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Fotografia: Filipa Pinto Machado (para a Filho Único)
Publicado a: 16/09/2022

Com propósito.

Paulino Vieira, o multiplicador de possibilidades

Fotografia: Filipa Pinto Machado (para a Filho Único)
Publicado a: 16/09/2022

Paulino Vieira, histórico compositor, multi-instrumentista e arranjador, é uma figura de tal dimensão em Cabo Verde e na África lusófona que importa deixar aqui uma única ressalva antes de abordarmos a sua obra. Quem (como eu) cresceu principalmente influenciado pelo centro hegemónico cultural (nos últimos 80 anos o Reino Unido-Estados Unidos) tem uma tendência forte para presumir que a fama de um determinado artista é proporcional à dimensão, virtude e influência da sua obra. No entanto, afirmações destas deixam de poder fazer-se entre culturas, ou “blocos culturais”. É verdade que os Beatles foram uma banda de obra e dimensão universal, e os Bulimundo não foram. Mas as razões para tal diferença de reconhecimento internacional devem-se — estou certo de que pelo menos em grande parte — às vantagens que um artista britânico no pós-guerra teve relativamente a um artista cabo-verdiano. As vantagens começam em condições práticas (infra-estruturas, qualidade e quantidade de instituições de apoio às artes e formação, existência de uma indústria de música, etc.) mas têm o maior impulso na posição de cada um destes dois países relativamente ao centro e à periferia culturais. O Reino Unido no centro glorioso da atenção e prestígio cultural, Cabo Verde duplamente periférico porque, para além de ser um arquipélago, surgiu e foi colonizado por um país periférico. O resultado prático desta realidade é que quem só conhece o centro hegemónico cultural não se apercebe da quantidade de artistas de dimensão universal que permanecem relativamente desconhecidos fora dele. Paulino Vieira é certamente um deles, e a lusofonia tem mais algumas grandes figuras que permanecem quase anónimas fora dos seus territórios. No entanto, a obra de Paulino Vieira tem todas as características de de um ícone universal. 

Nascido a 31 de Agosto de 1956 na Aldeia da Praia Branca em São Nicolau, Cabo Verde, Paulino Vieira tem a sua carreira musical marcada por três eixos principais: o seu trabalho como director musical e arranjador de Cesária Évora, o seu trabalho de várias décadas como produtor, arranjador e multi-instrumentista em colaboração com vários músicos e projectos musicais (muitos deles discretos) da diáspora africana e a sua obra musical.

No princípio dos anos 90 em Cabo Verde, poucos anos antes da influência do zouk das Antilhas se tornar preponderante tanto na Praia como em São Vicente, fazia-se uma lenta transição de uma sonoridade que nos anos 80 ainda era maioritariamente instrumental, técnica e de texturas live para um som principalmente digital, programável e, à luz da época, futurista.

Miss Perfumado, álbum de Cesária Évora lançado em 1992, ignorou por completo as últimas tendências que chegavam à ilha. E acabou por ser o ponto de viragem quanto à visibilidade da música cabo-verdiana no mundo. O cancioneiro das ilhas de barlavento sempre foi rico em poesia e em influências musicais de Portugal, Brasil, Argentina, Antilhas e muitos outros lugares longínquos. A elite intelectual e artística de S. Vicente, como consequência da sua génese, foi e permanece hoje cosmopolita no sentido da disponibilidade para entender e absorver outras linguagens e propostas. Paulino Vieira, que na prática fez todas as escolhas artísticas que interessam em Miss Perfumado, sabia da qualidade das composições de artistas da terra que teria como matéria-prima (Cesária Évora era uma intérprete). No entanto, houve várias escolhas relativamente à sonoridade e arranjos do disco que foram decisivas para que este se tornasse tão marcante. Paulino queria valorizar composições locais, mas o grande desafio era o equilíbrio entre tradição e modernidade. Seria suficientemente interessante manter-se fiel aos arranjos e sonoridade dos artistas que interpretava? Que escolhas teria Paulino de fazer para conseguir entrar num mercado de música internacional? Focando-se excessivamente nos hábitos musicais locais, correria o risco de fazer um disco que permaneceria exclusivamente na ilha. Absorvendo demasiadas influências externas da moda e adoptando estruturas musicais à la world music diluiria o disco num oceano de propostas parecidas, sem conseguir fazer valer a riqueza musical única que tem a ilha de S. Vicente (e não só), e perdendo a oportunidade de afirmar a cultura musical cabo-verdiana, tão pronta para fazer a diferença.

Paulino inovou tremendamente, mas com propósito. Não inovou com o propósito de inovar, mas com objectivos concretos em cada caso. No tema “Angola”, de Ramiro Mendes, Paulino queria incluir a cadência rítmica angolana, sem no entanto transformá-lo num tema de dança. Ao substituir um elemento de bateria por um compasso de palmas (equalizado de forma a que o som se assemelhe a um elemento de bateria), Paulino garantiu de uma assentada o ritmo angolano mas acrescentou-lhe espontaneidade e textura. Ao todo, no seguimento do trabalho que Paulino já tinha feito com vários artistas da diáspora africana na década de 80, o elemento que Paulino trouxe a Miss Perfumado foi não só génio e talento (que lhe eram naturais), mas cosmopolitismo. 



A influência da direcção musical de Paulino na sonoridade de Cesária é porventura a história que mais gente reconhece. No entanto, foram às centenas as colaborações que Paulino manteve, principalmente durante a década de 80 e em grande parte a partir de Lisboa, com vários artistas da diáspora cabo-verdiana que o tornaram no artista com mais influência na época mais rica da música cabo-verdiana. 

Depois da independência de Cabo Verde em 5 de Julho de 1975, seguiu-se a chamada “reconstrução”, que consistiu numa convocação emocionada dos cabo-verdianos espalhados pelo mundo para que viessem participar na construção de um novo país. Foi feito um apelo para que os filhos da terra voltassem para que, juntos, trabalhassem na construção de melhores socalcos para agricultura, escolas, estradas, na formação de pessoas para os serviços públicos, e para uma grande quantidade de funções fundamentais para o funcionamento de uma democracia. Essa visão eufórica do pós-independência teve, como seria de esperar, um grande impacto cultural. Nas cidades principais da diáspora cabo-verdiana (Lisboa, Paris, Roterdão, Boston), uma grande quantidade de artistas, a viver longe da terra, queria, com melhores ou piores argumentos, gravar um disco que carregasse os valores de uma nova era. Uma era com futuro, com esperança. E com novas influências. Em Lisboa foram gravados, entre o 25 de Abril e o fim dos anos 80, centenas de discos entre as editoras Iefe Discos, a Electromóvel, a Musicorde, a Valentim de Carvalho e algumas outras. Paulino Vieira, embora tivesse um entendimento completo, uno e cosmopolita da música negra na sua plenitude e em vários continentes, sempre foi um estudioso da música de Cabo Verde em todas as suas expressões e influências. Ao longo da sua carreira, sempre soube entender a complexidade rítmica, melódica e harmónica como património, como ponto de partida, de identidade, de saber e de futuro. É desta falsa ambiguidade que nasceram as condições para a revolução que haveria de acontecer na música de Cabo Verde. Por um lado, o seu berço num contexto musicalmente rico mas local, por outro o seu entendimento profundo da contemporaneidade musical. 

Paulino, profundamente ligado a todas as vertentes da música da diáspora africana a partir de Lisboa na década de 80, era pelo seu brilhantismo um director musical natural, que tomava conta dos projectos sem que o tivesse de pedir. Por outro lado, havia milhares de artistas na diáspora que, querendo gravar um disco, não tinham contactos, conhecimento da indústria musical, nem muitas vezes forma de conseguir formar uma banda. Estas condições, juntas, davam a Paulino um poder absoluto sobre a direcção artística das obras. Na grande maioria das dezenas de discos em que Paulino participou, para além de director musical, era também arranjador e multi-instrumentista, frequentemente tocando quatro ou cinco instrumentos. 

Alguns dos artistas com quem Paulino colaborou tinham características únicas, mas não tinham espaço numa indústria discográfica conservadora. Bons exemplos eram António Sanches e João Cirilo. Sanches, dono de uma voz entre o poder estonteante e a loucura, era uma figura pouco convencional. Natural da ilha de Santiago, cantava um funaná e batuco que embora trouxessem tradição e profundidade, tinham também, pela sua liberdade e postura, uma forte contemporaneidade e extravagância. Cirilo, embora menos extravagante, era um compositor “finkadu na raíz” e com um tom de voz rouco mas sereno. Paulino foi o director musical, arranjador e (multi-)instrumentista de ambos os artistas, com quem produziu Pó D’Terra (1982) com o segundo e Buli Povo! (1984) com o primeiro.

O single do álbum Pó D’Terra é um exemplo magistral de como Paulino manteve as bases do funaná, mas o fez disparar para outra galáxia mantendo os elementos originais da tradição mas substituindo instrumentos, criando tensão e transformando o funaná em música futurista. Bulipovo! é também uma criação de outro mundo, embora transporte, ao longo de todo o disco, as raízes da tradição. “Pinta Manta, um batuco acompanhado por um sintetizador a fazer lembrar os Kraftwerk, estica os limites do que se pode fazer com os ritmos tradicionais. Mas nem só de surpresa e experimentalismo vive Paulino. O EP Bem Gosin com Dany Carvalho é puro groove sem grandes pretensões estéticas, com destaque para “Pon Na Mó” como exemplo para o que poderia ter sido, num mundo paralelo, um single numa Motown cabo-verdiana. 



A lista de artistas com quem Paulino trabalhou é infindável. Desde colaborações com artistas consagrados como Blyk Tchutchi, Frank de Pina ou Dionísio Maio, até outros com menos potencial, que representavam para Paulino oportunidades para testar os limites e encontrar novos caminhos. 

À medida que Paulino Vieira ao longo dos anos 80 ia assumindo a direcção musical de tantos projectos, foi aumentando a sua influência ao ponto de se tornar um ponto gravitacional ao redor do qual a música moderna de Cabo Verde girava. Ele acabou por impor, sem planear, um carácter quase pessoal à evolução da música de Cabo Verde. 

A obra de Paulino em nome próprio constitui uma minoria pequena do seu trabalho total. No entanto, pode ajudar-nos a identificar o que ele queria realmente trazer à música enquanto processo criativo próprio (ao invés da participação de projectos de outros artistas). O disco M’Cria Ser Poeta (1984) permanece uma luz de inspiração, risco, poesia e uma forma de homenagear as suas origens entre a nostalgia e a descoberta. Para ele, o processo de evolução musical é contínuo e não aceita blasfémias, porque a música está em constante mutação ao longo do tempo. Aquilo a que chamamos música tradicional já foi, em tempos, provocação e risco. Em 1990, dois anos antes do lançamento de Miss Perfumado, saiu o disco Paz, Amor e União, um projecto colaborativo com vários artistas consagrados e dirigido por Paulino. Todos os sinais do que estava para se revelar ao mundo estavam lá. A clareza do que é importante e característico na música do barlavento cabo-verdiano, o lento arrastar do groove, o sentimento, a aceitação da simplicidade se nada mais fizer falta. 

Paulino Vieira, ao contrário de outras grande figuras musicais globais, não deve a sua importância unicamente à sua obra em nome próprio. Emprestou a sua visão à vasta diversidade musical cabo-verdiana para lhe acrescentar mundo e é daí principalmente que vem a sua grandeza. É essa generosidade e versatilidade que o torna não só numa figura directamente influente (por ter trabalhado directamente com centenas de músicos), como numa personalidade que abdicou de uma carreira musical solitária para espalhar abertura, coragem, risco e reconhecimento universal à música da sua terra que fez crescer e se tornou património de um mundo que lhe agradece. 

A 20 de Fevereiro do próximo ano, o mestre actua no Grande Auditório do CCB (Centro Cultural de Belém), um concerto que se inclui na celebração do 10º aniversário da Ao Sul do Mundo.


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