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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/10/2025

Escutares mais em frente.

OUT.FEST’25 — dia 5: memórias do futuro

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 08/10/2025

Quando o filósofo Pierre Dardot procurava dar nome ao livro que escrevia, encontrou na expressão “A memória do futuro”, um título muito significativo. A ideia surgiu-lhe das feministas chilenas em pleno fervilhar nos movimentos sociais desse país entre 2019 e 2022. A debate, quando elas afirmavam em colectivos: “Não procuramos reproduzir, não procuramos repetir, não procuramos voltar, isso não é o nosso problema”, era no futuro que procuravam reflectir. Era o foco problemático do amanhã — para onde se ir, partindo do presente. A memória desgarrada do passado, apontada desse modo por Dardot, memorizando o futuro, como aquilo que não se escreve, mas que se sonha.

Ligando, em atalho, o tema ao dia final do festival OUT.FEST, 5 de Outubro, com a tripla proposta de uma memória colectiva, numa experiência conjunta através dos sons, cabe escutar o compositor e artista sonoro Erik Dæhlin. Na primeira intervenção artística no território português, Dæhlin em Castro Marim para o Particular Universal de 2022, deixava o testemunho: “Nada somos sem memória; e quando falamos de música, não é possível fazer ouvir sem ter memória, a curto ou a longo prazo, ou ambas”. Adiante afirmando que, enquanto artista e seguro da ideia partilhada com outros intervenientes, “estamos a olhar mais para a frente, quando vamos criar algo novo”.

No Barreiro, último dia de OUT.FEST’25, era tarde de apresentações da micro-residência “Sons do Quotidiano e Memória Coletiva como Tecnologias” na Galeria PADA, um de vários espaços de mudança na zona — da indústria para as artes. O projecto colaborativo europeu tekhnē juntara por uma semana 6 artistas sonoros emergentes: Billy Moisseron (Q-O2, Bruxelas); Radosław Hada-Jasikowski (Trafo, Szczecin); Daina Šteinerte (Skaņu mežs, Riga); Paola Avilés (GMEA, Albi); Nischal Khadka (CTM, Berlim) e Henrique Varanda como convidado do colectivo Tundra de Almada. Recolhas e interpretações sonoras de um espaço, com as memórias no imediato de quem se relacionava com ele, potenciando uma escuta de descoberta efectiva. Foram postais sonoros da antiga zona industrial da cidade os que se ouviram, trazendo a macro e a micro-escala dum lugar com enorme passivo acústico. Daina Šteinerte aliou a componente visual ao som e num exercício stop-motion trouxe como que a perspectiva do espaço acústico por uma lagartixa — ressurgimentos nestes lugares, que por muito tempo silenciaram e afugentaram a vida selvagem. As recolhas feitas pelos 6 sonoplastas são novas entradas para o arquivo sonoro da cidade do Barreiro, que conta com mais de 200 registos desde 2012.



Cidade Som é o nome da plataforma que aloja o arquivo sonoro do Barreiro, partindo de vários projectos da OUT.RA em recolhas sonoras como “Sons do Arco Ribeirinho Sul” e “80 Anos de Água Pública no Barreiro”. É deste último e das muitas entradas disponíveis dos circuitos da água que a artista sonora Matilde Meireles optou como fonte de trabalho para responder ao convite feito para apresentar uma nova peça sonora no OUT.FEST. Com “Tangled and in Perpetual Motion”, Meireles propõe uma escuta demorada na fruição, pontuada pelo fluxo inclemente do tempo, na consciência (em avisos sonoros) das horas a passar, com Diogo Pinheiro de megafone na mão, de lugar em lugar entre os presentes. Como havia comentado em conversa aberta, no segundo dia do OUT.FEST, com Raquel Castro, procurou entender melhor essas recolhas junto do sonoplasta Carlos Santos, que realizou as gravações nas infra-estruturas da água. E o escutar dos sons levou-a ao: “Sim, posso trabalhar com isto”. Uma prática nada habitual no seu trabalho, porque implicou partir de recolhas não suas em grande medida — “prefiro sentir-me envolvida na vez de uma escolha apenas estética dos sons”, como partilhou. Mas esse é um dos propósitos deste arquivo desde a concepção — servir de base, como matéria para ser trabalhada por artistas. Matilde Meireles inaugura essa vontade com esta proposta. Um espaço feito de fluxos, das marés, dos trabalhadores e dos seus horários, dos turnos a cumprir, das idas e vindas dos barcos; “há muita água” neste território, como sintetiza. “Comecei a seguir os caminhos da água e os ecos da água em sentido abstracto — tal como areia”, e assim logo nesse dia se apontava ao que se iria escutar na peça. Ainda a última e pertinente questão, por Raquel Castro, sobre o poder das recolhas sonoras num mundo repleto de crises, deslocados, com guerras em curso e genocídios. A resposta: “Falhámos miseravelmente como espécie, em que nem nos escutamos uns aos outros; como poderemos escutar o que está para além de nós?” Matilde Meireles tenta manter-se positiva e fazer o que consegue. Na meia-hora que durou a sua proposta aural, conseguiu fazer-nos pensar no tempo que nos foge das mãos, como a água que corre aos nossos pés, tempo ao qual estamos atados, o mesmo tempo que marca o movimento perpétuo. Ainda a tempo de apanhar o último barco em mais um aviso sonoro que se escuta.



É a maior produção que o OUT.FEST alguma vez levou por diante. Este espectáculo ao ar livre no coração da antiga zona industrial do Barreiro junta Erik Dæhlin ao Grupo de Percussão da Orquestra de Câmara Portuguesa, o Coral TAB e a Banda Municipal do Barreiro. Uma primeira parte a encher de público o que resta de bancada do antigo campo de futebol de Santa Bárbara, que viu disputas de bola até 1967, como parte desportiva do império industrial da Companhia União Fabril — CUF. Dæhlin trabalha a memória como matéria no sentido musical. Vem da altura em que visitou o Barreiro e a sua zona industrial o interesse em fazer uma peça aqui mesmo. 

Na bancada, não rola a bola mas sim um vai e vem de frases, que estimulam — colunas de som trazem esses pensamentos em voz alta. O direito ao trabalho e às condições dignas, como despregadas de um panfleto sindical. Coros de vozes descontentes com o sucedido ou à espera de dias melhores. Olhamos de frente ao que outrora foi o maior centro empregador fabril da Península Ibérica. Razão de êxodo rural português e crescimento populacional do Barreiro — mas não era só trabalho a vida. Entra em cena o Coral TAB  com o hino do Clube Campismo local. “Vem amigo, vem marchar / connosco nesses campos / Vem amigo aproveitar / o que a vida tem de encanto / verás sol, verás estrelas / verás até o luar / verás as forças mais belas / experimenta, vem acampar”, diz a letra no refrão. Tempo livre — momentos de confraternização que perduram e que trazem emoção à bancada. Muitos dos presentes são da terra e isso sente-se na expressão do olhar. Passa a filarmónica, banda Municipal do Barreiro em modo marchante e a toque de caixa — na musicalidade dos tempos. Um transeunte ciclista, de coluna de som por companheira, deixa o rasto da primeira senha da revolução de Abril. Ao longe um grupo de vozes desponta trechos de poesia a megafone: “Deus não sabe / mas não falta quem lhe vá dizer / que o Homem dos teus sonhos / chega, debruça-se…” A exemplo a liberdade e o desejo ouvem-se na distância poética.

A segunda parte é no mausoléu de Alfredo da Silva — o industrial imperialista da CUF, até aos final do seus dias. Palco ao ar livre para a expressão operática que se segue na proposta impactante de Erik Dæhlin. Um coro ao centro, em recorrentes vozeares monótonos enquanto o tilintar metálico é produzido por núcleos de operários do som, espalhados pelo imponente monumento funerário. É o maquinal registo sonoro dos dias a passar, a saberem ao mesmo diante da máquina ou na rotina da função. A ladear desde o coro estão duas filas de três conjuntos de metalofones de grandes barras. Os instrumentistas do Grupo de Percussão da Orquestra de Câmara Portuguesa ocupam-se do ritmo e andamento da peça num leitmotif. Um ar de cadência austera e impactante acompanha o cair da noite. A banda intervém a seu tempo e traz fulgor nos sopros. Do coro, em ritmo lento, ouvem-se em palavras a ideia de sonhos e incertezas no ar. A banda junta-se ao público e traz o desfecho musical da peça. Foi monumental o que aconteceu! Com isso Erik Dæhlin trouxe à memória a ideia que lhe escutamos em discurso directo, em que “o som volta sempre de alguma forma, seja como som ou maneira de pensar”. Ali, rumo a um futuro (melhor), num local carregado de lembranças do passado, escreveu-se história.


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