havia dois ou três contrabaixistas. Havia muitos guitarristas. Hoje em dia existe de tudo e um músico que quer formar um grupo consegue ir buscar um outro músico que sirva para aquela música. Antigamente não havia essa opção. E esses músicos são todos muito bons. 

Quais são aqueles discos que tu sentes que são o pináculo da editora? Que discos é que tu dás como exemplo quando alguém vem de fora e te pede o melhor da Clean Feed?

Dou como exemplo os Fight the Big Bull, que é o grupo do Matthew E White, um artista que tenho muito orgulho em ter conhecido, que editou dois discos, o segundo é o All Is Gladness In The Kindgom, que para mim é o disco que eu estou mais orgulhoso de ter editado. E é o disco de que eu gosto mais, digamos [risos]. É difícil porque é quase como escolher entre os filhos. Esse disco é o máximo em termos musicais da editora.

Depois existem outros como o Tim Berne, ter editado o duo dele com o Bruno Chevillon que se chama Old and Unwise, mas principalmente o outro que foi gravado no Loft na Colónia. Eles não podiam mexer naquilo, ele tinha lá a gravação mas não podia fazer nada e então arranjou outra maneira, que foi de ter dito que era gravado noutro sítio e que era noutra data e editámos aquilo. É um disco muito bom e o Tim Berne é um dos músicos pelo qual eu tenho mais apreço desde sempre, desde miúdo, dos primeiros músicos que eu comecei a ouvir no jazz. Editar um disco dele era um sonho e concretizou-se.

O Motion do Bernardo Sassetti, foi o último disco do trio para a editora, que é intemporal, maravilhoso, e também pesa eu ter estado envolvido nesse processo com ele, termos feito uma tournée antes do disco, fomos para estúdio, vivi a banda por dentro e a música realmente é maravilhosa. Esse é um disco muito importante.

O Injuries dos Angles 9. É um disco de estúdio, de composição, que acho que é ume exemplo de como é que uma orquestra pode funcionar de uma forma muito diferente, ou seja, o Martin Küchen compõe os temas e grava no saxofone em camadas — ele não escreve música — e grava coisas intricadas, mostra aos filhos, eles ajudam e o gajo leva aquilo para os outros músicos e fazem ensaios de nove horas até toda a gente decorar a música — e não existem partituras. E tu vais ouvir a música, e quando a música é tocada do coração, sem as partituras e sem aquela coisa de estar sempre a olhar para a pauta, eles conhecem a música por dentro, aquilo soa de uma maneira que pode não ser tudo afinadinho, que eu também tenho pouco interesse nisso, mas pela emoção. É uma música altamente emotiva e fantástica a forma como aquela banda de nove músicos toca aquela música. Os discos deles são todos discos que eu adoro mas o Injuries é a obra prima deles.

O Pharoah Sanders com o Rob Mazurek, gravado na Gulbenkian, também foi um disco muito… foi um processo de gravação, concerto, aquela coisa toda, o Pharoah Sanders, a música em si, foi assim uma coisa incrível. Outro foi o Joe Morris com o Anthony Braxton, o número 100 da editora que é um disco quádruplo. Editar o Anthony Braxton e ele contactar-me para editar aquele disco foi uma coisa incrível. O Steve Lehman, o Camouflage Trio que é o número 24, salvo erro. Foi um disco gravado em 2003, em Coimbra, é o Mark Dresser, o Pheeroan Aklaff e o Steve Lehman. É o primeiro disco do Steve Lehman com impacto internacional. Ele já tinha feito umas gravações pequenas, mas ele ali tinha 22 anos, salvo erro. Eu vi o concerto do palco e aquilo estava cheio, o Mark Dresser cada nota que dava parecia que eu estava dentro do contrabaixo. Nunca mais me esqueço da gravação desse concerto. Foi brutal.

Editar o Sei Miguel, que é um artista que eu prezo muito como pessoa e como artista. É um gajo que não tem compromissos com nada, só lhe interessa a música, não está cá a pensar se aquilo vai vender, se não vai, tem a visão dele muito concreta e não mexe uma palha em relação a isso. Eu admiro-o muito. Os discos do Sei Miguel, de modo geral, para mim, são outros marcos da editora.

O Deluxe do Chris Lightcap, o primeiro. É uma banda assim de nomes que já tinham gravado na Clean Feed, e todos juntos fizeram uma música assim levezinha mas com um groove do caraças. Não temos muito daquilo na editora. E curiosamente é um disco que quando eu ouvi a primeira vez pensei assim, “mas porque é que o gajo está a mandar-me isto? Uma coisa assim tão levezinha não é para mim”. Mas depois fui ouvindo e ouvindo, os temas são muita bons, aquilo é uma coisa um bocadinho pop, os temas são muito simples mas muita bonitos, muito bem arranjados. É dos discos da Clean Feed que eu mais oiço. E claro que o Gerry Hemingway, o primeiro disco, o Devils Paradise, é outro que é um marco na editora e para mim enquanto pessoa amante desta música. Foi um disco que eu ouvi milhares de vezes.

Vocês lançaram o quê, uns 300 títulos?

Tudo junto com a Shhpuma já vai para mais de 600. 

E qual é o campeão de vendas do catálogo?

É o Bernardo Sassetti, o Nocturno. Vendemos aí uns 10 mil. 


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