Foi há um ano que a paisagem nocturna lisboeta ganhou uma nova dimensão. Era Outra Cena, diziam, e ficava no mais recente mega projecto da zona oriental da cidade, o 8 Marvila, que também inclui restaurantes e lojas e ocupa os antigos Armazéns Vinícolas Abel Pereira da Fonseca.
À frente desta Outra Cena, inaugurada a 8 de Setembro de 2023, está Kevin Guieu, francês que se sente lisboeta, a viver por cá há uma década. Foi DJ e director artístico de outra casa, o Le Baron, antes de começar a magicar o seu próprio espaço, com outras características, assumindo um papel de contracultura.
As experiências que acumulou em clubes e festivais por todo o mundo foram essenciais para querer construir um clube seguro, misterioso, versátil e aberto a todos, com uma aposta em subgéneros alternativos da música electrónica, com uma cabine por onde tanto passam nomes internacionais como talentos locais. O Rimas e Batidas assinala este primeiro aniversário com uma entrevista a Kevin Guieu sobre a origem e o futuro do projecto, mas também os ideais que orientam a filosofia do clube.
Amanhã, 7 de Setembro, sopram-se as velas numa de anos em modo rave com um line-up que, tal como muito do que se passa nesta Outra Cena, é segredo.
View this post on Instagram
Como é que surge a oportunidade de o clube abrir no 8 Marvila e como é que tu chegas ao projecto? Quais foram as circunstâncias que levaram a que o Outra Cena abrisse ali?
Já tenho o plano de abrir um clube que seja meu há muitos anos. Quem me conhece sabe isso, porque ando a falar deste projecto há bastante tempo. Tive outra experiência com um estabelecimento nocturno, do qual fazia a programação. Embora não tivesse nada a ver com o que faço agora, deu-me a confiança para me lançar nesta área. Fui visitando muitos, muitos sítios em Lisboa e até nos arredores nos últimos anos. Só que as condições nunca estavam todas reunidas, por várias razões. Seja a presença de vizinhos numa cidade tão densa, seja as rendas demasiado altas… Havia uma data de parâmetros que não estavam necessariamente reunidos. Quando vi que o José Filipe [Rebelo Pinto] estava responsável por encontrar pessoas para ocupar espaços do 8 Marvila… Eu já o conhecia há bastantes anos e já tínhamos falado da minha vontade de abrir um sítio. Ele tinha-me falado das suas experiências, já conhecia aquilo que eu tinha feito no Le Baron e respeitava o meu percurso. Quando fui visitar o espaço não estávamos a considerar necessariamente o espaço onde está agora o Outra Cena. Era um espaço muito ao abandono. Só que, ao visitá-lo, vimos que havia muito potencial — e eu tinha tanta vontade de lançar isto que imaginei-o a funcionar. O espaço era demasiado especial para eu não tentar. Apesar das dificuldades, das obras e das limitações de tempo, decidi desafiar-me e tentar esta aventura. A partir disso, foram muitos esforços e emoções — e, aos poucos, o que era inicialmente um sonho tornou-se uma realidade. Estou muito feliz pelo que estamos a criar, porque é um projecto muito colectivo e ver isto a ter vida, depois de todo este trajecto, traz-nos muita satisfação.
E conseguiste concretizar a tal visão que vinhas a imaginar há vários anos? Era este o tipo de clube que ambicionavas um dia gerir?
Sim… Desde que descobri a vida da noite e a club culture que foi algo que me fascinou e me proporcionou muitos momentos fortes. Ao longo dos anos, veio ocupar um lugar mais e mais importante na minha vida. Para mim, poder contribuir para esta cultura com este projecto é algo que queria muito fazer. Uma parte da visão seria sempre a mesma em qualquer que fosse o sítio, porque a minha vontade em termos de programação artística, de valores que temos dentro do clube… São coisas que eu teria aplicado independentemente de qual fosse o sítio e que eu aplicarei se no futuro abrir “outra cena” [risos], outro lugar. Depois, em termos estéticos, foi algo que se adaptou à realidade do espaço. Tanto arquitectónica como em termos do tempo que tínhamos, e o facto de eu não ser dono deste espaço, por ser apenas um ocupante temporário. A ideia era conseguir ter o máximo impacto com o mínimo de meios. Era um espaço que já por si era bastante especial, mas com uma abordagem minimalista mas também inteligente em termos de layout, de percurso… Queria criar uma experiência realmente distinta e imersiva. Por isso, soube rodear-me de pessoas com muita visão, como foi o caso do estúdio de luz de Milão que fez todo o light design do espaço, Anonima/Luci, cujo trabalho descobri no Instagram através de uma artista que admiro. Quando vi o trabalho deles, pensei imediatamente: é deles que preciso para o meu projecto, porque encaixa perfeitamente. E foi a mesma coisa com o sistema de som. Descobri o trabalho das pessoas que me instalaram o P.A. num festival e, ao falar com eles, reparámos que tínhamos uma visão comum — tanto musical como em termos de valores de clubbing, de apoio à cena e à cultura —, por isso este projecto foi sempre feito com pessoas mesmo apaixonadas. E isso vê-se no resultado final. Porque quando as coisas são feitas com paixão, e pelas razões certas, isso nota-se. Houve uma atenção aos detalhes. São coisas que me inspiraram em várias ocasiões quando ia a clubes ou a festivais. E foi isso que tentei passar para o Outra Cena, esta mesma atenção ao detalhe e a paixão pelas coisas bem feitas.
Estavas a mencionar os valores de que naturalmente não querias prescindir independentemente de qual fosse o espaço que fosses abrir. Que valores são esses que nunca poderias deixar de aplicar num clube como o Outra Cena?
Primeiramente, é a educação — no sentido de lembrar sempre de onde vem a club culture; por e para quem é que foi feita inicialmente. Ou seja, respeitar este património e este historial. Inicialmente, a club culture e esta música underground foi feita por comunidades marginalizadas, nomeadamente negras e queer dos Estados Unidos da América. Isto são coisas que hoje estão um bocado esquecidas na indústria em que se tornou a cena clubbing — e acho que é mesmo uma pena. Aquilo que começou por ser uma contracultura tornou-se, em muitos lugares, numa cultura mainstream do mundo capitalista e isso trouxe uma perda de valores e da bússola que deveria orientar esta cultura. Estou a falar de valores de inclusão, de diversidade… De humildade também, porque nós também temos muitas coisas por aprender. Eu sou um homem cis branco, sou privilegiado nesse aspecto, sendo assim tento sempre ter esta consciência e usar este privilégio para fazer coisas boas e dar oportunidades a pessoas que não o têm. Não pretendo que este seja um espaço revolucionário ou qualquer coisa do género, tento só fazer as coisas com bom senso e com a consciência de onde vem esta cultura e como é que quero contribuir para mantê-la viva e para continuar a fazer isto pelas razões certas. Portanto, a inclusão e a diversidade têm de se reflectir na programação que fazemos. Também há uma responsabilidade de destacar a cena local. Obviamente, para posicionar o clube num cenário internacional e trazer pessoas e novidades à cena clubbing lisboeta, acredito que isso passa por ter artistas internacionais — o que também é uma maneira de inspirar a cena local, mas sem nunca esquecer de a destacar directamente e de poder contribuir, ao longo da vida do club, para inspirar e permitir iniciativas, a contribuir para desenvolver as carreiras de artistas, e a fortalecer uma cena local. Conhecendo a gentrificação de Lisboa, o impacto da chegada de muitas pessoas estrangeiras e todas as transformações que a cidade viveu, ter um projecto que tinha um impacto na cena local era algo mesmo muito importante. E tentar ver, dentro de todas as iniciativas, quais são feitas com vontade de alterar os limites do que está a ser feito, de realmente se querer diferenciar… Esta é a intenção, pelo menos. E, depois, criar um sítio que seja o mais seguro possível. Não acredito em lugares totalmente seguros, isso não existe, é impossível, mas estamos a tratar, a cada semana e a cada mês, de melhorar a nossa organização para criar as condições para um clube mais seguro, onde as pessoas se possam sentir livres, ser quem querem ser, sem o medo de estarem a ser incomodadas, julgadas ou assediadas. Isto é algo mesmo muito importante e que é um desafio diário.
Também é por isso que implementaram a política de não se poder fotografar ou filmar dentro do Outra Cena, presumo. Só quem lá vai sabe como é o espaço.
Exactamente. Isso tem várias razões: é respeitar a privacidade das pessoas, poder fazer com que seja um espaço de lazer seguro, onde as pessoas sintam que podem ser quem quiserem ser durante a noite, sem o medo de depois se encontrarem por todos os lados… Mas também é uma maneira de manter o mistério sobre o espaço. Em muitas ocasiões, quando fui sair e descobrir clubes ou espaços nocturnos, o facto de não ter expectativas e de descobrir um mundo realmente distinto foi algo mesmo mágico. Não queria retirar esta magia ao criar demasiadas expectativas e uma imagem de como é o espaço lá dentro. Vivemos num mundo tão documentado, com imagens e vídeos, e com uma grande invasão de conteúdos audiovisuais, que se perde um pouco a magia do momento. No contexto do clubbing, acho que isso é algo muito importante de preservar. E sinceramente não gosto muito quando estou numa pista de dança e vejo-a invadida de telefones a filmar. As pessoas perdem um pouco a capacidade de aproveitar o momento e de deixar o mundo exterior lá fora, e de se conectarem com a música, com as luzes e com as outras pessoas. Para mim, isso era uma condição essencial para criar esta experiência um pouco fora do mundo.
Estavas a falar da programação e da aposta na cena local: como é que descreverias, e naturalmente isto não é algo estanque, aquilo que faz sentido em termos musicais no Outra Cena? Ou seja, quais são os limites musicais que fazem sentido neste clube?
Não ponho nenhum limite, quero ter uma versatilidade na programação, não quero ser associado a nenhum género específico. Obviamente foquei-me sempre em destacar géneros que acho que faltavam em Lisboa ou que tinham poucos lugares de expressão. A cidade estava um pouco dominada pelos mesmos géneros e achava isso muito redundante. Por isso há um foco em géneros bastante alternativos, mas é uma noção sempre flutuante e não quero que seja uma coisa que nos impeça de programar uma noite com algum género mais conhecido ou explorado — desde que seja feito de maneira “verdadeira” ou alternativa. Posso programar um artista house, mas que seja um house head muito respeitado de Nova Iorque ou alguém que traz a sua arte para a frente porque está a fazer isto com muita paixão e conhecimento. São valores que quero ter atrás da cabine. Obviamente, no início do clube quis programar muita bass music, porque é aquilo de que gosto mais e honestamente achei que fazia muita falta na paisagem musical lisboeta. E a mesma coisa para outros géneros que programámos. Mas nunca quis dar a impressão de que estamos fechados em certos géneros, não é o caso nem nunca vai ser assim que vai funcionar. Não me estou a limitar, mas quero sempre ter cutting edge music e cenas mais alternativas e experimentais. Quero que também seja um lugar de descoberta, onde os artistas se sentem completamente à vontade para explorar e para descobrirem músicas, estilos ou maneiras diferentes de tocar. Não dou nunca qualquer tipo de briefing aos artistas; pelo contrário, quero que haja muita liberdade e que não haja qualquer elitismo na forma como devem tocar. Não quero que tenham medo de esvaziar a pista ao experimentarem coisas. Por mim, desde que haja paixão e qualidade no que está proposto, fico feliz.
Que balanço é que fazes, um ano depois da inauguração? É aquilo de que estavas à espera? Fazes uma reflexão positiva?
Sim. Sinceramente não estava nada à espera que houvesse tanto entusiasmo rapidamente… Obviamente, acreditava muito no projecto, à medida que ele ganhava vida, mas fico muito satisfeito pelo primeiro ano que fizemos. E muito motivado pelo que vem aí. Estou totalmente consciente de que não foi perfeito, que houve falhas, que talvez haja pessoas que não se estejam a reconhecer neste espaço ou que não estão a gostar assim tanto do que estamos a fazer, mas também acredito que isso seja bom, porque esse é o princípio de uma proposta artística: criar um efeito nas pessoas, seja positivo ou negativo.
E sentes certamente que o Outra Cena já marcou a diferença e se tornou uma parte relevante da cena clubbing de Lisboa.
Sim, é aquilo que estamos a tentar fazer… Eu queria trazer algo diferente para a cidade, que desse vontade às pessoas que não saíam assim tanto de voltar a sair. Ou àquelas que não estavam a encontrar algo para si. Mas também que as pessoas que vão e que gostam de outros sítios possam gostar também de ter esta nova possibilidade. É um lugar para todos, mas com os valores que, para nós, são muito importantes. E quero muito continuar a fazer descobrir novas coisas às pessoas — quero sempre permanecer atento ao que se está a passar com a cena do país e internacional, porque há muitas coisas a acontecer e muito talento mesmo. Espero poder dar oportunidade a estes talentos de tocarem no Outra Cena, porque é mesmo o objectivo que temos com este clube.
Inevitavelmente, e isto é algo que sabes desde o início, o Outra Cena será sempre um clube temporário. No sentido que, daqui a uns anos, o 8 Marvila vai deixar de ser um edifício aberto ao público, com diversos espaços comerciais, e tornar-se-á num projecto imobiliário. Existe uma data prevista para isso acontecer? E como é que encaras isso? Tendo em conta que criaste um espaço que recupera essa filosofia de contracultura, de uma cultura clubbing que advém das comunidades marginalizadas, mas que neste caso está integrado num projecto que é muito fruto da sociedade capitalista.
De facto, é um paradoxo interessante que é bastante representativo da sociedade de hoje em dia. Foi preciso um projecto totalmente capitalista para este clube poder ter as condições de existir — e, por isso, sou agradecido a esse projecto, de nos darem esta possibilidade, mas é bastante paradoxal e representativo das fragilidades da cena underground hoje em dia. Porque depende de projectos do sector imobiliário para existir. Eu soube desde o início que iria ser um projecto temporário, pensei-o como um projecto transitório, mas conto aproveitar ao máximo o tempo que teremos. Não sei quanto tempo é que o Outra Cena vai durar, espero que ainda uns anos, mas acabará quando acabar.
E tens o plano de eventualmente abrir um novo Outra Cena noutro sítio?
Ao ver o que este espaço está a ser, obviamente não me dá vontade de parar agora. Acho que ainda temos bastantes coisas por dizer. Não posso dizer o que será o futuro. Quero que durante a nossa vida continuemos a ser relevantes, a alargar limites e a criar um espaço que continue a ser interessante, que seja de lazer e prazer para as pessoas, e se tem que ser temporário então que seja. Depois, teremos as condições de fazer isto nós, ou serão outras pessoas, inspiradas por vários sítios, que farão outro projecto noutro sítio. Isso não consigo dizer. Ainda falta tempo e, da mesma maneira que fui inspirado por vários sítios para fazer isto, espero que possamos inspirar pessoas a também fazerem projectos assim mais para a frente. Isso também seria um orgulho.
E, já agora, queres mencionar espaços que para ti foram mesmo exemplos de bom clubbing, que te inspiraram a querer fazer o Outra Cena?
Não tenho um sítio em especial que tenha sido uma inspiração completa. Foi um pouco a junção de muitas experiências diferentes que tive. Oiço muito que somos uma versão lisboeta de Berlim, mas quero salientar que muito pouco saí em Berlim… Nunca tinha ido ao Berghain antes de abrir o Outra Cena, portanto esta filiação não é algo que realmente corresponda. Foi algo que foi adaptado ao espaço que tínhamos e à experiência que poderíamos proporcionar, mas se há um clube que para mim é o mais lindo que já vi na vida, e que foi uma inspiração, é o K41, em Kyiv [na Ucrânia].