Na rubrica Outros espaços são lugar vamos dando a conhecer salas menos comuns, onde a razão maior é procurar outra forma de programar, pensar e divulgar a música. Tudo isso no discurso directo por quem proporciona essa existência. Tentando revelar as motivações, as ousadias e, no fundo, amplificar as palavras que chamam à música.
A Associação Cultural OSSO é um colectivo formalizado em 2012 e dedicado à criação e ao apoio de projectos artísticos transversais a várias áreas, mas onde a música de pendor experimental tem um especial relevo. Após, nos primeiros anos, ter estado na Fundição de Oeiras e depois na sede da Trienal de Arquitectura de Lisboa, em 2018 a OSSO passou a ter uma casa própria. O espaço situado na aldeia de São Gregório (Caldas da Rainha) inaugurou então um programa de residências artísticas ao longo do ano. Nesse local de acolhimento e criação, entre artistas associados e outros selecionados têm-se desenvolvido grupos, projectos e ideias que a OSSO tem apoiado. Neste ano de 2025, a associação promove e executa um programa concentrado de dias abertos, de 18 a 27 de Julho, denominado ARCA. Ricardo Jacinto violoncelista e compositor destacado em formações como The Selva e MEDUSA Unit é membro fundador e o director artístico da OSSO, concedeu-nos uma entrevista a propósito de ARCA.
Vamos querer saber mais sobre esta ideia contida em ARCA. Um programa feito de concertos, exposições, projecções de filmes, conversas e oficinas para adultos. Qual é o propósito?
A ARCA surge pela primeira vez este ano e configura uma alteração ao nosso programa de Dias Abertos. Entre 2018 e 2024, os Dias Abertos na OSSO foram-se distribuindo ao longo do ano, associados ao final de ciclos de residências artísticas. Este ano, pensámos que seria interessante testar um modelo mais condensado na segunda quinzena de Julho, em que durante uma semana a OSSO e outros espaços na aldeia são palco para revelarmos alguns dos projectos que estiveram em residência artística no nosso espaço ou noutros que considerámos serem interessantes trazer para partilhar com o nosso público. A diversidade de formatos de apresentação está directamente ligada às múltiplas abordagens dos artistas que por aqui passam ou que estão associados ao colectivo. No fundo, temos a convicção de que a ARCA irá passar a ser o momento anual mais especial e comunitário, aberto a público de todas as idades, de partilha de algum do trabalho de pesquisa artística que aqui é desenvolvido.
Depois dessa existência de modelo de dias abertos ocasionais durante o ano, o que melhor se espera com este modelo reformulado de mostra cultural? Isto sobretudo em relação à apresentação das residências artísticas da OSSO?
Muitas vezes, a apresentação informal dos projectos em residência, no final da sua estadia, pode ser interessante tanto para os artistas como para o público, na medida em que ambos partilham um momento ainda transitório dos processos de criação artística. Mas também é verdade que a natureza informal dos Dias Abertos que a OSSO tem promovido permite que esta partilha possa manter esse carácter transitório, inacabado, processual, sem que aconteçam numa contiguidade absoluta com os períodos de residência artística. Nalguns casos funcionava bem, noutros era uma pressão desnecessária. Optámos por afastar todas as apresentações dos períodos de residência e, nessa medida, dar aos artistas e colectivos tempo de maturação para, caso fizesse sentido, voltarem à aldeia de São Gregório e partilharem os seus projectos.
Tanto quanto o programa em curso permite saber, há nomes e actividades que estão fora dessas residências artísticas. São expressões e nomes que pretendem vir a encontrar no espaço da OSSO, um convite a estarem mais por perto, a ligarem-se? Qual o critério seguido nessas outras escolhas?
Absolutamente. Do mesmo modo que alguns dos artistas e projectos que cá estiveram em residência (Alfredo Costa Monteiro, Luís José Martins, Marta Zapparoli e Alberto Lopes) ou que colaboraram ao longo dos últimos anos connosco (Raquel Lima e o Yaw Tembe, ou António Pedro) voltam a visitar-nos, também as pessoas que convidamos e recebemos pela primeira vez desejamos que voltem (Joana Gama). Imaginamos que possam vir a envolver-se não só nas residências artísticas mas também, por exemplo, no nosso programa da Escola dos Labirintos, as oficinas para crianças.
O paradigma parece ir mudando para quem programa cultura em espaços rurais. Actualmente há mais vontade de envolver a comunidade residente. Aquele efeito de umas gentes urbanas que durante uns dias alteram o sossego de uma aldeia parece ir co-habitando com a comunidade local. Como tem sido a experiência e a relação com a aldeia de São Gregório?
A nossa proposta dos dias abertos, sejam distribuídos ao longo do ano ou neste formato mais condensado em Julho, não é comparável ao formato dos festivais. Dificilmente iremos atrair as gentes urbanas à procura da experiência bucólica de Verão. A OSSO é uma pequena estrutura de apoio à criação, investigação e educação artística, e o seu programa de acolhimento é principalmente focado numa ideia de hospitalidade contínua, tanto para os que nos visitam de outras geografias como para as pessoas que são nossas vizinhas. A OSSO é um lugar de encontro para muita gente, construído diariamente, que promove acima de tudo a proximidade e o entrosamento afectivo, demorado, tendencialmente em grupos pequenos, fruto do encontro entre os que aqui habitam e os que nos vão visitando ao longo do ano. Os Dias Abertos são momentos onde podemos juntar um pouco mais de pessoas, mas estamos sempre a falar na ordem das dezenas. Não temos escala para muito mais, nem julgo que esse tipo de pressão demográfica momentânea possa ser estruturalmente frutuosa para estes lugares mais periféricos. Esta é um pouco a base da nossa forma de estar e de pensar a partilha do trabalho que fazemos com a comunidade mais local.
Há estratégias que conduzem melhor a essa efectiva partilha. A utilização de produtos vindos da economia local para as actividades, como o caso da culinária, acaba por fazer um convite a outras partilhas das gentes da aldeia?
Desde que a OSSO decidiu ter a sua casa na aldeia de São Gregório que temos tido uma atenção especial a essas dinâmicas. Especialmente nos dias abertos, o Hugo Brito (chef do antigo Boi-Cavalo) tem cozinhado sob os preceitos da sazonalidade e da localidade dos produtos e ingredientes utilizados. Ao longo destes anos, vários foram os momentos em que as ideias do Hugo tiveram o apoio de vizinhos produtores, que se foram juntando e partilhando ideias para integrarem as suas saborosas iguarias. Este ano teremos também o projecto Grão-a-Grão, da Ana Varela e a Laura Figueiras, que partilha dos mesmos preceitos, com uma abordagem à culinária que prioriza uma alimentação responsável, sazonal, local e comprometida com o desperdício zero.
As instalações da OSSO serão amplamente utilizadas e situam-se já na malha da aldeia. No entanto, há uma ideia de utilizar outros espaços da própria comunidade fora das instalações da associação. Também passa por isso a vontade de contar com os habitantes neste ARCA?
A OSSO preparou o seu espaço para acolher este conjunto de eventos e, à semelhança de outros momentos em que a casa é tomada integralmente por uma grande actividade, a ARCA não será diferente. Preparámos com muita dedicação o espaço para acolher os vários projectos deste ano e estamos sempre a imaginar novas soluções para potenciar a sua experiência. Na aldeia, continuamos a ter a possibilidade de usar o Salão comunitário, como o fazem muitas outras pessoas e projectos locais. No salão vamos ter uma primeira apresentação pública do projecto “Partes.Extra.Partes”, um instalação-concerto do Luís José Martins que “investiga as relações extrativistas e coloniais na construção de instrumentos ocidentais”, lado a lado com a exposição de alguns dos projetos de fotografia, cinema documental e artes sonoras desenvolvidos nas várias residências de investigação que o MASI (mestrado em artes do som e imagem da ESAD.CR) tem realizado na OSSO deste 2022. Este ano estendemos também os nossos espaços fora de portas a um armazém de fruta que encerrou a sua actividade enquanto tal e que, neste caso, será palco para uma apresentação do ensemble de vozes LEIDA, dirigido pela Mariana Dionísio, colaboradora também em projectos musicais da OSSO e que aqui esteve em residência em nome próprio. No primeiro sábado também apresentámos o Coro Social do Bairro, um projecto das Caldas da Rainha dedicado à reinterpretação do cancioneiro tradicional e de intervenção, que fez uma caminhada musical entre o Salão da aldeia e a OSSO.
Do programa vão ainda ter lugar duas oficinas para adultos. E sobre dois temas de grande importância e que se ligam em muito. Parecem ir de encontro a lacunas no panorama da música improvisada e da forma como melhor se pode escrever sobre isso também. Como estão as inscrições a decorrer e o que se pode esperar depois disso acontecer? Esperando haver quem mais venha a actuar nesses campos?
A OSSO tem um programa de Oficinas para Crianças muito intenso ao longo do ano. Praticamente todas as sextas feiras temos a nossa Oficina Aberta para os mais novos e, uma vez por mês, convidamos artistas de diferentes zonas do fazer artístico mais experimental para estarem com os miúdos da escola primária da aldeia e outras da região a desenvolver uma actividade oficinal. Este programa tem sido central para a OSSO. Dedicamos-lhe muita atenção e estimamos muito a presença das crianças no nosso espaço, cruzando-as sempre que possível com os artistas que nos vão visitando. Sentimos que as famílias ou outros adultos, estudantes das Caldas da Rainha, têm sempre muito interesse nos temas das oficinas manifestando vontade de participar. Decidimos por isso testar um programa oficinal aberto a este público no contexto da ARCA. Temos 10 vagas por oficina. Vamos ver como corre! Quanto ao tema geral destas duas oficinas, fazia sentido focar na área da música improvisada e experimental pela relação umbilical destas temáticas com os interesses da OSSO. Por um lado, acolhemos em residência e apoiamos vários projectos destas músicas mais exploratórias, por outro, temos vários projectos de membros do colectivo que aqui ensaiam e editam a sua música. Acima de tudo, interessou-nos a complementaridade entre o fazer da música e a reflexão sobre a mesma. Tivemos a sorte de tanto o Rui Eduardo Paes como o Alfredo Costa Monteiro terem a vontade e disponibilidade para partilhar connosco a sua vasta e importantíssima experiência. Lembrar que esta partilha educativa também se estende ao concerto da pianista Joana Gama, que nos vai por certo encantar com histórias e curiosidades sobre o repertório que a acompanha há tanto tempo e que podemos dizer tem no “silêncio” o seu centro. Em paralelo, vamos apresentar alguns concertos que, a nosso ver, mostram a diversidade de modos de fazer, pensar e apresentar esta música das “margens”. Teremos a contrabaixista Margarida Garcia, o duo de ondas hertzianas e guitarra eléctrica da Marta Zapparoli e do Alberto Lopes, a electrónica ritualista dos Amuleto Apotropaico, os dispositivos electrónicos e eletroacústicos do Alfredo Costa Monteiro e os minimalismos EDM do ensemble de percussão Hemiptera. Numa zona onde a música vai ao encontro da exploração visual, teremos dois concertos e duas projecções de filmes. O António Pedro e o Alban Hall vão improvisar sobre um conjunto de desenhos que as crianças participantes nas Oficinas Abertas prepararam especialmente para esta ocasião; a Maria do Mar e o Olivier Perriquet trazem uma proposta na intersecção da arqueologia dos media audiovisuais com o violino exploratório; Beatriz Sousa e Lucas Rezende foram convidadas a apresentar duas curtas metragens originais e a abrirem um espaço de conversa com o público em torno das preocupações estéticas, sociais e políticas que estiveram na base da sua criação.
E depois há a Rádio Eira, que vai estar a emitir no éter durante os dias de ARCA. Podes contar mais sobre essa rádio e sobre a forma de acompanhar estes dias mesmo à distância?
As emissões da Rádio Eira (em FM [89.6 MHz] e online) têm estado sempre ligada aos nossos dias abertos, mas este ano decidimos iniciar também aqui um novo modelo. Este projecto de rádio surgiu durante a pandemia e desde então manteve um formato que estava a ficar desajustado à nossa real intenção de utilizar a rádio como um espaço mais laboratorial e não tanto de comunicação ou partilha deslocalizada dos eventos de natureza sonora. Deste modo, e articulado com um grupo de outras estruturas congéneres europeias, propusemos um novo modelo de residências radiofónicas, que irão ocupar o “éter” da aldeia durante quatro semanas, entre Novembro e Dezembro. Para celebrar a Rádio Eira no contexto da ARCA, trouxemos dois projectos que foram inicialmente convidados a criarem peças radiofónicas originais. A Marta Zapparoli e o Alberto Lopes estiveram em residência na OSSO no início deste ano e apresentam na ARCA uma versão de concerto da peça que gravaram para a EIRA. A Raquel Lima e o Yaw Tembe, dupla que em 2020 fez uma residência para preparar uma emissão radiofónica original, teve este ano uma edição em K7 na recém formada Facada Records, e voltam assim ao lugar original destas gravações (a Eira) para apresentarem ao vivo o seu trabalho Rádio é um OSSO.
Como todos os nomes, também esta ARCA deve ter uma história associada. É uma tal arca onde se pode ir buscar o que se precisa?
Uma arca é um receptáculo para se guardarem objectos ou ideias que pela sua relevância decidimos guardar, longe do mundo, em segurança, para a eles voltarmos mais tarde… Rememorar… Gostamos da ideia de que este programa é o primeiro espólio desta ARCA. Outros programas virão, com mais pessoas e ideias para serem guardadas e preservadas. Para nós, a ARCA transporta consigo a ideia intemporal de um mistério que nela pode estar escondido. Era importante que todas as ARCAs mantivessem esse mistério e que fosse em torno deste que todos os anos nos encontrássemos.