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Fotografia: André Tentugal
Publicado a: 16/06/2025

As palavras na razão de fazer um palco.

Outros espaços são lugar #02: Quarto Mundo de Miguel Guedes, James Keating e Tiago Trigo

Fotografia: André Tentugal
Publicado a: 16/06/2025

Na rubrica Outros espaços são lugar vamos dar a conhecer salas menos comuns, onde a razão maior é procurar outra forma de programar, pensar e divulgar a música. Tudo isso no discurso directo por quem proporciona essa existência. Tentando revelar as motivações, as ousadias e, no fundo, amplificar as palavras que chamam à música.

No seguimento da rubrica caminha-se para bem perto, mas tentando ir para muito longe como se perceberá conversa adiante — na demanda dum espaço aural e até do silêncio. No cimo da Rua de Santa Catarina, no Porto, mais afastada da azáfama do comércio fica a porta 771. Uma casa que data nos registos mais antigos de meados de 1800. A vetusta fachada e uma porta com aldraba feita em caracol permite aceder ao espaço que hoje encontra um efectivo lugar de escuta na cave. O Quarto Mundo abre-se em sessões a cada três semanas. Normalmente às quintas ou sextas-feiras à noite, das 21h30 às 23h30.

Para ir acompanhando a programação e garantir lugar é necessário consultar a página do projecto. Os cartazes das sessões são da artista Rita Lemos, que tem ajudado a esculpir a estética do Quarto Mundo, assim como os visuais em tempo real de Deanna Hardman em algumas das sessões — a contar na próxima. Depois de experimentada uma sessão marcámos conversa a um final de tarde de domingo, de volta ao espaço, juntado Tiago Trigo e Miguel Guedes para saber mais da filosofia deste portal — um lugar de escuta primordial da música.


 


O que é este espaço do Quarto Mundo? Um mundo à parte?

[Migue Guedes] Começa na casa…

[Tiago Trigo] Acabaremos por chegar aí, mas para dar um pequeno contexto… O projecto começa antes de eu entrar — ainda eu estava na Suíça. Começa com o Miguel e com o James Keating (um amigo irlandês do Miguel). Eles começaram o projecto nas Galerias Paris [rua emblemática de bares do Porto], numa sala que nunca frequentei. Mas um espaço de que todos diziam muito bem. Basicamente [na passagem do Quarto Mundo para aqui] tudo começou depois de vir da Suíça, andava um bocadinho frustrado por não conseguir encontrar sítios com boa qualidade de som. Andei aí a rodar, a passar música em todo o lado, e não encontrava. Na altura o Miguel estava a fazer no Torto umas sessões de escuta. Eu fui lá com o intuito de: “Olha, posso eventualmente pôr música aqui?” Ao falar com o Miguel percebi que havia uma certa frustração, de ter que andar com o sistema de som de um lado para o outro e que andava à procura de um espaço onde pudesse estar em permanência. Na altura ainda estávamos aqui com as obras — este espaço da cave estava completamente ainda livre [aponta para onde têm lugar as sessões]. Tinha ficado livre depois da saída de uns amigos. Eu disse [ao Miguel]: “Olha, se calhar tenho um espaço que talvez pudesse ser interessante”. O Miguel veio aqui e decidimos reactivar, fazer renascer o Quarto Mundo, que tinha sido suspenso.

Então houve uma efectiva paragem do projecto depois do começo em 2019?

[Tiago Trigo] Sim, entretanto relançámos e o James até já esteve aqui a pôr música, por isso o projecto, no fundo… Embora o James esteja um bocadinho mais fora nesta altura…

O projecto continua a ser dos três.

[Tiago Trigo] Continua a ser dos três. E o espaço tem esse interesse, primeiro porque estamos aqui no coração do problema. Estamos aqui no meio da gentrificação — no meio do mundo dos hotéis e estamos um bocadinho como bastião de resistência no espaço do Lugar Comum — nome dado ao projecto [de toda a casa que engloba uma sala de co-working e dois ateliers de arte]. Depois tem esta coreografia de entrar, descer as escadas, entrar na cave e progressivamente passar…

Ao subterrâneo, ao tal outro mundo…

[Tiago Trigo] Sim, é uma coisa ritualesca, o descer à cave e as pessoas se descalçarem… Há uma espécie de ritual de ir despindo o que se traz de fora…

[Miguel Guedes] Passam num portal, não é?

[Tiago Trigo] Sim, exacto, e acho que o facto de ser na cave e de não existirem janelas daquele lado [contrário ao local onde acontecem as sessões] parece uma caverna, um espaço quase primordial de escuta.

[Migue Guedes] Sim, mas uma cave é um sitio de silêncio — por natureza. Mesmo que a nossa intenção fosse procurar um espaço que não tivesse rua ou barulho a passar — carros e assim. Isto veio mesmo confluir para aquilo que queríamos do projecto, que era: silêncio! Para estimular a escuta, para se estar focado na música, no espaço e em ti, não é? Esta coisa de entrares neste portal subterrâneo em que tens que coabitar com estranhos, no fundo. Como se fosse a tua sala de estar, em que se está descalço. Despires-te um bocado da tua individualidade para estar lado a lado, deitado numa almofada ou se calhar com a mesma cobertinha — nos dias de inverno — a aquecer-te com um estranho. Quebra um bocado esta coisa de escutar com outras pessoas.

[Tiago Trigo] Quer eu e o Miguel sentimos falta também de… Aliás, no Torto ou em qualquer outro bar há o barulho de copos, o barulho à volta que se sobrepõe. Até foi logo um tema que debatemos aqui. Estas sessões existem pelo prazer da música. Ainda chegámos a falar sobre se fazia sentido aqui vender bebidas. E eliminámos logo isso à partida. De um ponto-de-vista de negócio é algo que não faz sentido, mas logo no primeiro encontro [com o Miguel], quando falámos sobre música e paixão da música, estávamos a falar sobre isso. Na base do negócio está a palavra latina “negotium” — quer dizer literalmente a negação do ócio. E não quero que isto seja a negação do ócio. Quero antes que isto seja ócio puro! É com esse prazer, com esta paixão que fazemos isto. Importa também sublinhar o trabalhão que tivemos — e foi um trabalhão para preparar o espaço. O espaço acusticamente não estava bem preparado. Estivemos a limpar as vigas, a tratar tudo, a fazer vários testes acústicos, e acabámos por colocar uma alcatifa à medida para aqui com uma camada inferior de cortiça. Por isso isto foi um processo gradual de ir descobrindo o que o espaço precisava e percebendo também como é que o sistema de som devia estar disposto nas sessões. Nas primeiras o som estava todo deste lado [contrário ao actual] e depois as colunas abriram, entretanto adicionámos uma coluna que colocamos por trás agora nas últimas sessões. Tem sido uma descoberta do próprio espaço.

O que desperta curiosidade logo à partida é a escolha do nome do projecto. O que está na razão do nome Quarto Mundo? Está relacionado com a ideia sociológica de uma população miserável vinda dos países do chamado Terceiro Mundo, que tentam sobreviver no dito Primeiro Mundo? Há também isso no desígnio para os que vivem além da normativa moderna e industrial–tecnológica. Imagino que a razão se prenda mais com um estímulo vindo de uma certa ideia na música…

[Tiago Trigo] Não sei em relação ao Miguel, mas essas referências não as conheço e…

[Migue Guedes] …Também não conheço, mas é bom estarmos a saber e a relacionar até.

[Tiago Trigo] Mas, no entanto, existe uma referência muito literal [do nome] e o Miguel poderá clarificar também, e que vem do ensaio escrito em 1980 Fourth World do Jon Hassell. A ideia do nome é, no fundo, adaptada do Hassell.

[Migue Guedes] Pelo estímulo e pelo estilo de música do Hassell [do álbum de 1980, com Brain Eno, Fourth World, Vol. I: Possible Musics; e de 1981, Dream Theory In Malaya (Fourth World Volume Two)]

[Tiago Trigo] E que, no fundo, aparece sempre como uma terceira via. Era uma coisa que aparecia muito na ressaca da frustração do projecto moderno também. No geral, e quando começa a aparecer o pós-moderno e todas essas coisas kitsch. E isso vês na disco [de forma] muito clara. Esta própria transposição para as drum-machines e um bocadinho mais kitsch. O Jon Hassell, no fundo, fala sobre essa possível junção entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo, que poderia criar uma espécie de terceira via, que no seu caso seria o Quarto Mundo. Tem a ver também com uma crítica a modos de conhecimento “oficiais” — por oposição a uma ideia de intuição universal —, que acabam também por estar na base dessa postura de arrogância do mundo ocidental.

[Migue Guedes] Eu acho que pelas contas dele, em 2025, já poderíamos estar a entrar nas imediações dessa sociedade… Pronto, quando abrimos um álbum de Jon Hassell, remete-nos sempre para um… parece um paraíso de ócio, de a sociedade [embora] estando estratificada, tudo está em harmonia. Onde todas as pessoas têm as suas funções dentro da sociedade, mas não neste mundo actual em que parece mais de um retrocesso abrupto.

Lá está uma certa ligação social…

[Migue Guedes] Mas sim, sobre a razão do nome. Lembro-me de estar com o James e… quando nós comprámos o sistema [de som], parte do sistema… Quando o conheci, eu tinha uma parte e depois percebi que tínhamos coisas em comum. Partilhávamos gostos entre labels, estilos de música. Quando surgimos em 2019 estava a acontecer este fenómeno [dos lugares de escuta — listening bars/rooms] um pouco por toda a Europa e nos Estados Unidos, para não falar do Japão e do Jazz Kissa. Estava a acontecer o Brilliant Corners [em Londres], o Hosoi em Estocolmo, em Barcelona o Nica. Estavam a acontecer vários ao mesmo tempo, e claro, nós na nossa pequena dimensão…

Sim, mas na filosofia e na existência, enquanto espaço, é absolutamente comparável — é um espaço de escuta.

[Migue Guedes] Sim, essa coisa sim. Mas o nível desses sistemas de som é estratosférico. Nós conseguimos um muito… honesto.

Podes detalhar alguns elementos do vosso sistema de som?

[Migue Guedes] É um sistema analógico de válvulas, em que tentamos ter as melhores cabeças de gira-discos possíveis, os melhores cabos. Eu entendo o sistema como um automóvel. Há sempre um compromisso — adicionas uma peça, e quando adicionas um pré-amplificador ou uma mesa de som estás a perder algumas coisa. Estás a ganhar [em elementos] mas estás a perder. Tem de haver um equilíbrio entre o que se vai adicionando e a qualidade dos materiais. Temos bastante cuidado para o panorama português.


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E voltando ainda à história do nome…

[Migue Guedes] E nessa altura do nome, estávamos com essa do Jon Hassell e estávamos num pequeno escritório a testar o som ali durante seis meses no Marquês [bairro do Porto]. A adicionar, a pôr várias coisas — foi muito interessante essa parte [do projecto]. Pronto, e ouvíamos muito esse álbum do Hassell, os dois [Miguel e James] naquele escritório. E disse: “Isto de Fourth World em português é Quarto Mundo — o que é que tu achas?” E ele: “É mesmo isso!” E foi isso, basicamente.

Quando se mudam para este espaço, nesta cave da casa de família do Tiago, todo o sistema de som já estava com os elementos actuais, ou houve incrementos? 

[Migue Guedes] Houve decrementos [sorrisos]. Nós na anterior sala chegámos a um tal ponto — também era um bocado maior e permitia isso — de ter mais equipamento. Aqui recomeçámos com uma base vinda do Quarto Mundo, em que só falta neste dispositivo um pré-amplificador a válvulas. No outro, tínhamos dois amplificadores a válvulas e um pré-amplificador a válvulas. Neste, temos um amplificador a válvulas e um solid-state que entra na mesma mesa. E no outro, tínhamos umas colunas muito boas que serviam de munição. Adicionou-se algo mais…

[Tiago Trigo] A única coisa que adicionámos agora foram duas colunas de uma marca japonesa, dos anos 70, e temos um monitor virado para nós [para quem passa música] e outro deste lado virado para a sala, isso cria uma maior envolvência. Acho que neste momento sentimos que estamos mais ou menos onde queríamos estar.

E o maior ganho desta mudança, terá sido então a ideia do espaço subterrâneo?

[Tiago Trigo] Eu terei dificuldade em falar porque não conheci o espaço anterior, mas tendo em conta o que diziam, o que se ganha aqui é um bocadinho isso. Essa introspecção acrescida que se consegue ter aqui.

[Migue Guedes] No outro era mais… Sim, aqui é introspecção que se ganha, mas no outro, como se estava num 1º andar e havia duas grandes janelas de madeira… A sala tinha mais de 4 metros de altura — um pé direito enorme e as janelas permitiam, para quem assistia deitado, a uma visão sobre o Porto e que era absolutamente incrível. Então o que se via nas janelas — além do Porto nocturno — era o céu e as gaivotas. Às vezes parecia que elas andavam ali a ouvir — a escutar connosco. Aqui é mais para dentro, acho que estamos mais grounded, não sei…

E vocês mudaram os alinhamentos, os sets que passam reflectem essa mudança do espaço?

[Tiago Trigo] Eu comecei logo aqui.

[Migue Guedes] Pois, eu acho é que continuamos a descobrir as nossas colecções, e é isso que mais importa.

[Tiago Trigo] Sim, porque lá está, de início fizemos o projecto mas foi naquela confiança mútua, depois de falarmos um com o outro sobre música e sobre as nossas referências. Nem eu tinha ouvido o Miguel a pôr música, nem ele a mim. Por isso isto foi uma descoberta que foi acontecendo durante as sessões. Mas estamos a tentar perceber como nos vamos adaptando. Noto imenso, desde que o Quarto Mundo começou, como isso influenciou o tipo de música que tenho andado a comprar. Este espaço permite também uma coisa que é o facto de as pessoas estarem aqui num sítio onde normalmente não se levantam. Num outro contexto “normal”, se puseres uma música longa é aquele momento em que as pessoas dizem para ir lá fora fumar um cigarro — e perde-se um bocadinho toda essa capacidade de entrares realmente dentro daquela atmosfera sonora. Aqui as pessoas estão deitadas — acontece muito. Levo isso como um sinal de confiança incrível, quando sobretudo na primeira hora, em que não introduzimos tanto a voz, muitas pessoas adormecem. Acho incrível isso. Estares no meio de estranhos completos e sentes um conforto ao ponto de adormeceres.

Também é um ambiente muito recatado e comunitário. Qual é a lotação máxima, para que conste?

[Migue Guedes] Diria 16, por aí.

[Tiago Trigo] O máximo são 16 pessoas. Fizemos testes e fomos diminuindo até este número, porque queríamos que estivessem à vontade, sem tocarem nos corpos constantemente. Permite também trabalhar com composições muito mais longas, recorrentemente passamos músicas que podem durar 10-20 minutos.

Temos estado a falar do conceito de espaço de escuta de música, maioritariamente gravada. Mas há sessões no Quarto Mundo com música ao vivo. Foi uma reprogramação feita do espaço, começando com um concerto do Burnt Friedman. Isso deveu-se a que motivação? 

[Migue Guedes] Mas isso já acontecia no outro espaço, onde tivemos vários tipos de instrumentos, desde sintetizadores modulares, tivemos trompetes…

[Tiago Trigo] Nós aqui tivemos três presenças. Tivemos o Burnt Friedman, o Emil Saiz — ele que foi residente no Lugar Comum durante um ano e o seu último álbum [Cycles of Disappearance, 2025] foi parcialmente gravado aqui no Quarto Mundo; e tivemos também o Tiago Sousa. E o próximo concerto que teremos, que vamos divulgar entretanto, será do Pedro Ricardo. Mas os concertos estamos a descontinuar, a não ser que sejam concertos totalmente acústicos. É que este material [de som] é vintage e muito delicado em termos de elasticidade — nada novo. E nós adoramos ter aqui concertos — são experiências incríveis, estar num espaço com este tipo de intimidade, em cima dos músicos a sentir….

[Migue Guedes] … A terem uma experiência quase de estúdio, controlando tanto som à sua volta.

[Tiago Trigo] Porque nós, enquanto estamos a pôr música, estamos atrás, temos aquelas colunas [de trás] e depois temos as da frente com o super-tweeter com mais definição. Enquanto DJs estamos entre as duas filas de colunas. Os músicos estão no sweet-spot, com as melhores condições possíveis e isso é raro para um músico em palco. Eles estão aqui a desfrutar imenso. Mas nós, embora a desfrutar também, estamos com o coração nas mãos, a ver um guitarrista a puxar um bocado mais pela distorção e a ver tudo a vibrar e a pensar…

Sim, mas este espaço presta-se muito a concertos acústicos, por isso deviam continuar nessa opção.

[Migue Guedes] Sim, sim…

[Tiago Trigo] Sim, e é isso que vamos tentar adaptar. Embora, claro, sentimos que as pessoas gostam muito de poder usar este equipamento, este sistema de som.

[Migue Guedes] Acho que um factor que nos distingue enquanto projecto, mesmo de outros espaços que existem em Portugal — cada um com a sua tipologia de som —, é que aqui conseguimos o dito som vintage. Aquele som a válvulas, quente e com um timbre muito natural, muito suave. Mas isso é feito para tocar discos ou para reprodução de música, e não para produção de música. Estamos a falar de colunas com mais de 50 anos. Um concerto pode pôr em causa o próprio projecto. Existe nessas salas de concertos no Porto, em Lisboa, em Braga, onde quer que seja, a falta de um bom sistema de som — é o que eu acho. Isso é uma outra história. Vou ver concertos e há coisas absolutamente… em que se sai com os ouvidos a gritar. “Mas o que é isto?” Em que uma voz parece que está tapada com um livro.

[Tiago Trigo] O clássico de sair à noite e voltar dos espaços com os ouvidos com tinidos.

[Migue Guedes] Essa é outra característica, dos clubes e dos bares.

[Tiago Trigo] E que tem a ver com o sistema estar sub-dimensionado para o espaço e têm de puxar a mais do sistema de som.

[Migue Guedes] E é o tipo de coluna que é usada para esses espaços, o tipo de amplificação e equalização. Esse tal compromisso do sistema de som devia ser muito discutido pelas pessoas que gerem os espaços. Porque o som e a acústica estão sempre em terceiro plano — e não pode ser. Temos que evoluir nesse sentido para que as pessoas desfrutem mais [da música]. Para que haja um entretenimento e uma cultura melhor de som, de espaço e conforto.

[Tiago Trigo] Por oposição à Suíça, eu sinto muito que em Portugal quando abres um bar a primeira preocupação são as bebidas, e depois o DJ é uma espécie de animação cultural.

Um som de fundo.

[Tiago Trigo] Sim, uma espécie de som de fundo. É engraçado, porque somos muito mais expansivos que os suíços e eles parecem que dançam mais. Talvez por serem mais reservados e quando vão sair dançam e manifestam-se mais. Mas também pode ter muito que ver com a qualidade dos sistemas de som — que influencia, porque a música é vibração que entra. É interessante na música — nós tentamos isso aqui também — perceber como essa vibração interfere directamente com o teu corpo. E quando essa vibração atravessa o teu corpo da forma certa, tu inconscientemente começas a mexer, a dançar e a reagir ao som que estás a ouvir.

E aqui, nas sessões do Quarto Mundo, como se passa numa plateia na sua totalidade deitada. Há lugar ainda assim a uma dança interior?

[Tiago Trigo] Sim, sim. Há pessoas que se levantam e começam… e há quem venha para aqui escrever, outras ler e desenhar.

A experiência que tive aqui, numa única sessão, diria que foi muito colada ao que ouço no programa da Antena 2, transmitido desde 2006, que é o Argonauta — dedicado à música ambiental. E como faço essa escuta, na maior parte das vezes, em casa na penumbra ou mesmo às escuras e estando deitado, isto pareceu-me familiar. Dedicando todos os sentido à audição. E aqui é promovido esse tipo de escuta.

[Migue Guedes] Sim, o Argonauta.

[Tiago Trigo] Não é à toa que tens músicos excepcionais que são invisuais — Ray Charles, Stevie Wonder, etc. Quando um dos teus sentidos não está tão desenvolvido acabas por desenvolver mais um dos outros.

[Migue Guedes] Nessa linha que dizias, Ricardo, eu quando estou a ouvir música em casa, posso por tudo no mínimo e não estou a perder nada. E num sistema mais regular — digamos – se colocas baixinho estás a ouvir tudo baixinho.

É um pouco como esta lógica da cozinha contemporânea, em que podes comer pouco em quantidade mas com máxima intensidade de sabores. 

[Miguel Guedes]  Exactamente.

[Tiago Trigo] Fiz aqui uma seleção de livros um bocado essenciais para mim. E este que é o Love Saves The Day: A History of American dance Music Culture, 1970-1979 [de Tim Lawrence]. Foi o livro que me fez descobrir o David Mancuso [DJ criador das festas apenas por convite no loft, e às primeiras das quais, em 1970, chamou “Love Saves The Day”] e por isso também marca um bocadinho do início desta obsessão com os sistemas de som — que ele também tinha.

[Migue Guedes] Mas numa área mais dance, e aqui como o som entra fisicamente em ti e te levita para dançar. Não precisas de bebidas, não é?

[Tiago Trigo] Mas em relação à qualidade do som em si e da importância de um sistema de alta-fidelidade, o Mancuso era completamente obcecado com isso. É engraçado que um dos feedbacks das pessoas que frequentavam as festas do loft era que muitas vezes iam ter com o Mancuso perguntar-lhe qual era aquele remix que nunca tinham ouvido. Ele dizia-lhes: “Não, isto é a música original”. Só que num sistema de alta-fidelidade estavam a conseguir ouvir coisas que normalmente estavam enterradas, de repente pareciam novas linhas de instrumentos que nunca tinham ouvido mas que sempre estiveram ali. Simplesmente não ouvindo num sistema de som que realçasse a música isso ficava tudo perdido. E em relação à própria escuta — e que o Miguel estava a dizer —, para mim uma das descobertas importantes foi um curso que fiz no Instituto fundado pela Pauline Oliveros, onde se trabalha a escuta activa — que ela chamava de deep listening, que é no fundo a tentativa de se pegar em processos inconscientes e torná-los conscientes. Na meditação, o primeiro que se faz é a respiração — controlando a partir da mente, e na escuta também se consegue. A diferença é um bocadinho entre escutar e ouvir. No tal curso no Center for Deep Listening, um dos exercícios que ficou comigo e tento fazer sempre que me lembro é: primeiro pensar qual o som mais próximo de ti, que normalmente é a batida do coração. Depois qual o som imediatamente a seguir a esse, e assim sucessivamente até tentares perceber qual o som mais distante de ti. Nisso fazes uma espécie de mapeamento sonoro, o que te faz ganhar consciência dos sons que existem, que estão à volta e que nem te tinhas apercebido. Porque simplesmente não tinhas desenvolvido essa capacidade. Realmente, a escuta é qualquer coisa que se pode treinar — tal como a respiração na meditação. Podemos ficar a treinar até ao fim da vida, e na própria relação com a música descobrir diferenças. Como em arquitectura, falamos sempre sobre a transição do espaço interior para o exterior e onde o som é essencial.

[Migue Guedes] Na minha prática a música é uma interface. Infelizmente não sou músico e como vivo num espaço natural — não estando na cidade —, então vou para a natureza treinar a escuta. Na cidade também se pode fazer isso, tens é mais ruídos e interferências. Faço muito esta prática de caminhar com atenção, que depois passa a ser uma coisa natural — sem fazer esforço algum para ouvir os pássaros ou o que está acontecer imediatamente naquele momento.

[Tiago Trigo] Um dos exercícios precisamente da Pauline Oliveros é caminhar e tentar ouvir com as palmas dos teu pés.

[Migue Guedes] Pronto, isso é à mestre. E nós humildemente vamos treinando como podemos e depois passa para a música. Quando faço esse tipo de prática, quando vou escutar música no meu pequeno espaço, sinto que estou mais disponível — estou mais sensível.

Sim, porque afinastes por um nível de detalhe.

[Migue Guedes] Sim, eu afinei… são timbres. Então a escuta pelos ouvidos é nesse sentido, e vivendo no mundo actual muito táctil, muito visual, muito gustativo, a escuta pelo processo do som — na televisão, na rádio, no computador, no sistema de som — está cada vez mais no limiar, mais flat. Este treino de escuta está a ser dificultado e por isso é posto de lado. As pessoas já não confiam na escuta, preferindo olhar, tocar. Mas a escuta é um sentido que te pode guiar no desconhecido.

[Tiago Trigo] E o som hoje em dia também é usado como distracção e até como manipulação. No outro dia fui ao supermercado e estavam a dar sons de como se fosse uma praia…

Sim, já apanhei isso também com chilreios e sons naturais. Já não é aquela música de elevador ou Muzak…

[Tiago Trigo] Sim, sim. E que é um conforto meio desconfortável. Estão a tentar fazer-me [sentir] bem-vindo a um espaço onde não me sinto assim. Sinto-me assim um bocadinho manipulado e torna-se desconfortável às vezes perceberes isso. O som tem um poder gigante e se não tivesse, estas cadeias multinacionais não o estavam a usar desta forma. Se levarmos ao extremo, temos aliás o som usado como arma e aquele Síndrome de Havana, em que as pessoas eram alvos de ondas sonoras de frequência muito baixa e que o ouvido humano, embora não percepcionado, tinha efectiva influência no corpo. Uma arma física através do som. Há vibrações que te impedem de progredires fisicamente.

[Migue Guedes] No fundo era uma tortura, pode ser usado como tortura. As cidades em si, as grandes metrópoles são torturas, mas que como estamos tão integrados na cena, o nosso corpo já não processa e já não nos agridem. Tive um experiência há pouco tempo fora de Portugal, durante um mês num dos poucos sítios do planeta onde não passam aviões. E é uma coisa… tu sentes uma vibe… Primeiro o céu está completamente limpo. Onde eu vivo, a 60 km do Porto, sei que às 6 da manhã começam a entrar aviões e estão a reduzir velocidade, sobretudo a essas horas, para aterrar no aeroporto. Este ruído que fazem ao diminuir a velocidade é um som estranho. Estar num sítio em que não existem aviões é… E todos estes sons que estamos a processar do mundo moderno — acho que precisamos de escapes, de caves, de arranha-céus, de espaços contidos em que podemos experiênciar outro tipo de humanidade.

[Tiago Trigo] Experiênciar o silêncio também, que é uma coisa importante desde há imenso tempo. O primeiro projecto que fiz, ainda com 15-16 anos, foi na minha escola. Idealizei um pavilhão de silêncio. Uma caixa onde se entrava, ficava completamente velada. Já era aquela coisa do recreio e tocam os sinos, e os miúdos a brincarem e tudo aos gritos. Sentia que precisava de um refúgio no meio da minha escola.

[Migue Guedes] Porque é que nas fábricas não existe um espaço onde o/a trabalhador(a) pode ir lá, um minuto em que se pode largar a sua máquina de ruído, com ausência de som e até de luz? Tipo uma câmara anecoica, para descansar uns minutos e voltar ao seu local de trabalho com mais energia.

[Tiago Trigo] Uma pessoa central na minha vida era a minha avó — vivi nesta casa com ela e também com a minha mãe. Era uma pessoa com quem se passava grandes pedaços das tardes em silêncio — só de mão dada com ela. Podíamos até estar na praia e estávamos a olhar para o infinito em silêncio.

[Migue Guedes] Isso era uma bendição.

[Tiago Trigo] Pode soar um bocadinho esotérico, mas nesses silêncios vinham ideias. Eu ria, olhava para ela e via-a a sorrir. Estávamos a comunicar quase telepaticamente. Não sabia o que estava a acontecer mas era uma espécie de comunhão em que o silêncio era importante. Acho que deveria ser um direito da humanidade — o acesso ao silêncio. O Miguel falava do barulho das fábricas ou dos supermercados — esse bip-bip permanente.

E depois, além dessa poluição acústica também há a que existe no céu — como poluição lumínica. 

[Tiago Trigo] Em relação ao céu, a possibilidade de se observar o céu sem ruído luminoso… há uma fundação, a Star Light Foundation, com a designação de espaços protegidos como sendo um direito da humanidade. O primeiro a ser feito foi em Portugal, na zona de Alqueva. Por causa daquele lago artificial gigantesco, é a maior zona da Europa que não tem luz [artificial]. Por isso é um sítio na Europa para observar o céu. O mesmo tipo de ideia e mentalidade associado à acústica, ao som, deveria ser mais debatido. Devíamos perceber o que isso é de importante para nós. Quem está sujeito a esse tipo de ruído desenvolve certas doenças.

[Migue Guedes] O som e o silêncio é também um despertar, são temas muito pessoais e relacionados com o Quarto Mundo.

Estávamos a falar da ideia de escuta mais consciente. Mas no vosso espaço acontece uma escuta semi-consciente ou naquele estado de passagem para um dormitar. E nisso remete-se para uma ideia da música nesses estados de percepção. Algo desenvolvido pelas performances To Sleep de Max Ritcher ou das sessões de Robert Rich com os Sleep Concerts, com o foco na psico-acústica. Tudo conceitos que se ligam e exploram de certa forma no Quarto Mundo?

[Tiago Trigo] Sim, sem dúvida. Acho primeiro que a matéria tem memória e nós somos só partículas em vibração — tudo. O nosso corpo e o espaço à volta. E acredito que o espaço tem memória e este espaço [do Quarto Mundo] está a ser exposto a este tipo de vibrações, permite que mesmo quando aqui entras já sentes qualquer coisa… Há um projecto em Nova Iorque que é a Dream House do La Monte Young [e da Marian Zazeela] que está continuamente, 24 horas, 7 dias por semana, com o mesmo tipo de vibração. As pessoas podem entrar — pagando — e ficam o tempo que quiserem. Um espaço que está durante décadas a ser sujeito assim a essas vibrações tem necessariamente qualquer coisa que se transforma nesse espaço. Acredito sinceramente nisso. E neste livro do Marcus Boon , The Politics of Vibration: Music as a Cosmopolitical Practice, que me fez descobrir o La Monte Young e outras pessoas que se tornaram essenciais como o Pandit Pran Nath ou a Pauline Oliveros; e ele escreve citando um autor Viktor Zuckerkandl [musicólogo autraliano]: “Far from taking us out of space, music disclose to us a mode of being a spatiality that, except through music, is accessible only with difficulty and indirectly. It is the space which, instead of consolidating the boundaries between within and without, obliterates them; space which does not stand over against me but with which I can be one; which permits encountered to be experienced as communication, not as distance.” E esta ideia de quase dissolução, que é uma espécie de percepção de infinito, em que acho que o som é o mais próximo que nós conseguimos estar dessas… Tem a ver com questões existenciais, de consciência. Esse mistério da consciência — como é que acontece na explosão [na teoria] do Big Bang, em que existe explosão e expansão de matéria e nós somos partículas cósmicas que ganharam consciência de si própria. Como é que a matéria ganha consciência de si própria? Sendo o grande mistério, que nem a ciência consegue dar resposta. Mas nessa consciência, o mais próximo que conseguimos entender é que somos apenas vibração e estamos em comunhão com tudo o que nos rodeia — é o som. É por isso que a música é tão fundamental na minha vida.

Nesta ideia das vossas sessões durarem duas horas resulta de uma optimização? Como estabeleceram esse formato temporal e o dia da semana?

[Tiago Trigo] O formato era mais ou menos o que existia e tem a ver também com esses segmentos de meia hora em que posso começar eu, ou o Miguel, e alternamos. E também tem que ver com a disponibilidade que as pessoas têm — a partir das duas horas passa a ser demasiado cansativo.

[Migue Guedes] É tão exigente esta escuta atenta que é quase como um… Até porque nós iniciámos as sessões às quintas-feiras — o que ainda está um bocado em teste. As quintas, e com o fim-de-semana tão próximo, as pessoas que vinham, vinham mesmo com a intenção de escutar. À sexta-feira já dispersam um bocadinho, chegam mais atrasadas — seja pelo jantar que se alargou mais ou… As quintas era uma coisa assim… A intenção é: “Vou sair de casa, vou àquele sítio e quero estar duas horas em silêncio. Não aguento mais esta semana.” E depois: “Uau! Estou relaxado.  É também esta ajuda pseudo-terapêutica que estamos aqui a tentar proporcionar.

Essa era a ideia que me dava, quem vem a estas sessões é porque pretende sair bem melhor do que aqui entrou. Como uma sessão terapêutica como referes.

[Migue Guedes] Sim, já tivemos pessoas que disseram, por exemplo: “Isto para mim foi como um duche frio. Não foi só emocional, dos sentidos, foi também físico porque esta semana já nem dormia bem, e aqui adormeci e tive um sono de 10 minutos que foi mais do que uma noite de sono.” Percebes?   É permitir este silêncio, este conforto e esta confiança que nós passamos e a atenção dedicada através do chá e através do vinho, muito subliminais — como um reforço. Tudo tem uma intenção, como a própria luz. Estamos no campo do vinil, das colecções e esse tipo de coisas, mas também da saúde.

[Tiago Trigo] Também é interessante a possibilidade de uma escuta partilhada. Provavelmente hoje em dia as melhores experiências de escuta que corriqueiramente se tem é com auscultadores ou auriculares, e com noise-cancelling. Por isso é uma boa experiência sonora, mas estás a isolar-te de tudo o que está a passar à tua volta — estás a andar na rua e nem sequer percebes. Aqui, apesar de tudo, todos os sons que vão acontecendo — uma pessoa que tosse, outra que se levante, o soalho que range — ajudam a perceber que existe um mundo e que tudo faz parte.

E há uma exploração de todos os sentido nas vossas sessões, para além do chá e do vinho…

[Tiago Trigo] Sim, dos cinco sentidos. A fragrância, que é um cheiro especifico — já tivemos esse feedback de muita gente que entra no espaço e sentem logo esse primeiro impacto. Temos a parte do sabor também com o chá (domínio do Miguel) e o vinho do Porto, e no fim um biscoito. Parte da textura, com as mantas e o facto de se estar descalço faz-te sentir em casa e despir barreiras sociais. Se não for desconfortável para ninguém pedimos para se descalçarem antes de entrar no espaço de escuta — sem que seja uma imposição, o importante é que se sintam bem. Fica engraçado esta frente [aponta para essa antecâmara] cheia de sapatos, e sentes mesmo essa ideia de entrada num outro espaço, numa outra realidade. Mas é isso, essa ideia de portal de passar para um outro mundo. É isso —  todos esses cinco sentidos, que tentamos equilibrar e valorizar.

É uma experiência entre comuns, nesse sentido comunal, não é?

[Migue Guedes] É uma experiência em comum, em que queremos fazer comunidade.

[Tiago Trigo] Uma comunidade de escutadores…


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