O Atlântico de Paula Morelenbaum, uma quase veterana da bossa nova, é mar que se arrasta por léguas. Gentil e benigno, não renega os instintos mais dóceis da invenção perene de João Gilberto — o que em nada refuta a inclinação progressiva da sua “levada”.
De 1984 a 1994, a voz carioca de Morelenbaum fez estrada com a Banda Nova de Tom Jobim — onde constava igualmente o marido e famigerado arranjador Jaques Morelenbaum. Todavia, não foi a sua introdução aos palcos: a culpa recua até 1979, data da formação do grupo vocal Céu da Boca, a primeira pedra no monumento bossanovista que se edificou a sua carreira.
Morelenbaum poderia ceder à sofreguidão natural pelas iterações canónicas, mais seguras desse som-assinatura — o que seria a contramão do seu percurso recente, que a encontra numa bifurcação entre a pré-história e o futuro da bossa nova. A solo, no disco Telecoteco (2010), vidrou-se nas suas raízes mais rasteiras. Em conjunto com o trompetista Joo Kraus e o pianista Ralf Schmid, consolidou um trio cujo nome fala por si: Bossarenova, que começou por ser o título dum disco comemorativo dos 50 anos do género, gravado com a SWR Big Band (da cidade alemã de Stuttgart).
Atlântico é o projecto que sucede a Samba Prelúdio, estreia discográfica do trio, e que motiva o seu regresso a Portugal. Modernizando temas de Edu Lobo, João Donato e outras pedras-de-toque, o trio actua hoje na Casa da Música, no Porto, depois de concertos em Coimbra e Ponte de Lima.
Em telefonema com o Rimas e Batidas, Morelenbaum faz o estado da arte da bossa nova, discute a amizade com Ryuichi Sakamoto e Marcos Valle, e promete uma data em Lisboa para breve.
Quanto é que a Paula conhece de Portugal?
Olha, eu conheço muitas cidades de Portugal, porque já estive aqui algumas, algumas digressões, mas eu não me lembro assim um nome para te falar. Mas é uma lista grande que eu posso garantir a você! [risos] Entendeu? Já passei por várias cidades. Depois, uma vez, tive oportunidade de estar de férias também no Algarve, aí fiquei em Lagos, e eu adoro Portugal. Portugal é muito lindo, no Inverno é lindo, no Verão é lindo. É uma maravilha estar aqui, realmente é sempre um grande prazer.
É bom ouvir isso, e fica sugerido pela lista de concertos que vai ter agora para apresentar o Atlântico. Levar um concerto ao Norte do país é comum, ir até ao Centro não chega a ser invulgar, mas saltar Lisboa é quase impensável.
[Risos] Não, na verdade, nós queremos fazer Lisboa. Por questões de datas, enfim, não conseguimos fazer. Mas estamos com a possibilidade de fazer ainda esse ano, queremos voltar, porque eu vou ter uma segunda digressão esse ano aqui na Europa, e nós queremos incluir Lisboa nessa segunda vinda, sabe? Mas, é assim, até agora não temos uma data, mas estamos trabalhando muito para isso, que é do nosso total interesse, né? [risos]
Vamos receber com braços abertos. A Paula já começou a testar o repertório deste Atlântico há algum tempo, antes de começar esta digressão. Como é que foi essa primeira-
Olha, não, na verdade, nós começámos a digressão aqui em Portugal. Foi o primeiro show que nós fizemos foi em Coimbra, dessa digressão. Depois de Coimbra, fomos para Alemanha, fizemos alguns concertos na Alemanha, íamos para Milão para fazer o Blue Note, mas infelizmente tivemos que cancelar, porque está aquele grande problema acontecendo lá. Não deu para a gente ir. Mas começámos em Portugal e estamos terminando também agora aqui em Portugal essa primeira parte de digressão.
Penso que tinha lido era que, mesmo antes da digressão, já tinham começado a testar algumas canções.
Na verdade, nós fizemos alguns shows no ano passado, mas não era esse show de lançamento. Era um show que a gente estava experimentando essas músicas, porque a gente tinha acabado de fazer o disco. Então, misturámos o repertório desse novo disco Atlântico, com o repertório do disco antigo, que se chama Samba Prelúdio; fizemos ano passado. Mas não foi esse show, esse é o show mesmo de lançamento, a gente está considerando o lançamento agora, inclusive só saiu o disco físico agora, digital já tinha saído ano passado, mas o físico só saiu agora, então nós estamos considerando o lançamento mesmo a partir de 2020. 2020 é o ano agora do lançamento e começou agora em Portugal essa primeira digressão.
O Samba Prelúdio foi o segundo projecto debaixo da chancela Bossarenova, que nasceu em 2010. Como é que se decidiram, depois do começo com uma big band, num trio?
O trio começou a partir do projecto com a SRW Big Band de Stuttgart; foi assim que nós nos conhecemos, né? A partir desse projecto, nós começámos a fazer esses shows que acabaram no Samba Prelúdio e agora fizemos esse segundo disco. Na verdade, esse encontro da Paula com o Joo Kraus e com o Ralf Schmid nasceu duma big band de 24 músicos. Dessa big band passámos para um trio, entendeu? [risos] Ontem também me perguntaram isso: “a bossa nova se assemelha mais ao projecto com a big band ou ao projecto com o trio?” e eu disse que se assemelha ao [segundo], porque a bossa nova por si só é uma música mais intimista. Eu acho que o nosso trio tem esse lado intimista também, apesar de que tem toda uma modernidade, um conceito moderno da bossa nova e de músicas que, por exemplo, também não são da bossa nova, porque o Atlântico, esse disco novo, já não é um disco de bossa nova, é um disco de músicos, de compositores de uma segunda geração, que vieram depois de Tom Jobim e João Gilberto e Carlos Mira. Na segunda geração, a gente tem Edu Lobo, Ivan Liz, Marcos Valle, é [o] que nós estamos tocando. Também diferentemente, porque quando eles mesmo gravaram essas músicas, era um outro espírito, né? Agora, a gente faz a música com esse espírito do século XXI, com todas essas possibilidades que nós temos. E, além disso, misturando também a cultura da bossa nova e da música brasileira com a cultura europeia, né? São os dois músicos que trazem esse lado, que é muito importante, a meu entender.
Os artistas que a Paula mencionou parecem vir duma rede bastante alargada de amigos — que é o que sugere ser esse mundo da bossa nova. São tudo artistas, desde o Marcos Valle e o Edu Lobo até à Paula, que continuam igualmente animados na produção de nova música e digressões há muitos anos. O sangue da bossa nova é incansável?
[Risos] Olha, sabe porquê? É que a bossa nova é um estilo musical que vai existir para sempre — pelo menos é o desejo que eu tenho. É como o jazz, como o samba, como o fado: são os estilos de música que ficarão para a eternidade. Obviamente mudando, né, porque tem a música clássica — tem o Chopin lá na sua época, Debussy, todo esse pessoal — mas tem também a interpretação que a gente dá desses clássicos, né? E a música se transforma. A música não fica parada.
E a bossa nova também foi um ritmo que conseguiu viajar para todo o mundo, para alcançar essa facilidade de renovação.
Exactamente. A bossa nova tem isso, porque é um ritmo cultuado internacionalmente, inclusive por músicos famosíssimos do jazz, que também ajudaram a aumentar a fama da bossa nova no mundo, sem dúvida nenhuma. A gravação de Frank Sinatra de “Garota de Ipanema” e Stan Getz, tudo isso ajudou muito que a bossa nova saísse de Ipanema para o mundo.
A sua carreira parece ter reproduzido esse itinerário; fica um pouco incompleta sem ter um mapa-mundo ao lado.
[Risos] Completamente, completamente!
A Paula imaginava ter feito uma carreira somente no Brasil?
Olha, eu tenho uma carreira que, claro, começou no Brasil. Mas desde que eu comecei a cantar com o Tom Jobim — que foi, na verdade, o início da minha carreira profissional — eu tive um grupo vocal antes. A gente ficava muito ali no âmbito do Brasil, até conhecemos bastante [do país], porque existia na época um projecto muito bom que chamava Pixinguinha, que é o nome daquele compositor famoso de chorinho. Esse projecto levava artistas para Brasil inteiro, sabe? Então, eu conheci desde Manaus até ao Rio Grande do Sul; fui de Norte a Sul com os colegas da minha geração. Depois, eu fui convidada pelo Tom Jobim para entrar na banda dele e, a partir daí, eu conheci o mundo todo. Com o Tom Jobim, eu conheci o mundo todo, e viajámos muito, muito mesmo. Fui conhecer o Japão pela primeira vez, entende? Foi maravilhoso. De lá para cá, isso tem acontecido: tenho-me reunido com músicos que não são brasileiros, como esse grande projecto que eu fiz com o Ryuichi Sakamoto, com o Jaques Morelenbaum. Também foi muito importante para a minha carreira, para a carreira do Jaques também, porque também nos levou para o show business do mundo. Enfim, a partir daí, não tem mais volta. As pessoas nos convidam, a gente vai. Eu tenho feito show, tenho gravado também, e tenho-me reunido com músicos estrangeiros, que, para mim, eu acho importantíssimo nesse momento, sabe? Porque eu acho que a música precisa de se renovar. Se a gente está fazendo um ritmo que já existe desde os anos 60, a gente tem que mostrar ele renovado, senão, você vai pegar um disco da Sylvia Telles cantando uma música e “porque é que eu vou ouvir Paula Morelenbaum se consigo ouvir Sylvia Telles cantando?” [risos] Então, a gente tem que renovar e dar uma cara nova para essas músicas, entendeu?
Se calhar é também por causa dessa renovação contínua que procura novos artistas e sons, em vez de dar continuação ao projecto com o Sakamoto — apesar de ser um pedido de muitas famílias.
Não, eu adoraria encontrar de novo — inclusive, nós tivemos um retorno assim fantástico depois de muitos anos sem tocar. Foi na inauguração de uma casa que chama Japan House, em São Paulo, que é uma casa de cultura japonesa. Você sabe que, lá em São Paulo, tem a maior emigração [japonesa]? É um negócio impressionante como tem japonês. Então, nós fomos convidados para fazer a inauguração dessa Japan House com o Sakamoto, e um grande teatro que tem lá em São Paulo, que chama Ibirapuera, e nós fomos falar, e foi uma das coisas mais lindas do mundo. Fizemos dois shows, depois desses anos todos, um show ao ar livre, com um público de 20 mil pessoas, e um show fechado dentro do teatro logo em seguida. Foi um reencontro que nós fizemos, que foi maravilhoso, entendeu?
E poderá traduzir-se ainda para novo material em conjunto?
Olha, eu acho que existe sempre a possibilidade de tudo, né? A princípio, a gente não está com nada combinado disso, mas a gente tem muitos convites para essa reunião acontecer, constantemente. O que mais acontece agora é que o Ryuichi é muito ocupado, ele é um compositor de trilha sonora também, e tem-se dedicado muito a isso, mais até do que fazer concertos, entende? Então, assim, nesse momento, não há nenhuma perspectiva de fazer um concerto com ele. Mas como a vida sempre nos apresenta surpresas, não duvido que algum dia a gente se vá encontrar novamente.
No horizonte da Paula, pelo menos, já começa a coalescer um disco a solo com novas bossas novas.
Sim, sim, sim. Esse já é um projecto, na verdade, que já está acontecendo para mim há muito tempo. Só que eu não estou conseguindo fazê-lo, porque sempre vem um outro projecto na frente, mais fácil de fazer e eu faço [risos]. Agora, esse projecto da nova bossa nova eu acho importantíssimo, até por tudo que eu falei para você de considerar que a música também tem que se transformar. Mas também com novas composições, da mesma forma que eu percebo isso no jazz: se você for comparar o jazz de 50 com o jazz de agora, é muito diferente, mas é jazz. O próprio samba também dá uma renovação hoje em dia: já temos pagode, tem vários tipos de samba. A bossa nova precisa disso. Precisa ter novas composições e nós temos compositores bacanas: tem Celso Fonseca, o Moreno Veloso também está fazendo músicas lindas, temos algumas pessoas que têm um pouco dessa verve bossanovista, e acho muito importante. É essa a minha ideia do meu próximo projecto: é pegar esses compositores com novas músicas, novas bossas novas.
É engraçado que a Paula tenha dito que você prefere, ou antecipa os projectos que são mais fáceis. Estava a ler uma entrevista sua sobre o Atlântico e disse que os arranjos são muito interessantes, porque são do três do grupo — até de si, que diz que não escreve música, mas dá os seus palpites.
Bastantes palpites! [risos]
Como comunicam no estúdio, por que linguagem? Como se dá essa facilidade?
Olha, é uma coisa muito orgânica. Nós, na verdade, temos uma química muito legal, por isso que a gente existe há esses anos todos. Eu não sei te falar quando a gente fez exactamente esse projecto com a Big Band, mas até em, sei lá, 2012 talvez, a gente, de lá para cá, tem-se visto todos os anos, a gente tem feito muitas coisas. Quando a gente pensou nesse projecto novo, que era para não ficar totalmente na bossa nova, mas também ir para uma música [posterior], de uma outra geração. Geralmente, eu é que sugiro o repertório, claro — se se trata de música brasileira, eu sempre sugiro e mando possibilidades de coisas que eu penso para eles. Eles então dão as opiniões deles, o que eles acham mais bacana, e a gente se encontra, porque eles estão sempre na Europa fazendo alguma coisa. Quando a gente tem um projecto desses, a gente se organiza para fazer música. Antes de ter uma digressão, vamos pegar uns dias antes, vamos começar a tocar e ensaiar essas músicas, e criar. É daí, dessa reunião, que a gente consegue fazer esses projectos, entende? Nós estamos sempre juntos, mas nos organizamos para estar juntos, poder criar. E fazemos juntos, a música não é feita assim cada um no seu lugar. A gente está fazendo quando a gente se encontra mesmo, entendeu?
Aquilo que vocês criam em estúdio, essa magia, é o que tentam replicar em palco?
Exactamente! Na verdade, dessa vez, a gente está fazendo bem a cara mesmo do que a gente fez [no estúdio], porque somos três. Às vezes, a gente tem alguns músicos que tocam com a gente: percussão, principalmente; no disco, tem baixista convidado e tudo. Mas quando nós começámos, era só nós três: eu tocando percussão e cantando, e eles nos pianos e teclados, com muitos efeitos electrónicos. O Joo, que toca trompete, tem montes de pedal e ele usa muitas coisas, delays e tudo. Quando a gente grava, a gente já grava pensando mesmo que quer fazer uma música exactamente igual no palco. Não queremos ter uma sonoridade de disco diferente daquilo que a gente vai mostrar no palco e seria estranha, não sei.
O Marcos Valle, com quem tive o prazer de falar em 2019, lançou recentemente o Cinzento. A Paula ouviu o álbum?
Sim, ouvi o disco. Adoro! Eu estou sempre com o Marcos Valle, eu tenho sempre cantado muito com ele. Estive agora, em Novembro passado, em Nova Iorque, fazendo show lá no Birdland com ele. Somos muito amigos, eu adoro o Marcos Valle.
Esse disco parece ter um ângulo mais político.
Totalmente, ele levou para esse lado mesmo, e além de ser um lado político nas letras, é político e, ao mesmo tempo, é uma coisa assim mais pop. Ele sai bastante da onda da bossa nova nesse disco, porque também tem essa verve pop há muito tempo. Tem muito tempo que tocam remixes das músicas dele em Londres, nas discotecas da Europa e dos Estados Unidos. Ele gosta muito da bossa nova, mas também gosta dessa verve pop. Então, nesse disco, ele juntou as duas coisas, entendeu? Não é aquele disco colorido, de rosas, sol e mar, tipo o “Samba de Verão” dele. É uma outra coisa, é um negócio mais agressivo, mais com tudo. [risos]
O Atlântico é um álbum bastante suave, é um álbum também escapista. Se o Cinzento é mais abertamente político, questiono-me se o Atlântico também foi pensado numa lógica escapista, para lá do Brasil conturbado.
É, o Brasil está complicadíssimo, mas, na verdade, a música transcende isso, na minha opinião — e qualquer tipo de arte. Claro que a gente tem que mostrar na nossa arte o momento do mundo, do nosso país. Eu acho que, como eu disse a você, fazendo a música mais moderna do que ela é quando foi gravada já é uma forma. Mas a gente não fez nenhuma música de protesto nem nada. O que eu sinto mais, por exemplo, nós pegamos mais coisas assim que falam dos negros, dos escravos, sabe, de histórias que durante muitos anos foram escondidas e não se interessava falar. “Vento Bravo” do Edu Lobo é uma música lindíssima, que fala exactamente [disso] e que, por coincidência, tem a ver com Portugal e com os portugueses no Brasil, e os escravos. Essa música dá um tom mais político — e social, porque a história, isso aconteceu e acontece ainda, de certa forma, né? O racismo existe ainda. Então, acho que essa seria a música mais política de todo o repertório, e a gente tem, e não veio à toa, entendeu? [risos]