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parker

como foguetes entre estrelas

Edição de autor / 2023

Texto de Leonardo Pereira

Publicado a: 28/02/2023

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As experiências musicais em que a pureza na abordagem da criação concreta e física da arte resvala, tornando-as em algo muito maior do que era planeado, ou do que era a sua intenção original, parecem conter algo que transforma a sua essência. Talvez porque chegam mais proximamente a uma ideologia em que a arte pode ser feita simplesmente para ser arte, porque instrui, educa e enriquece a vida humana, porque é uma extensão natural do ser humano e da sua obrigação à auto-expressão, longe dos contornos maquiavélicos de algo como “a indústria musical” e seus derivados. Estes esforços artísticos merecem apreço especial – a arte, quando criada pelo prazer de criar arte, consegue ser um veículo exímio para essa auto-expressão.

como foguetes entre estrelas é o terceiro longa-duração de parker, poeta e beatmaker margem-sulista, e chegou-nos menos de um mês depois de 2023 raiar. E vem com uma mensagem na sua primeira faixa que ressoa pelo resto do álbum, e pelo resto da nossa perceção do rapper: “trust me, eu não estava aqui se não fosse por esta shit” – e é este o slogan que se liga ao primeiro parágrafo, preparando a cena para um conjunto de faixas de puro amor ao hip-hop. 

As rimas chegam-nos por vezes fora do beat ou tropeçando na percussão, mas o conteúdo delas quase que justifica esta escolha – cuspidas do coração, contam histórias da vida pessoal, recheadas de punchlines inteligentes, onde o olhar sobre a evolução individual tanto na música como no emocional parece maturo e ciente de que há muitos caminhos por onde crescer, sejam eles na sua viagem musical ou no seu quotidiano. Sente-se uma recusa total a desistir e daí brota uma infindável vontade de fazer um impacto nas caminhadas dos que o ouvem. Da mesma maneira que olha para dentro em jeito de instrospeção, também sabe olhar para fora e não ter vergonha de se engrandecer quando é necessário, seguindo a tradição do género e sabendo que quando o flow é impecável, dá-se à liberdade do braggadocious para a sua lírica e esticando-se até à conquista da parceira, envolto numa certeza que contrasta, com beleza, a dúvida que vai permeando as faixas mais refletivas do disco. O estado de espírito é eclético e vai pintando paisagens bem diferentes ao longo da duração do álbum, captando a atenção do ouvinte de modos diferentes e oferecendo uma variedade de climas: um pôr-do-sol relaxado (“dois mil e…”) , uma vaidosa noite de festa (“cada bala”), um “chill” com os rapazes (“tango”) ou um daqueles dias em que a nostalgia se eleva sobre tudo (“como aqui cheguei”).

Esta rota paisagística é instrumentada por uma montra do que parece ser uma nova geração de ouro de produtores portugueses: tanto o próprio parker cria ambiências para ele próprio, como narra por cima de beats de bedhop, DoisPês, slowlevitation e si!va, que exploram o boom bap clássico, enveredando por caminhos soulful, usando e abusando de um trabalho de samplagem notável, muitas vezes com os próprios cuts a serem o primeiro plano do instrumental, deformados até se encaixarem perfeitamente nos sopros jazz e nas harmonias descontraídas. Afastam-se os graves possantes e melodias mais intensas para uma aproximação a um head bob hipnótico, aproveitando todos os detalhes em cada textura.

como foguetes entre estrelas é um trabalho de amor (um labour of love), tanto pelo hip-hop, como pela cultura, ou até ainda, talvez mais filosoficamente, pela persistente esperança no futuro que o ser humano consegue guardar para si próprio. E nota-se isso no álbum inteiro, sejam esses detalhes uma inflexão no tom, um chop no sample, uma referência à NBA e a Pusha T, ou um atravessar a estrada do beat sem ter muitas preocupações com o seu início ou o seu final.


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