A velocidade a que Pedro Alves Sousa pensa só tem comparação com a velocidade a que Pedro Alves Sousa toca e essa é a a velocidade da pura ebulição criativa, quando tudo acontece em repentes mesmo que, para assim ser, haja muita ponderação, busca e pensamento a funcionar como impulso ou combustível. A Futuro Familiar começou por se mostrar com Má Estrela, trabalho ainda assim dado à estampa numa parceria com a Shhpuma. Agora, a disponibilização de RAHU e KETU em vinil acaba por oficializar o que começou por ser fruto de uma vontade.
Com Alex Zhang Hungtai (percussão, saxofone, drumpad), David Maranha (percussão, órgão, flauta) e ainda Gabriel Ferrandini (percussão, electrónicas, flauta) em KETU e a mesma equipa acrescida de Júlia Reis (percussão) em RAHU, Pedro Sousa (percussão, saxofone, electrónicas em ambas as aventuras e também flauta em KETU) parte em busca do desconhecido que há no som e entrega-nos dois dos mais intensos, abstractos e exploratórios registos do ano, duas preciosas peças de colecção que são igualmente documentos de uma experiência de procura sem limites, mapas ou compromissos de qualquer espécie.
Sobre tudo isso, sobre o que se esconde e revela na música, sobre o que significa ser editor e tanto mais, Pedro Sousa conversa — sem filtros, de forma transparente e honesta. Ou seja, perfeitamente em sintonia com aquilo que a sua música já mostra.
A primeira coisa que te quero perguntar é: a Futuro Familiar nasce por vontade ou necessidade?
Por ambas. Tenho um lado meio control freak, por vezes. Tento mesmo fazer um jogo das duas coisas, de deixar um bocado as coisas acontecerem no que toca à música — toco improv e as coisas têm de acontecer — mas também tenho um lado control freak, de querer controlar o processo de A a Z. Quero fazer a produção das coisas. “A capa é como eu quero e como eu digo, porque eu é que mando. O som vai ser assim, porque eu é que digo e mando. O formato vai ser este, porque eu digo e eu mando”. Nasceu dessa coisa e do facto de eu andar com dificuldades para escoar material. Tenho muitas mais coisas gravadas do que as que tenho cá fora. Muitas mais. Isto foi uma maneira de eu poder controlar o processo, de poder dizer “eu quero as coisas assim, desta maneira”. Tens o exemplo do RAHU e do KETU, que, tecnicamente, foi uma coisa difícil de fazer. O convencer uma label a, “vamos lançar estes dois vinis e tem que ser ao mesmo tempo”, é uma proposta complicada. Se não fosse isso, quase que te garanto que eles continuariam na gaveta.
Entendo essa parte da necessidade de sentires que controlas todos os aspectos de uma edição. Mas pergunto-se se essa necessidade vem de: “ok, cheguei à conclusão de que tenho de ser eu a lançar, porque, neste momento, o panorama editorial em Portugal não tem possibilidade de encaixar aquilo que eu quero fazer?” Se existisse uma editora estruturada — há várias, mas que, se calhar, não respondem a essa tua velocidade — que cumprisse todos esses parâmetros, talvez não te estivesses a aventurar nesse campo, ou estarias?
Provavelmente estaria um bocadinho mais de lado essa ideia. Há aqui várias questões. Há labels das quais tu consegues dizer que “a distribuição é boa”, ou que “a promoção é boa”, “quero estar associado àquele nome”, “gosto do design” ou o que seja. Nunca nada é perfeito. Há sempre qualquer coisa. Há sempre ali uma turra com o designer, ou há um problema qualquer com as datas, que não são como tu querias. Há sempre uma coisa qualquer. É claro que também acabas por ter vantagens. Só que, hoje em dia, como na maior parte das vezes tens de pagar — muitas labels pedem dinheiro e esta é uma questão que não podemos ignorar — fiquei ainda mais de pé atrás. “Se eu estou a gastar dinheiro, prefiro controlar o processo todo”. A certo ponto, foi isso. E gosto de ter uma coisa que me proteja. Toda a gente sabe que a Futuro Familiar “sou” eu. Mas, ao criar esta entidade, tenho algo que me ajuda a projectar-me exteriormente.
Quanto maior for o grau de independência de um artista, mais amplas têm de ser as suas valências. Tem de ser artista, mas também tem de ser manager, designer, estratega de marketing… Por mais pequena que seja a dimensão da edição, não te podes dar ao luxo de ser simplesmente artista, não é?
Dás por ti e estás a fazer trabalho de design, estás aos e-mails a fazer promoção, estás a criar redes sociais, estás a mixar, a produzir, a masterizar. É avassalador. Às vezes penso, “fogo, queria era tocar música” [risos].
Há uma factura a pagar por essa independência?
Há alguma. Tens que exigir tempo e investimento da tua parte. Alem disso, há uma learning curve. Eu estou sempre nessa learning curve. Promoção nunca foi o meu forte, por exemplo. Mais rapidamente “mixo” e percebo o que quero, porque está mais ligado ao acto de criar e fazer a música. É uma das coisas que faço mais facilmente. Há outras que as faço com mais dificuldade. Por agora, estou a carregar tudo sozinho. Não é uma coisa que eu queria. Se tivesse meios para tal, eu dividiria algumas tarefas, confesso. Principalmente algumas questões de promoção, que são as coisas que me saem mais do pêlo e me custam mais. Para fazer a promoção tens de ter aqueles e-mails bem feitos, uma cena para vingar. Há sempre uma barreira que tu tens de mais ou menos penetrar. Uma das razões pelas quais criei a label foi para ajudar a penetrar essa barreira. Quero estabelecer um pilar mais sólido, criar um arco narrativo daquilo que é a minha música, a minha arte, o meu trabalho enquanto artista. E tenho de assumir todas essas valências, de designer, de promotor, de mixer, de masterizador, etc. [Risos]
Quando pegaste numa folha em branco do teu caderno imaginário e escreveste no cabeçalho Futuro Familiar, qual foi a lista de alíneas que criaste por baixo para tentar estruturar o conceito?
É uma boa questão. Sei que há coisas específicas que eu ando à procura. Ou melhor: há coisas que eu sei que não quero. É mais fácil conseguir dizer o que eu não quero. A partir daí, ir filtrando e percebendo para onde a label vai. Mas a label nasceu com esta ideia de, acima de tudo — e daí o mote do primeiro lançamento ser estes dois discos —, de lançar este tipo de coisas. Música mais rara, música que vem de one–offs. Foi o que aconteceu com RAHU e KETU. Nós demos um gig de RAHU e nunca mais demos um gig daquilo. KETU demos um em Hamburgo, em mote de residência — foi lá que ele foi montado — e depois na ZDB. Demos dois, mas na minha cabeça é como se quase tivéssemos só dado um, porque o primeiro é de uma residência… Nós demos dois concertos no ZDB e eu olho para aquilo como duas performances únicas profundamente interligadas. São as mesmas pessoas, apesar de não ter a Júlia Reis no segundo álbum. Em geral, a coisa é a mesma. Aquilo é como se fosse um livro, tem uma frente e um verso. Isto tinha de sair de alguma maneira. Como disse há pouco, não são produções fáceis. Então, eu quero tentar facilitar estas edições difíceis, complicadas, raras — preciosas, vá.
Acho muito curiosa a palavra que a língua inglesa tem para “disco” — record, que quer dizer “registo”. É nesse sentido que tu olhas para a Futuro Familiar, como uma forma de registar estas coisas únicas?
Sim. Há uns tempos, numa outra entrevista, disse uma coisa sobre a qual já tinha pensado muitas vezes e que acaba por estar ligada à ideia da label. Já dou concertos há bastantes anos — o meu primeiro foi aos 19 — e as coisas mudaram bué. Nas várias fases da minha vida, vi para onde é que a música foi, para onde vai e para onde quer ir. Eu tocava guitarra, deixei de tocar guitarra. Tocava música experimental, improvisada. Dei por mim a perceber que já tinha tido tantas fases e a música, nos últimos anos, evoluiu e começou a acelerar em termos de processos. Reparei que os meus registos eram cada vez menos. Os álbuns que eu lançava não estavam a reflectir, a meu ver, aquilo que eu ando a fazer. Então, foi a minha maneira de “tenho de conseguir controlar mais este processo”. Ter uma espécie de fonoteca minha, que eu consiga identificar como trabalho meu, um reflexo das coisas que eu andei a fazer em período X ou Y. Não senti que isso estivesse a ser feito. E eu não quero lançar só música minha. Não tenho esse interesse.
Achei interessante teres-te referido a estes dois discos como sendo lados diferentes de uma mesma moeda. No KETU, por causa das flautas, senti uma coisa, mais Organic Music Society e Don Cherry. No RAHU, com os órgãos, é toda uma coisa mais “SunRaesca”, se quiseres. Como é que, musicalmente, enquadras aquilo que apresentas aqui?
Vem de sítios um bocado diferentes. As nossas referências não foram bem essas quando idealizámos a música. Primeiro veio RAHU e KETU só apareceu bastante tempo depois. Na realidade, só pensámos em RAHU, no início. O RAHU vem de conversas, de diálogos do Gabriel com o Alex Zhang Hungtai, trocas de vídeos, estudos que andámos a fazer de polirritmias, tocarmos percussão todos juntos. Vem de um desejo de tocarmos música baseada nos Drums of Death. É essencialmente música de percussão africana. Também começámos a investigar mais sobre música asiática e acabámos por ir dar à cultura védica. Criámos uma narrativa para nós, em que queríamos simular uma espécie de eclipse a tocar, com RAHU como entidade máxima e ele iria ser a personificação do eclipse. Nós tocámos em isso em mente. Foi esse o nosso desejo. Quando isso ficou feito, começou a meter-se a hipótese de um follow-up. Começámos a trabalhar nesse sentido, eventualmente. Quando pegámos nisso, era bastante óbvio para nós que não íamos fazer o mesmo, musicalmente e em termos de estética. Aquilo já estava feito e teve muito de conquista pessoal, de medos pessoais. Nunca tinha tocado percussão ao vivo, nem o Alex se tinha enfiado no mundo da bateria daquela maneira. Tivemos uma coisa de grupo. Uma cena de apoio e crença em todos nós. Foi muito terapêutico, nesse aspecto. Foi uma espécie de breakthrough pessoal nosso. Teve esse lado. A catarse foi tal que aquilo ao vivo foi uma cena muito forte, registada pelo Ico Costa. Ele documentou tudo pela Terra Treme Filmes e isso está online. É uma espécie de filme-documentário. Ele filmou o concerto quase todo. Há registos do Brötzmann a tocar, há momentos de outros gigs de outras pessoas e nossos. 90% são imagens do RAHU a ser tocado ao vivo e a música é sempre RAHU. Se vires o documentário, tu sentes aquilo. Nós tocámos às escuras, houve um momento marado a meio do concerto, em que tivemos uma espécie de design de luz para simular o eclipse. Foi um evento que foi pensado, culminou e explodiu. Nós sabíamos que, depois daquilo, “está feito. Não podemos voltar a isto. Move on“. Quando começámos a pensar em KETU, aquilo veio naturalmente: quase todas as coisas eram o oposto. Se estávamos a tocar de uma maneira muito densa, agora temos de tentar descobrir como é que vamos criar música que consiga trazer luz àquela escuridão. Se ouvires RAHU, aquilo tem um monte de linhas de bateria em paralelo. Mas em KETU, as coisas não funcionam dessa maneira. As regras são outras. Tem muito mais a ver com gavetas que abrem e fecham ao mesmo tempo. Alguém faz uma coisa e outra pessoas tem de arranjar forma de sair, de dar um passo à frente, ou de saber que este é o momento do silêncio. A conversa de KETU foi muito mais à volta disso. Responsabilidade, responsabilidade, responsabilidade. Ainda mais a conversa da confiança. E do abismo, do abismo, do abismo. Musicalmente, fomos beber muito mais à cultura asiática, ao gagaku e à música fúnebre coreana, coisas assim. As nossas ideias eram as de ir buscar alguma luz para “desfazer” RAHU. Como se RAHU fosse um castelo de areia e a água desfazia aquilo.
Agora peço-te que metas o chapéu de gestor de recursos humanos e me fales das pessoas que reuniste para estes registos. Como dizias, é praticamente a mesma equipa em ambos.
Não foi uma coisa que eu montei sozinho. Partiu da amizade do Gabriel com o Alex, da minha amizade com o David e com o Gabriel. Fizemos as coisas em conjunto. Não foi uma cena individual. É importante frisar isso, que RAHU e KETU é mesmo uma coisa de grupo. Aquilo aconteceu porque estávamos juntos. Teve muito a ver com isso. Como sabes, tenho muitos registos com o Gabriel e tenho muita cumplicidade com ele. Trabalhamos juntos há muitos anos. A primeira pessoa com quem comecei a tocar a sério foi com ele. Alguns dos meus primeiros concertos foram com ele. Seria sempre óbvio. O David também foi uma pessoa que, a partir dos meus mid-twenties, começou a estar muito presente na minha vida e na música. Trabalhámos muito juntos e andámos muito activos, na altura. O Alex andava muito cá, estava a aprender saxofone e estava fascinado. Tinha acabado com o projecto Dirty Bitches. Veio para aqui depois de uma tour na Europa. Caiu meio de pára-quedas na nossa cena e demo-nos muito bem. Ele está a aprender saxofone. Viu-me a tocar uma vez, conheci-o e perguntou-me se podíamos tocar juntos e falar sobre o saxofone. A partir daí, as coisas cresceram. Apercebemo-nos que com o Alex temos um entrosamento igual ao que tenho com o Gabriel e com as pessoas interessadas neste tipo de música.
É alguém que vibra na mesma frequência.
Exactamente. E é alguém que tem fascínio, tem interesse e quer fazer pesquisas. Nós estamos muitas vezes no estúdio só em pesquisas. Ouvimos música, experimentamos uma técnica, experimentamos fazer música com um certo tipo de sons, depois temos ensaios, tipo bê-á-bá das coisas que sabemos e não sabemos. Mas há muito trabalho de pesquisa e o Alex entrou quando nós estávamos a estudar muito, muito, muito o instrumento. Estávamos a estudar a estética de vários tipos de música diferentes e a incorporá-las. Trouxemos coisas novas, pedais, amplificadores e electrónicas. Como estamos sempre nisso, aquilo para nós foi, “este gajo agora está connosco, na nossa vida, e vamos estar aqui uns tempos com ele a fazer música. Vai ser fixe”. E foi isso que aconteceu. E ainda bem que, ao menos, saiu isto. Lá está, voltando à ideia do “record“, se não tivesse saído RAHU e KETU, não havia nada que registasse essa confluência de factores. Este acontecimento feliz.
Mas dizias há pouco que não querias limitar a Futuro Familiar ao teu output, não é?
Até já cheguei a fazer propostas a outros projectos. Conversa assim corriqueira, de certa maneira. Vi concertos que me impressionaram muito, de bandas que acho que valem a pena, sem coisas editadas. Falei com eles, “‘bora pensar sobre isto?” Ainda nada está fechado. Alguns disseram “adorávamos, mas já temos uma label“. Para mim, eu já tenho ideias do que quero fazer. Gostava de lançar um álbum a solo. Não tem de ser necessariamente pela minha label, mas se não tenho onde o pôr, sai na label sem problema nenhum. Há outros projectos artísticos meus, coisas que nem sequer quero tocar ao vivo, mas que gostava de registar, que saíssem. Por exemplo, queria lançar uma caixa de loops. Loops em cassete. Cada cassete tem um loop, metes a tocar e podes ouvir o loop ad aeternum. Tens caixas disso, com umas 10 cassetes, vamos dizer assim. Ainda estou a idealizar como isso seria feito. Mas hão-de sair coisas que eu gostava de fazer, que vão ser registos one-off e, se calhar, não vale muito propor isso a outras editoras. Lá está, eu já lidei com estas questões: eu idealizo um álbum, preparo-o para sair em vinil, ’tá feito, masterizado, tenho a capa e, de repente, as labels respondem com algo do género, “muita giro, mas LP não é o formato para isto”. Eu fico, “não! LP é o formato para isto! Idealizei isto para LP”. Ficas dois ou três meses nisto e acabas por decidir não avançar com o projecto. Eu quero livrar-me dessas coisas todas e ter esse escoamento.
Ir directo ao assunto.
Exactamente. Lembras-te da Dromos? Eu lancei um álbum na Dromos e fui muito naive. Aquele meu álbum é muito velho e já olho para ele e não me identifico com aquilo. Mas eu olho para o catálogo da Dromos e vejo uma ideia, uma visão. A visão deles é muito clara. Tu percebes o que eles queriam fazer, pelo tipo de edições maradas que andavam a construir. Sempre coisas… Very exquisite [risos]. Projecto de colecção no fim do dia. Eu não estou necessariamente a querer fazer objectos de colecção. Mas também não quero, “olha, lancei mais um disco!” Não estou nisso. Quero que cada um valha mesmo muito a pena. Prefiro ter 30 discos na label quando aquilo acabar do que ter 300. Quero ter “aqueles” 30 discos, que são todos como eu queria e que saíram como eu pensava que iam sair.
Também mencionaste que tens um arquivo com muita coisa que gostavas de ver lançada. Sobretudo coisas ao vivo ou experiências de estúdio?
A maior parte é ao vivo. Mas o tempo vai passando e há muita coisa que começa a deixar de fazer sentido. RAHU e KETU estavam quase… Não diria no limite, porque hoje em dia eu gosto da música. Mas é antigo, para mim. É de 2016. Tem seis anos.
Isso dá uma questão importante. O que é que um ficheiro, uma gravação num computador, tem de ter para que tu sintas, “isto devia ser editado”?
Há um conjunto de factores. Para mim, na sua base, a música tem de ser boa. E isso é uma coisa profundamente subjectiva. Ainda agora, no carro, estava a ouvir Aphex Twin, que tu deves conhecer bem — tanto a sua música como a sua postura na música. Ele é conhecido por ser um gajo muito blasé em relação à sua música. Não sabe que nome dar às coisas muitas vezes, por exemplo. Há uns tempos li uma entrevista dele, na qual ele falava de se ter esquecido de que tinha esquecido de fazer o álbum — agora não me lembro qual era o álbum. De repente, chega o gajo da label, “vim a tua casa buscar o álbum. Dá-me lá os ficheiros para isto ir para a fábrica”. O gajo foi a correr ao computador, sacou músicas aleatórias e “está aqui o disco”. Ele faz isso com tudo. Tu reparas que os títulos das músicas muitas vezes têm números. Aquilo deve de ser para indicar a versão do tema. Muitas vezes ele chama os amigos a casa e são eles que dizem, “mete esta música no álbum”. Ele tem muito mais do que aquilo que nos chega e que nós já conhecemos. Só que a perspectiva dele não é a minha. Eu tenho de respeitar a perspectiva dele enquanto autor e génio que ele é. Mas a minha perspectiva, a de um outsider, é a de que “o registo é este. Só existe isto e mais nada”. E eu acredito que, para ele, essa questão não tem assim tanto interesse. É a mesma sensação que eu tenho em relação à minha música. Há muita coisa que eu posso ouvir e sentir que “isto já não tem interesse”, “isto já perdeu o sumo” ou “isto já não me excita”. E pode haver uma pessoa de fora, um outsider, que diga “isto está fresco. Está bom”. Só que esse não é o meu factor [risos]. O meu factor, de a música ter de ser boa, é algo que parte profundamente de mim. Isto para dizer que quem está de fora está a apreciar uma coisa que é muito diferente para quem está por dentro.
Já te aconteceu voltares a um ficheiro/gravação para trabalhares em algo que, da primeira vez, nem te estava a causar assim tanto entusiasmo?
Sim, acontece. Na maior parte das vezes, passa-se um tempo, vou ouvir outra vez e começo a hesitar. Geralmente, as hesitações estão a dizer-te qualquer coisa. Há coisas que são certeiras. Foi o que aconteceu com Má Estrela. Quando ouvi aquilo, soube logo que ia ser o álbum. Recentemente gravei uma cena a solo e tenho estado a convencer-me de que aquilo podia dar. Eu podia fazer os cortes, as costuras e editar aquilo. Há muitas coisas em que só registei sons. Podia fazer um puzzle. Vai sair dali um álbum. Eu sei que o tempo passa e eu, agora, tenho de dar mais uma volta naquilo. Passei dias e dias a ouvir aquilo. Foram muitas horas. E quanto mais tempo passava, mais cansado eu ficava das ideias que estavam registadas e da música que estava a ser feita. Dei por mim numa de, “isto pode ser melhor”.
Quanto daquilo que nós escutamos nestes dois lançamentos é audio vérité? Ou há ali muito trabalho de pós-produção?
Eu tenho andado a editar. Eu era muita purista. “Música improv é isto e tem de ser 100% como foi tocado”. Com o tempo, percebi que as gravações são objectos diferentes daquilo que é um projecto ao vivo. Isto tem muita música viva, mas a música viva requer que tu estejas lá para assistir. Nós vivemos do sumo que as pessoas que nos estão a dar naquele momento, da energia em palco e da plateia. É uma confluência disso tudo. Nem tudo isso passa para quando tu estás a registar. Há muita coisa que não está ali ou não se sente da mesma forma. RAHU é um bom exemplo disso, porque a gravação nem é boa. A gravação é muito má e, por isso, foi preciso muito trabalho de edição, muita magia, muito sumo a ser espremido. Fui-me apercebendo que esse processo é fixe e é positivo, porque tu ganhas um lado de produtor e, com isso, tu consegues limar muitas arestas e polir a jóia.
Em termos práticos, isso significa que tu estás a olhar para a wave no computador ou a experimentar plugins para melhorar o que lá está gravado?
Um bocadinho de tudo. Nunca daria para ter os dois concertos inteiros em vinil, porque cada um deles teve mais de uma hora. A edição era inevitável. Depois há lado A e B. Os concertos não tiveram interrupções, mas eu tive de criar o lado A e o B. Tive de criar inícios e fins. E enquanto fazes isso vais aprendendo e percebendo muitos truques. O Má Estrela foi a mesma coisa. 90% daquilo é o gig, mas tem edição. E foi a edição que permitiu estabelecer melhor certas ideias da banda.
Há uns anos vivíamos num enorme deserto, em que havia um oásis chamado ZDB. Hoje, a impressão que eu tenho é a de que esse cenário mudou completamente, não é assim? Ou é apenas a sensação de quem está de fora e não tem que andar a carregar o saxofone de um sítio para o outro?
Lisboa já esteve melhor do que está agora, para ser sincero. Mas não é 100% justo dizer isto porque, ao mesmo tempo, também se vai renovando. Há sítios que já foram mais activos e agora estão menos activos. Também estamos a chegar a uma idade — falo do meu caso, pelo menos — em que começamos a tomar as rédeas de algumas coisas e a ter mais responsabilidades. Esse trabalho acrescido nem sempre nos apetece. Do género, “agora vamos gerir nós um spot, porque é preciso.”
Voltamos ao início da conversa, de teres de ser várias coisas ao mesmo tempo. Entre elas gerir uma casa nocturna.
Exactamente. Foi o que aconteceu com o Irreal. Nós fazíamos tudo. Éramos bartenders, fazíamos a comida, as limpezas, pagar as rendas, tudo. Era uma loucura. Fazer a programação toda. Abrir e fechar as portas. Só não fazíamos cocktails. Havia muita, muita coisa. E dávamos por nós a ter de actuar também. Isso é tudo importante e nós estamos nessa fase. A ZDB continua e isso é importante. As DAMAS não estão tão activas, o que é uma pena. Houve uma altura em que as DAMAS tiveram a dar tudo por tudo. “‘Bora aí!” Agora tens o Teatro do Bairro Alto, que tem poucos concertos mas é uma instituição de médio porte. É importante teres sítios de tamanho médio com dinheiro. Agora tens o B.Leza com outra abertura por causa do Sérgio Hydalgo. Portanto, quando digo que as coisas não estão tão activas, se calhar estou a ser injusto. Sinto que a cidade tem um lado menos punk, comparativamente há uns anos. Está mais institucionalizada. Sítios como o B.Leza, lá está, são muito protocolados e fazem tudo by the book. Não é necessariamente mau, mas não é só isso que precisamos. Seria muito bom para a cidade ter uma ZDB2. Seria muito saudável para a cidade.
E até para a própria ZDB.
Sim. 100%. É injusto eles carregarem toda essa tocha. Eles é que fazem as cenas maradas, alternativas e indie. Não têm capacidade para tudo. Não só a nível monetário, mas também de envergadura para certos tamanhos de audiências. Nem tudo se coaduna com o que seria ideal para eles. Há aí muitas questões. Agora, a programação tem um sabor ligeiramente diferente, porque o Marcos gosta mais de música de dança. Se calhar, agora tens um bocado mais de apostas nisso. E a ZDB não foi feita para isso. O registo de música de dança não resulta muito bem ali. Se calhar, não tem nada a ver com a programação do Marcos e a culpa não é dele. É só o feng shui do sítio, a maneira como o aquário funciona… É uma conversa que eu já tive com eles. It’s out there. Reconheceu-se o elefante na sala, que é o teres as portas do aquário no meio. Para quem está a dançar, a porta, sempre que abre e fecha… Tu queres estar ali, na tua bolha, e há coisas que quebram. Então, não é o sítio ideal para isso. A ZDB está com essas questões neste momento. Depois, tens o Arroz Estúdios, também a apostar mais nessas cenas de música de dança. Mas nenhum sítio tem o historial que a ZDB tem, nesse aspecto de que falavas. A ZDB foi muito importante durante 20 anos. Eu era adolescente quando comecei a ir lá. Acho que mais nenhum sítio conseguiu ainda carregar essa tocha ou, pelo menos, carregá-la da mesma maneira insistente com que a ZDB tem feito ao longo dos últimos anos. Isso é indiscutível. Agora há apostas, mas o panorama — a fauna da cidade — está diferente. Está a tentar satisfazer isso. Há uma procura diferente neste momento. Há 10 ou 15 anos, quando a ZDB era o oásis, as pessoas queriam era ouvir Sonic Youth ou os Lightning Bolt. O panorama era outro. Hoje em dia, tens turistas que vêm à procura das festas Príncipe. O panorama da cidade está mais virado para o club. Não vejo isso como uma coisa necessariamente má. Acho que, para quem está a tocar improv, é… Isto já esteve um bocadinho mais perto daquilo que será Berlim, onde tens um cantinho para os marados em todo o lado. Hoje está mais afastado dessa ideia. Antigamente havia muitas associações. Hoje em dia tens o Cosmos, que é muito fixe e muito importante, mas não há muito para além do Cosmos para receber esse tipo de pessoas. O PENHA SCO também está muito parado, infelizmente. Tinha um piano, que é muito importante. No fim do dia, acho que não te consigo responder a isso. Estou só a dizer ideias que eu vou tendo. Acho que a fauna muda e os desejos mudam. E apesar de existirem músicos a querer fazer as mesmas coisas… As cenas são orgânicas. E também não vale a pena desejar que a cidade fosse sempre isso.
A cidade vai-se transformando e isso faz parte da sua história.
Claro. O mesmo aconteceu com Má Estrela. Dou por mim e aquilo está a ficar quase como se fosse uma banda de música de dança. Metade disto já dá para dançar. Nós, naturalmente — por causa dos nossos gostos e daquilo que gostamos de fazer —, vamo-nos transformando. Isso é positivo. It’s a good thing.
E o que é que vem aí com o teu nome a seguir? Há novidades de Má Estrela?
Em Má Estrela, já falámos muito sobre fazer um novo álbum. Mas nós temos de entrar em modo residência. Tem que ser. Não podemos ir para o estúdio, estar a ter ensaios… Temos de ir para um sítio onde possamos estar concentrados, na nossa bolha. Já estou a reparar nas tendências da banda. Por um lado é bom, por outro lado não me quero acomodar a isso [risos]. Se não, dou por mim e a banda passa a ser um cliché de si própria. Ficamos confortáveis. Tem de haver um desconforto, um bocadinho de abismo. Estou a sentir…
Um prego no sapato?
Estou a interrogar-me, “será que vou retirar o elemento dub da banda na próxima vez? Será que vamos entrar noutra?” Porque, de repente, como já sabemos que temos um elemento dub, “posso fazer uns delays e não sei quê”. Percebes? Eu não quero cair em clichés. Não quero fórmulas. Temos tentado alterar isso ao mudar estruturas, mas já sabemos que vamos ter uma parte, assim, mais footwork. Essas garantias são fixes, porque são coisas que queremos fazer. Por outro lado, isso aterroriza-me [risos]. Quero combater esse conforto. A única maneira de eu conseguir fazer isso — porque eu tenho ideias estéticas de para onde quero levar a banda – é irmos para residência e darmos por nós a find our glue again.
E para lá de Má Estrela?
Este ano foi o meu recorde de álbuns. Lancei Má Estrela mais estes dois. Lancei o disco com Mão Morta. Há um outro, BASFE, que não tenho em físico mas já está por aí. É do Bartolo, um músico brasileiro que reside metade do ano em Portugal e outra metade no Brasil. Ele é músico e técnico de som. Trabalhou com o Jorge Ben e esses gajos todos. Adora música experimental. O gajo conheceu o Gabriel, conheceu-me a mim e, ao longo de um ou dois anos, fomos tocando e ensaiando com ele. Entretanto aconteceu o COVID e ele teve de bazar durante uns tempos. Ele já tinha os registos, preparou o álbum e lançou pela Chant Records, uma label americana, se não me engano. Há um outro álbum que, oficialmente, já saiu. Só que ainda não o tenho em físico e nós nem fizemos o press release nem nada, porque os CDs tiveram de voltar para trás devido a um erro de fábrica. Devem chegar daqui a uns dias.
Esse CD é de que projecto?
Sou eu, o Rodrigo Pinheiro e o Gabriel Ferrandini. É o nosso trio de jazz improv pós-escola inglesa [risos].
Sai em que etiqueta?
Pela Phonogram Unit. Foi gravado no Goethe Institut. Fomos para lá uma semana e gravámos todos os dias. Depois demos o concerto, o registo sonoro, levámos aquilo para estúdio, escolhemos as melhores faixas e montámos o álbum. Digo-te já que adoro o álbum. Estou muito feliz com o álbum. É a cena mais jazz que fiz até agora.
Esse é o sexto álbum deste ano. É o meu recorde. Deu um álbum a cada dois meses, em média. O que não é mau. Gostava de manter este andamento para o ano. Vamos ver. Há coisas que já tenho na calha. Tenho mesmo de fazer o meu álbum a solo. Essa é a minha prioridade. Já devia estar feito, só que… Fiz o álbum e não gostei. Passei os últimos meses a fazer as pazes comigo próprio, porque vou mandar isto tudo para o lixo e recomeçar o processo. É um bocado duro. Vou mandar para o lixo um álbum inteiro. Mas quase de certeza que é o que vai acontecer, infelizmente. Tenho um outro projecto na calha que quero fazer com um rapaz italiano que faz noise. Eu vi um concerto dele no Barreiro. Ele escreveu-me um e-mail, “‘bora fazer uma colaboração?” Vai ser um álbum online. Nunca fiz isso. Vamos andar a passar faixas até formar um álbum. Essas são as coisas mais prementes. Tenho muito que fazer outro álbum com o Gabriel. É bué importante. Mas isso só poderei fazer quando ele regressar. E isso é uma coisa que eu gostava que saísse na Futuro Familiar. Tenho ideias de como seria esse álbum, mas nunca as discuti com o Gabriel. No fim do dia, nós temos muitas coisas que pensamos em conjunto sem falarmos nelas. Vamos muito para o mesmo sítio. Estamos na mesma frequência. Estamos em sintonia. Estamos coordenados ou no mesmo ritmo. Gostava muito de fazer um álbum em conjunto com o Gabriel. Nós só temos uma cassete e é uma cassete de jazz. Eu gostava que o próximo fossemos nós a tocar música electrónica. Eu e o Gabriel, com os pedais, os amplificadores e essa cena toda que costumamos fazer, mas em duo. Isso faria imenso sentido com a estética da Futuro Familiar. Mas ainda está tudo muito em aberto. Eu posso ir amanhã ir ver um concerto qualquer, pensar “isto é muita bom e se estes gajos não têm como lançar, ‘bora aí!” Gostava de fazer isso. Gostava de ter essa responsabilidade de, “isto é muita bom e tu mereces que isto esteja cá fora. Eu vou fazer isto. Eu acredito nisto”. Eu quero editar música em que eu acredito.