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Texto: Vera Brito
Fotografia: Felipe Gabriel
Publicado a: 05/07/2019

Chegou o novo EP do quarteto lisboeta.

PAUS: “Sentimos que fazemos parte da criação de uma ponte de ligação entre duas cidades que se podem ajudar muito numa altura complicada”

Texto: Vera Brito
Fotografia: Felipe Gabriel
Publicado a: 05/07/2019

Se por cada muro erguido existir quem concentre as suas energias em criar pontes, podemos continuar a olhar com esperança para o futuro. Os PAUS lançam hoje o seu novo EP LXSP, uma via rápida entre Lisboa e São Paulo, para encurtar distâncias entre as duas cidades irmãs — talvez não a física mas, garantidamente, a criativa e emocional.

Traçado em Lisboa, cumprido em São Paulo, LXSP tem apresentação marcada para o próximo dia 25 de Julho no Musicbox, em Lisboa. Fomos até ao estúdio HAUS falar com os PAUS e perceber como se constroem pontes seguras entre dois países que, mesmo com todos os seus séculos de história comum, têm ainda muito que dialogar e aprender um com o outro.



Como é que surgiu esta oportunidade para irem a São Paulo gravar este EP nos estúdios da Red Bull Station?

[Hélio] Na verdade surgiu de uma ideia nossa. Nós já tínhamos começado esta relação com o Brasil através do festival Bananada, onde vamos tocar em Agosto. Quando confirmámos, ainda não estávamos a trabalhar com a Construtora [A Construtora Música e Cultura], que é agora a nossa agência de booking no Brasil e promotora do festival. Tínhamos apenas o festival marcado, mas foi o início das conversações nesse sentido. E nessa lógica de ir para um país novo, construir público, aparecer e fazer aquilo que, a nosso ver, é o início de uma longa amizade com uma série de pessoas de lá. Achámos que gravar um EP também por lá era uma cena fixe, especialmente convidando-as para estarem connosco nesse disco. Porque chegar ao Brasil, uma banda chamada PAUS, que de repente vai tocar em tudo o que é lado, sabemos que as coisas não funcionam assim, não é? Então achámos que fazer parcerias com gente de lá seria uma óptima forma de entrar no país e que agora irá ter seguimento com o festival Bananada.

[Quim] E nesse contexto entra também outra parceria que nós já tínhamos com a Red Bull, na sequência do Culture Clash, em que vencemos a edição anterior com os PAUS e Pedras, ficando em aberto a possibilidade de fazer outras coisas. Quando surgiu a oportunidade de começarmos a trabalhar para o Brasil, o Miguel e o resto da equipa disseram-nos: “então deixem-me ajudar-vos porque temos lá os estúdios da Station, fazem uma residência e gravam connosco lá”. Então preparámos algumas coisas por cá, uns brutos do que é que seriam as canções, pensando com quem é que gostaríamos de colaborar. E começámos a mandar o barro à parede. Ligámos ao Kastrup que, por curiosidade, andava à procura do nosso número porque já tínhamos datas marcadas para o estúdio e ele precisava também de lá gravar, e deve ter pensado: “estes portugueses estão no meu caminho, deixa lá ver como é que eu posso agilizar isto”. E começámos aí a perceber como é que podíamos colaborar. A Maria Beraldo descobrimos quando o seu disco Cavala saiu cá pela Lovers & Lollypops, e mostrou-se disponível para colaborar. O Dinho Almeida conhecemos pelo festival MIL, de há dois anos, quando colaborámos com os Boogarins — esse contacto foi um pouco mais fácil. E o Edgar foi também através do MIL deste ano, o Hélio é que nos chamou a atenção para “um rapper assim meio de um planeta só dele”…

[H] Meio spoken word, meio rapper, meio activista, meio performer do fim do mundo…

[Q] Todo ele uma obra só! Está tudo ali à mistura. Fomos então para o Brasil com tudo meio em aberto, reorganizámos o EP, as estruturas, adicionámos as percussões do Kastrup e depois começaram a chegar as colaborações dos outros três instrumentistas/vocalistas. A Maria adicionou mais instrumentos, o Dinho e o Edgar acrescentaram só voz. E foi em São Paulo que o EP ganhou forma. Até lá era só intenção e esboço.

Já foram então com as quatro faixas preparadas na bagagem para o Brasil para serem “escrutinadas” pelo Kastrup. O resultado final ficou muito diferente do que tinham originalmente planeado? Como foi esse processo?

[Makoto] O que o Kastrup adicionou foi sobretudo em termos de intenção e de cor, fazendo algumas edições. Não se refez estrutura, nem se recompôs coisas, foi sobretudo arrumar ideias no sítio certo que estavam em bruto para tudo soar coeso.

[H] Algumas partes saltaram fora também. Porque quando fizemos as músicas e definimos o esqueleto, queríamos ter várias possibilidades, até pelos vocalistas que iríamos convidar. Queríamos que as músicas não estivessem logo fechadas em termos estruturais, então já íamos a pensar que alguma parte poderia saltar. Fizemos as músicas com o cuidado de ter várias partes diferentes para poder arrumar depois de acordo com o que assentasse melhor a quem pusesse voz.

[Q] O que o Kastrup acrescentou sobretudo foi uma abordagem mais musical aos padrões rítmicos que estávamos a fazer, até para criar algum espaço de conforto para aqueles que ele acrescentou.

[H] E tivemos de regravar algumas coisas, porque havia músicas que ele achava que precisavam de outra intenção, podia ser até aquele mesmo padrão ou às vezes ligeiramente diferente, mas precisava de uma outra intenção.

[M] Até porque já tens dois elementos percussivos com as duas baterias, se vais meter outra percussão em cima — ele acrescentou congas, jambes e atabaques — e aquilo não puxar tudo para o mesmo lado, torna-se uma grande confusão.

[Q] Essa aprendizagem foi muito boa, especialmente para mim e para o Hélio, em perceber a abordagem meio de voz que ele tem, que vem daquela cultura toda de batucada, de roda de samba, em que todos os tambores têm vozes e estão falar uns com os outros. E isso ficou-nos na cabeça, as frases que as baterias cantam e como é que elas se podem complementar e trazer para a frente as nuances dos outros instrumentos. Aprendemos bué!

Diriam que foi um dos vossos trabalhos mais intensos em termos de colaborações?

[H] Não foi o mais intenso, mas foi diferente.

[M] Não, já tínhamos feito um EP com o Fábio, antes dele entrar para a banda, já tínhamos colaborado com os You Can’t Win Charlie Brown ou quando fizemos o Só Desta Vez.

[Q] Mas foi diferente, o Só Desta Vez, por exemplo, foi numa lógica dentro daquilo que já está mais ou menos definido ao qual depois se acrescentou um elemento extra. Aqui houve composição partilhada. No sentido de que havia uma ideia crua nossa, mas depois toda a parte de arranjo, orquestração e intenção já existiam outras pessoas com palavra a dizer. E o que nos abriu ainda mais a percepção foi o facto daqueles músicos todos terem um substrato e uma envolvência completamente diferente dos que nós tínhamos colaborado até aqui. Eles não conheciam nada da nossa história, por isso estávamos a falar só com aquela música em questão. Enquanto os outros músicos com quem colaborámos antes já conheciam a banda de alguma forma e vinham com um espaço um pouco mais definido, aqui não havia espaço definido nenhum, valia tudo e nós estávamos mais a beber da forma de como eles olhavam para música. E nós nunca trabalhámos com um produtor, sabes? Foi a primeira vez com a figura da ideia de um produtor, alguém que aterra aqui no meio e começa: “então bora fazer assim!”, com essa autonomia.

[M] E foi muito fixe porque a partir do momento em que dás esse papel a alguém, tu dispões-te não a fazer o que aquela pessoa quer, mas a seres mais flexível nas tuas opiniões e a não discutires. Porque se eu te entrego a minha produção então é porque eu confio em ti.

E até acaba por te dirigir para coisas que tu se calhar à partida não farias?

[M] Isso sempre!

[H] Porque é uma cabeça diferente e vai pôr-nos a pensar diferente também. Porque nós apesar de tudo, quer queiramos quer não, e por mais coisas diferentes que oiçamos antes de cada disco novo, individualmente somos sempre nós os quatro, a nossa cabeça já conhece a dos outros três e já tem vícios e uma série de processos que são quase automáticos. E ao estares a trabalhar com outra pessoa que não tem nada a ver com isto, que está com a cabeça completamente vazia em relação a ti, porque não tem preconceito nenhum, está a construir do novo e a conhecer-te. É fixe porque ele vai opinar com ângulos que tu não opinarias, porque não fazem parte de ti. Agora se calhar passaram a fazer, alguns dos deles, mas até então não.

[Q] É como teres um ouvinte contigo em estúdio sempre. Ele está a olhar de fora da canção, está a mexer e a intervir, mas a abordagem dele é do género: “Como é que isto vai acabar? O que é que a canção tem de dizer? E o é que eu preciso que estes gajos adaptem ou interpretem de outra forma para a canção fazer sentido?”

Houve também a questão do tempo, gravar este EP em 15 dias, foi quase como uma corrida contra relógio?

[Q] Não, isso foi tranquilo. Nós em três semanas conseguimos acabar um disco. Fomos com a ideia de que iria sobrar tempo para fazer outras coisas, acertar agendas e concertos. Foi muito fluído, muito mais do que costuma ser, porque nós os quatro estávamos só preocupados em ser músicos, em ouvir o Kastrup e perceber as ideias dele.

[M] Porque quando não estás a operar, não pensas em coisas como afinação de bateria, dás as tuas dicas, mas não estás preocupado do género: “Será que isto está bem captado?”, que é o que geralmente fazemos. Para além de trabalharmos como músicos e produtores, também estamos sempre a trabalhar como técnicos, como operadores e tudo o resto, então, desta vez, houve espaço para relaxarmos mais.

No diário que vocês mantiveram destes 15 dias em São Paulo, no site da Red Bull, foi possível acompanhar as muitas fotos e vídeos, as pequenas histórias e peripécias, desde um passaporte caducado a poucos dias da viagem, ou de precisarem que vos enviassem de Lisboa os pratos das baterias para as gravações. Quais foram os maiores desafios desta ponte LXSP

[Risos dos três]

[H] Vamos deixar o Quim explicar…

[Q] A cena é: não havia razões nenhumas para isso acontecer. Não havia histórico, nem experiência nenhuma, que justificasse esta coisa ter acontecido, mas aconteceu. A quatro dias da viagem, com três dias úteis, eu percebo que o meu passaporte estava caducado e que, para além disso, também não tinha cartão de cidadão. Ou seja, na segunda de manhã estava a tirar um cartão de cidadão de urgência, terça fui levantá-lo, quarta fui fazer o passaporte, quinta era feriado e o voo era sexta. A hora de entrega do passaporte era a partir das 16h30 e o boarding fechava às 17 e é senso comum que eu sou uma pessoa altamente atlética, que corre quilómetros todos os dias. Então aconteceu o seguinte: um segurança lançou de uma varanda do primeiro andar o passaporte para eu apanhar pelas 16h35, depois tive de atravessar todo o aeroporto todo até ao gate (isto até parece anedota, mas era o último gate do aeroporto), atravessar segurança, controlo de passaportes e consegui não ser o último a entrar no avião. A minha sorte é que eram amigos meus que estavam sentados ao meu lado nesta viagem de 8 horas, que tiveram de lidar com as consequências de odor e afins [risos].

Houve também tempo para um concerto em São Paulo, na Casa Natura. Vocês já tinham tocado no Brasil? Como é que o público paulista recebeu o vosso som?

[M] No Brasil foi a primeira vez, a sala era incrível, lotação para sei lá, umas 1000 pessoas? Estavam 200 [risos] numa sala gigante. Como é que o people reagiu? Eu acho que reagiu bem, pelo menos mal não reagiu.

[Q] Acabámos por tocar mais para músicos e imprensa que estavam envolvidos no Bananada, porque aquilo foi uma festa mais ou menos inventada à última da hora para fazer a apresentação do cartaz completo do festival e que aproveitou o facto de nós lá estarmos para tocarmos, porque originalmente o Bananada era para ser naquela data, mas por questões de políticas e de outras coisas teve de ser adiado para Agosto. Acabámos por tocar para o resto dos artistas que lá estavam do cartaz e pessoas que estavam interessadas, que eram de alguma forma profissionais associados.

E agora regressam lá em Agosto para o festival. Têm mais coisas planeadas para o Brasil?

[Q] Estamos a planear mais coisas, obviamente, mas para Dezembro. Para já temos o Bananada e queremos fazer com que o disco saia lá com alguma visibilidade, para que este seja o início da relação dos PAUS com o Brasil, mais propriamente com São Paulo. Foi lá que aterrámos e criámos relações, por isso sinto que a cena onde a gente pode fazer sentido é em São Paulo. São 18 milhões só na cidade, 44 milhões no estado, não há necessidade para a maior parte dos artistas que tocam e que criam obra por lá sequer sair do estado. Até porque em termos de gosto, visão, maneira de estar e de pensar, os estados do Brasil são quase como países completamente diferentes entre si. Um pouco como os Estados Unidos. É a mesma lógica. Ires a Nova Iorque não é a mesma coisa que ires a Ohio.

E como é que vocês sentiram o clima por lá? Por aqui acompanha-se com apreensão as tensões políticas e sociais, com tudo o que tem acontecido recentemente no Brasil, mas acredito que ao estar lá as coisas ganhem toda uma outra dimensão. Vocês diriam que as pessoas vivem mais com medo ou com esperança de mudanças futuras?

[H] Medo não. Aliás, se há coisa que nos inspirou para caraças foi que, apesar de nunca ter sido tão perigoso seres trans, LGBT, etc, ao mesmo tempo as pessoas estão a vir ainda mais para a rua, pessoas que são perseguidas mesmo. Está tudo mais agressivo mas também a reacção é muito mais bonita, as pessoas estão juntas e isso é brutal!

[Q] E tu percebes perfeitamente que é uma reacção de um grupo pequeno de poderosos privilegiados contra um país inteiro de desprivilegiados, é literalmente assim. As decisões daqueles gajos de beneficiarem latifundiários ou de liberalizar o uso de armas, ninguém na sua maioria vê vantagem naquilo, no entanto essas leis eram empurradas como se fossem para o bem da nação e ninguém concorda com aquilo, percebes? Já para não falar naquilo que o Hélio estava a dizer, está mais perigoso que nunca, mas toda a gente está mais verbal e expressa-se mais do que nunca, ou seja, a reacção de medo que aquilo era suposto criar não está a criar. Nós estávamos lá na altura em que o governo cortou o subsídio às principais universidades públicas que são, por coincidência, as principais universidades que criam pensamento não alinhado com o sistema, educam pessoas, têm programas de inserção e cotas para reequilibrar a representação. Estas foram as primeiras identidades que eles tentaram estrangular. E a velocidade com que as ruas se encheram e o número com que se encheram nunca na minha vida consciente aqui, e de democracia em Portugal, vi uma reacção assim — é verdade que também nunca tivemos um governo tão contra-povo como o Brasil tem agora. A tensão é palpável, é visível, conversa-se sobre isso todos os dias. Eles têm a Intercept e a Mídia Ninja, que são canais completamente independentes de informação, nos quais a maior parte das pessoas com quem nós lidámos só confia. Ou seja, para teres uma perspectiva do ponto de vista de media lá, há vale no meio daquilo, que é acentuado, é visível, e tu vês todos os dias as pessoas preocupadas com situações só relacionadas com aquilo.

Isto foi algo que vos preocupou antes de irem para lá, algo em que tenham pensado?

[H] Eu já acompanhava bastante. O Ricardo Silveira, que andou connosco a fazer o documentário, com quem tenho uma relação muito próxima, vive lá e então vou acompanhando sempre o que se passa. Acho que já estávamos todos alerta para o estado em que as coisas estavam, mas para mim a surpresa maior foi chegar lá e ver aquela reacção toda, não te sei nem explicar, é que não era sequer era uma reacção violenta, era mesmo só marcar presença e aquela cena básica do: “ninguém larga a mão de ninguém” — é mesmo isso que está a acontecer! Foi super inspirador e uma das coisas mais bonitas que já vi: a forma como as pessoas se ajudam e se cuidam num momento destes.

A capa do EP está incrível e aquele graffiti “PAUS LXSP” no edifício (em frente aos estúdios da Red Bull Station) podia ser real que ficaria perfeitamente integrado naquele cenário. São Paulo parece ter-vos marcado bastante, vocês acham que também deixaram alguma marca por lá? De Portugal? De Lisboa?

[H] Acho que criámos laços e criámos mais uma ponte das várias que já existem. O Kastrup, por exemplo, chega esta semana a Lisboa para fazer um workshop que vai ter lugar aqui no nosso estúdio [HAUS], assim como somos nós também que estamos a ajudar na masterclass que ele vai fazer. O Rodrigo Coelho, que é o grassmass, fomos ver um show dele lá, tocámos juntos na Casa Natura, também vai estar cá e vem colaborar connosco no novo álbum que já estamos a gravar. Portanto, de repente, há aqui um veículo nos dois sentidos. Mas se deixámos marca? Não sei… acho que seria um pouco presunçoso achar isso.

[Q] Eu com certeza te digo que não. [Risos]

[H] Do ponto de vista musical e artístico acho que fomos absorver mais do que dar, agora, claro, começamos a criar outro tipo de relações e aí sim, podemos deixar uma marca no sentido de poder ajudar a que isto flua nos dois sentidos.

[Q] Não é um acto isolado termos ido para lá, os amigos que fizemos e a ponte que se começou a estabilizar. Eu falo por mim, mas acho que vocês também são capazes de partilhar desta ideia: nós viemos de lá com a ideia de que há finalmente um canal aberto fora da ideia do mainstream, ou seja, aquela coisa da malta do fado e do world music que vai lá para ter um padrinho e entrar no circuito do: “olha este fadista”, nós não fomos com esse intuito. Se calhar, finalmente, começou-se aqui uma relação entre outras músicas, outro tipo de coisas. Uma coisa que o hip hop também já tinha começado de alguma forma com a Língua Franca e outras parcerias que foram feitas, porque logisticamente é mais fácil fazer isso. Eu acho que o que se abriu foi uma parceira com a cena musical ridiculamente criativa que São Paulo e o Brasil têm, e que, agora com os movimentos de êxodo político que começam a acontecer, muitos brasileiros criativos estão a aterrar em Lisboa. Acho que este EP pode ter alguma carga simbólica nesse sentido e ser o primeiro parágrafo de uma história bem fixe que se pode escrever a partir daí. 2019 é capaz de ficar o ano, não tanto pela música que fizemos ou por este EP, mas pelo ano em que se começaram ligações e colaborações entre duas cidades que têm muito para aprender uma com a outra e, especialmente, a ideia de que Lisboa pode ser um lugar seguro, para quem precisa de um lugar seguro vindo de São Paulo. Nesse sentido acho que fazemos agora um bocadinho parte dessa história, de estabilizar aqui um canal e essa ponte de ligação entre as duas cidades.

Regressando ao EP, a faixa “Memória Afetiva Descolonizada” soa completamente diferente de tudo o que vocês já fizeram, talvez sobretudo pela colaboração com o Edgar. Há ali uma torrente vertiginosa de ideias e imagens muito fortes, que fica a sensação de que é preciso ouvir várias vezes esta música para conseguir absorver tudo o que ele está ali a dizer. Para vocês qual é a principal mensagem ou ideia que fica desta faixa, se é que conseguem isolar uma em particular?

[Q] O que tu estás a descrever de “torrente” é capaz de ser a ideia que melhor descreve o que é o Edgar. Tens aquela voz super aguda, meio cantor forró, peão, com aquela coisa que é bué brasileira: não separar nada da dimensão do que é que é ser artista, ou seja, tudo o que se canta, o que se veste, como se dança, o que se diz, como te comportas fora e dentro do palco, tudo aquilo é obra, o que é muito complicado para nós separar depois, até porque nós testemunhámos a coisa toda a acontecer. Em relação à faixa “Memória Afectiva Descolonizada”, ele tem montes de contestações e constatações que faz na canção, mas eu acho que a ideia principal é fazer o lembrete de que somos todos emigrantes — essa é capaz de ser a ideia transversal. E depois havia ainda o sub-texto de: “Eu, Edgar, brasileiro, a cantar numa canção de uma banda portuguesa” e perceber como é que os ciclos se renovam. Estes são trisnetos de colonos, que são eles imigrantes também, frutos de muitas imigrações e outras diásporas. O Brasil também ele é fruto de muitas diásporas, portanto esta ideia toda de migração enquanto forma de ser estava toda lá. E depois ele tem, obviamente, contestações do seu dia a dia e realidade que são suas, e ele tinha nesta música o ponto-de-vista e o ponto de fala para o fazer.

Após ter lido o vosso diário e ouvido o EP, pessoalmente gosto bastante da última faixa: “Perdidos em SP” e dei por mim com vontade de marcar um voo para São Paulo, até porque não conheço a cidade e esta música parece ter captado ali qualquer coisa que eu quero conhecer para poder perder-me também por lá. Foi difícil dizer adeus? Ficou a vontade de regressar?

[Q] A minha primeira semana em São Paulo fiquei completamente assoberbado com a escala de tudo, com a intensidade de tudo, mistura de jet lag e outros de factores, mas a escala bate mesmo. Mas depois, no meio daquela escala, há a humanidade da maior parte das pessoas com quem nós nos cruzámos, a forma como eles recebem, como te vêem. Isto é, claro, muito condicionado pelas pessoas com quem nós estivemos, tenho quase a certeza que não conhecemos bolsominions nenhuns, ou teríamos sido interpretados e recebidos de outra forma (haverá certamente pessoas execráveis em SP como em outra cidade qualquer). E acima de tudo ser inspirado por uma data de pessoas que têm um entendimento do que é que é ser enquanto expressão de uma identidade e de fazer parte de qualquer coisa maior, e de como é que essas duas coisas, individual e colectivo funcionam. É definitivamente um país em luta mas que depois no meio disso tudo tem um manancial cultural e uma criatividade incríveis, que vêm daquela mistura toda maravilhosa que é aquele país, ao qual foi muito fixe estarmos expostos. Eu diria mesmo que é uma das minhas cidades favoritas das que já visitei e toquei, onde tenho vontade de trabalhar e de aprender mais. Não haverá uma cidade onde eu tenha tanta vontade de conhecer mais do que é que se está ali a fazer, porque há ali histórias que eu não vi, há música que eu ainda não ouvi dali que deve ser incrível, que está escondida atrás de uma pedra qualquer que é preciso virar.

Da nossa conversa acho que já percebi que o maior ganho deste EP foi a ponte estabelecida entre Lisboa e São Paulo, mas pedia-vos para resumir o mais importante desta experiência?

[Q] Resumindo, eu acho que recebemos mais do que demos, abriram-se portas de expressão e do que é que podemos fazer enquanto banda, com outros sons e outras abordagens à criação, porque colaborámos com outras pessoas nesses momentos onde até agora não o tínhamos feito. E sentimos que fazemos parte pequena, mas que acho que não deixa de ser válida, da criação de uma ponte de ligação e de colaboração entre duas cidades que têm muito em comum, e que se podem ajudar muito numa altura complicada para as duas. Eu acho que Lisboa e Portugal têm muito a ganhar com a criatividade que vai aterrar nos próximos tempos aqui e vai começar a criar coisas aqui. E acho que para São Paulo e para o Brasil sentirem que têm aliados fora do país a falarem a sua língua e a perceberem o que eles estão a passar é uma ferramenta também muito útil para fazer com que outros países estejam de olhos postos no que está lá a acontecer, tanto em termos políticos, como em termos culturais e artísticos. Portanto, nesse sentido, este EP foi uma aprendizagem muito grande para nós e é uma colaboração pequenina para manter essa ponte ligada, aberta e segura.


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