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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2020

Um diálogo geracional.

Paulo Flores & Prodígio: “O álbum é um trabalho de instinto, de dor, quase como uma catarse”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2020

A Bênção e a Maldição é a sina de ser negro num mundo onde a cor pode ser sentença de morte. E é sobre essa “História” que Paulo Flores e Osvaldo Moniz, ou “tio Paulito” e Prodígio, fazem da sua parceria símbolo de “Esperança” para Angola, primeiro, e, depois, para todo esse mundo.  

O encontro de gerações, de ídolos de diferentes infâncias, da kizomba com o rap, resultou num disco carregado de dor transformada em alegria sob a forma de música. E que dor, que alegria, que música, exponenciadas ao máximo em cada nota, cada batida, cada sentimento. Não é só um disco; são conversas sobre vidas que tanto têm para contar em nome de mil e uma outras. “Olha Nzambi, muito obrigado pelo tempo que tiraste para me ouvir”. Se Nzambi os ouviu, só Nzambi sabe. Mas nós ouvimos, e somos nós que agradecemos. 



A vossa dupla surge com o nome “Esperança”. Como surgiu esta junção, e qual o significado por trás deste nome? 

[Prodígio] Começou, primeiro, com uma ligação pessoal que eu e o tio Paulito [Paulo Flores] temos – é como um pai, um irmão mais velho, para mim. A música do tio Paulito, para a segunda e terceira geração que emigrou para a diáspora à procura de melhores condições de vida, representa uma nostalgia, uma dor boa de sentir, de saberes que dói mas dá algum tipo de conforto… 

Um certo calor na alma… 

[Prodígio] Sim, exactamente. Então, para mim, fazia todo o sentido, e o nome “Esperança”, na verdade, é das poucas coisas que sobrou para nós. São tantos anos de luta, de procurar a liberdade, de tal forma que às vezes parece que precisamos de validade mesmo só para ser. Acaba por sobrar sempre a esperança… 

[Paulo Flores] Para mim, a “Esperança” é, essencialmente, podermos ter esse diálogo geracional, com as coisas que nos preocupam, e a nossa arte poder ser um contributo e uma forma de pensar e de dar voz aos outros. E acho que este trabalho é muito isso: um trabalho de instinto, de dor, quase como uma catarse. Nós, mesmo ao criá-lo, depois de muitas conversas e pensamentos, sentimos toda essa metamorfose de criatividade instintiva com pensamento e dor durante o processo, que nos deu, de facto, a luz da esperança. 

Essa dor que vocês descrevem, mesmo para um jovem português distante dessa realidade, transparece de uma forma muito clara. 

[Paulo Flores] Por acaso, hoje – Prodígio, nem enviei para ti, porque a mensagem era um bocado grande –, recebi uma mensagem de uma tia minha, que quando enviou o áudio ainda estava a chorar. E ao mesmo tempo senti-me mal com o que ela estava a dizer, porque ela elogiou tanto, e no final disse a frase mais importante, “estamos no caminho certo, que é aquele onde nos leva o coração”, e fiquei muito emocionado com essa mensagem. Se tu, como disseste, estás aqui em Portugal, longe dessa realidade, e consegues sentir essa dor, agora imagina nós, ou quem faz parte. É mesmo necessário falarmos sobre isso para chegarmos a um ponto melhor. 

[Prodígio] Eu acho que, directa ou indirectamente, acabamos por ter caminhos cruzados pela história, obviamente, pela língua, pelo cruzamento de culturas, forçada ou livremente, que acabou por acontecer. Então, acho que os estilhaços acabam sempre por bater nos países irmãos, por causa da história das pessoas… 

Que se cruzaram não assim há tanto tempo… 

[Prodígio] Exactamente. A altura do Salazar não foi assim há tanto tempo. E ele acabou por nos amar a todos… [risos] 

[Paulo Flores] Para mim, no fundo, também é nessa perspectiva de estar a chegar aos 50, e poder sentir-me vivo com tanta juventude à minha volta a dar-me essa certeza de que estamos vivos e com capacidade de melhorarmos a nossa presença neste mundo. 

Foi fácil convergirem no processo criativo, vindos de estilos diferentes? 

[Prodígio] Essa tenho mesmo de ser eu a responder. Foi muito fácil, porque o que nós estávamos a fazer não era música; são as conversas que temos há anos, mas a serem expostas. Foi a única diferença. Não sei se isso soa estranho, mas em momento nenhum estávamos a pensar em música. 

[Paulo Flores] Eu acho que não é tanto não estar a pensar em música. Era mais no sentido de não haver nenhuma barreira, e não havia nenhuma preocupação com que caminho musical deveria tomar. O que interessava era a mensagem, o que estava dentro de nós. Isso serviu para nos libertar e conjugarmos géneros de uma maneira muito natural, e tudo casou com qualidade e profundidade. E voltando ao meu início – se calhar aqui não percebes tanto, mas como o Prodígio disse, em Angola sou uma pessoa com uma certa responsabilidade, digamos, e existe aquela ideia do “cota Paulo” –, poder esquecer isso tudo e fazer um disco à primeira, sem maquilhagem, e aprender tanto com esse processo, foi um grande crescimento. Percebi que ainda tenho essa capacidade de aprender tanta coisa e de me sentir tão jovem nesta altura. 

Em relação ao álbum que nos trouxe aqui, em que altura foi gravado? Foi uma resposta aos recentes acontecimentos que se vêm a acentuar em Angola, ou é mais transversal que isso, já que aborda muitos dos problemas que sempre existiram na “banda”? 

[Prodígio] Os dois. É assim: primeiro, o álbum foi gravado há um ano e tal, em Julho ou Agosto do ano passado. E, se calhar, o álbum responde ao que se está a passar agora, porque esses acontecimentos eram os nossos medos. Nós sentíamos a tensão a subir. Por isso é que, inconscientemente, o álbum veio a responder às situações que estamos a viver agora no nosso país. 

[Paulo Flores] Sim, e eu lembro-me de nós, em Dezembro, termos pensado que era importante lançar o álbum no início do ano, para ver se também funcionava como um bálsamo para as pessoas, porque nós estávamos a sentir que ia, de facto, acontecer alguma coisa mais grave em termos de desigualdade social. Depois veio a pandemia, houve alguns atrasos, e curiosamente na altura em que sai é quando está tudo um bocado mais agitado, mas, no fundo, era algo previsível: a falta de perspectiva que a juventude tem em Angola, e em África. 



Nesse sentido, Angola é A Bênção e a Maldição? 

[Prodígio] O mundo acaba por ser, mas neste caso estávamos a olhar para o nosso mundo, a nossa terra-mãe, e acaba por ser um conjunto de certas situações: há províncias onde as crianças andam descalças em cima de poços de petróleo. Não sei bem como dizer isto, mas parece que se não tivesse esse petróleo, ou os diamantes, talvez fosse mais fácil. Não dá para dizer, porque não sabemos; o facto é que existe o tal petróleo, mas existe, ao mesmo tempo, fome. O petróleo gera dinheiro, mas também gera fome. Isto é um exemplo desse agridoce. 

[Paulo Flores] E mesmo na própria gravação do disco, os temas abordados, desde a violência infantil ao abuso da criança, a fome, a condição do africano, tudo isso, nós próprios no sentimentos que tínhamos quando estávamos a cantar ou a escrever, várias vezes chegámos a chorar, ou perto disso. Então, toda essa viagem que sentimos de esperança por podermos falar, sentir, ter um país, por mais cacos que ele tenha, esperemos que sirva este diálogo e esta dor para termos uma sociedade mais inclusiva. É o que acaba por sair um pouco desta benção e maldição. 

Então, qual é a vossa opinião sobre o rumo do vosso país? As coisas melhoraram ligeiramente com a mudança da presidência, ou isso só evidenciou ainda mais os problemas que já existiam? 

[Paulo Flores] Os problemas são de fundo, são estruturais. Não mudam de um dia para o outro porque muda uma pessoa. Tem de se mudar as mentalidades. O que me deixa mais esperançoso é perceber que hoje temos uma sociedade civil, uma juventude activa, e todos os quadrantes da nossa sociedade, sejam mais velhos, sejam mais novos, a começar a reivindicar os seus direitos. Acho que isso é um bom processo, é um bom caminho, melhor do que o que estávamos, porque dantes toda a gente fingia que não havia problema, e agora, pelo menos, toda a gente dá a voz e reclama com algum civismo e propriedade. 

[Prodígio] Era o mesmo que ia dizer. Eu não gosto de transformar as coisas ou a vida em pessoas. As pessoas morrem e são substituídas. Um posto de trabalho é um posto de trabalho; não significa nada mais. E acho que os nossos problemas eram e são, como o tio Paulito disse, muito maiores do que um indivíduo. Nós todos como país começamos a caminhar para um caminho melhor. O diálogo é importante, e começou, de alguma forma. E está na altura de se ter certas conversas que são desagradáveis. O caminho começou e estamos a dar passos. 

[Paulo Flores] Acho que este álbum também tem essa virtude: as gerações juntas. É uma espécie de revolução que é inclusiva, e que nos leva a todos – leva o passado e o futuro – a ouvirmo-nos uns aos outros. Foi bastante emocionante fazer esse trabalho, e tem sido motivo de um orgulho grande. 

A faixa “Fome”, como tantas outras, aliás, é cantada por vocês com especial carga e sentimento. Este disco, e este tema em particular, além de retratar uma Angola actual, retrata também a Angola da vossa infância, sendo que são de gerações distantes? 

[Prodígio] No meu ponto de vista, a “Fome” era um diálogo em que eu e o tio Paulito estávamos a pensar “se a fome fosse uma pessoa, o que diria, o que ia pensar e como se ia sentir?”. E, nesse caso, é uma coisa mundial, um desnivelamento social em que uns têm tanto para outros terem tão pouco. Mas, no meu caso, olhando para Angola, a minha infância foi muito fixe. Os meus “cotas” são humildes, o meu pai é uma pessoa muito feliz, muito dada. Então, quando penso na minha infância, não tenho muitas más recordações. A fome, para mim, vem da minha noção de adulto; é uma coisa de olhar para os outros, de ter um pão, olhar para o lado, e o meu vizinho do lado não ter. Não sei se respondi à tua pergunta… 

[Paulo Flores] No meu caso, é muito actual. Aliás, acho que todo o disco é muito actual, apesar de ter incorporada uma história. No meu tempo de infância, sempre estive dividido entre Lisboa e Luanda; ia para Luanda nas férias grandes. E era o tempo da guerra fria, do partido único. Mas havia uma maior proximidade, partilha, e a educação, a saúde, eram muito melhores. As pessoas eram melhor preparadas. Esta fome, esta infância de hoje, é uma consequência de tudo o que fomos deixando ficar pelo caminho e tudo o que se perdeu. E é algo que hoje não vemos mesmo com a mudança de presidente, que é um investimento na educação, na saúde. Ouvimos falar de corrupção, mas não ouvimos falar daquilo que é mais preocupante. Então, acho que este disco é mesmo o que entendemos da actualidade: a fome gritante que está mais perto das cidades. 

A “Viola” é o tema mais duro do disco. Querem falar um bocadinho de como foi desenvolver uma faixa sobre um assunto tão delicado? 

[Paulo Flores] Para mim, foi, de facto, a mais complicada de fazer, pelo medo de tocar num assunto tão delicado, e de que maneira fazer isso. Fomos construindo – o Prodígio tinha essa ideia da viola, até tinha falado, no início, da própria pessoa tocar viola –, e eu lembrei-me da ideia de pôr o rádio, e de fazer a coisa assim da maneira mais poética possível. É aqui que voltamos ao início da conversa, quando o Prodígio diz que não é música, nem há preocupação com a nossa carreira, a nossa estratégia. É expelir as tuas vísceras, dores, preocupações mais profundas, com as nossas filhas, mães, porque todas essas histórias têm a característica de que, em Angola, tinhas os meninos de rua, mas não tinhas as meninas de rua, que eram absorvidas pelas famílias e chamadas de “sobrinhas”, para ajudar a limpar e outras tarefas. E é muito violento; tinha pudor em fazer esta abordagem, mas é como te digo, foi feita com tanta honestidade que acabámos por ter coragem de a fazer, embora não seja, de facto, fácil de ouvir e absorver. 

[Prodígio] Não foi nada confortável de se fazer, mas nós tínhamos noção que queríamos mesmo ser honestos, porque, na verdade, as músicas, repito, são conversas prévias. O CD só tem duas vozes, a minha e a do tio Paulito, e a “Viola” é tão pesada que tem a voz da filha do tio Paulito, que, para mim, ainda a torna mais pesada, porque não foi planeado. Ficou mais ingénuo e mostrou a própria fragilidade com que tratámos a música, porque se não foi a última, foi das últimas; não estávamos a evitar, mas a deixar para o fim. 

[Paulo Flores] Mas eu acho que a coisa principal nesta, como, por exemplo, na “Fome”, nestas duas, o que mais nos motivou mesmo a conseguir terminá-las foi pensar no que é que as pessoas que têm fome e as meninas que sofrem essa violência vão sentir. Acho que aquilo pode ajudar, pelo menos é o que eu espero. Se há coisa que eu não gosto é tirar fotografias da miséria, mas sinto que os assuntos são para ser discutidos, e na nossa sociedade ainda mais. Então, é uma música que me orgulho ter feito. 

[Prodígio] Eu também. E comecei a ganhar noção quando fizemos uma audição no estúdio, e estava lá uma rapariga que se levantou a meio e saiu. E só depois, no dia seguinte, é que a minha sobrinha me disse que essa miúda tinha sido violada, quando era mais nova. Só o facto de ela ter saído por não ter conseguido ouvir a música… E eu voltei a vê-la no aniversário do NGA, e ela disse-me que era a música favorita dela, mas que só ouve sozinha; não consegue ouvir com outras pessoas, porque tem vergonha, acha que vão olhar para ela. Então, para mim, isso já me faz sentir que valeu a pena. 

A “Esquebra” é um reflexo da capacidade, inerente à cultura africana, de tornar o sofrimento em alegria através, neste caso, da música? 

[Prodígio] Plenamente! Mas agora vê a ironia das coisas: para nós, a “Esquebra” é a faixa mais feliz, que dá para dançar e estar lá em cima. Mas quando fomos fazer o estudo do terreno em Luanda para começarmos as filmagens dos vídeos, mostrámos a faixa à rapariga da produção, e ela começou a chorar! [Risos] 

[Paulo Flores] É a música mais alegre no contexto do nosso álbum, porque não deixa de ter a história da escravidão, da posição do negro no mundo, e de tudo o que está a acontecer hoje em dia, desde o George Floyd a todo esse movimento. E, no fundo, é um pouco essa incapacidade que começa no nosso continente e nas nossas próprias fraquezas. Então, é um bocado aquilo que disseste: celebrar as nossas dores, e ela tem, de facto, essa energia de felicidade, embora o contexto não seja, exactamente, alegre. Aliás, “esquebra” é sobra. Normalmente, quando vais a um mercado em Angola, compras uma coisa que custa, vamos dizer, 100 kwanzas, mas, como não há troco, recebes 10 kwanzas de esquebra. É por isso que o Prodígio, no fim, diz “não importa o que vestimos (…), mesmo que fingirmos, nós continuamos esquebra”, porque não temos um porto seguro. E acho que isso também é uma mensagem que acaba por ser um pouco a cara do álbum. 

Quase nos esquecemos do que se está a falar ao ouvir a faixa… 

[Paulo Flores] Porque ao mesmo tempo acaba por ser a prova de que existes, ou seja, na visão mais profunda do negro no mundo, a escravidão, todo esse legado, o falar sobre isso, acaba por ser com orgulho. Isso é uma coisa boa, um feeling bom que tem o disco.  

Este álbum é dirigido ao povo angolano, como homenagem e partilha de uma história comum, ou tem o propósito de mostrar ao mundo essa história? 

[Prodígio] Os dois! 

[Paulo Flores] Para mim, é mais a primeira que disseste, sem dúvida nenhuma. Porque eu acho que qualquer história que possamos mostrar aos outros, primeiro temos de a mostrar a nós próprios, e acho que essa é a grande virtude do álbum.  

[Prodígio] Sim, é verdade. Eu ia dizer um bocado dos dois, mas não podemos esquecer que este CD acaba por ser uma conversa entre dois angolanos… 

[Paulo Flores] Mas sobre isso! Porque o álbum nasce, exactamente, da nossa preocupação por aquela condição humana neste momento. É isso que acho mais decisivo. 

[Prodígio] É verdade, é verdade… E, às vezes, penso na minha história e na do tio Paulito… A nossa história é uma coisa muito preciosa. E espero que outras pessoas possam também carregar o diálogo, e gostaria de ouvir um bocado mais da perspectiva das outras pessoas dessa nossa conversa.  


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