Ainda (e sempre) as conversas a ligar as palavras à música e de como a tradição musical é um conceito mutável que corre entre margens instáveis e em tudo vulnerável ao tempo. A compositora Carme López assume — volvida do concerto no dia anterior — o papel de investigadora no campo da etnomusicologia galega e traz em partilha “Tradicional galician music. Tradition and avant-garde”. Dela escutámos excertos das duas marcas identitárias: a gaita-galega e o canto. Uma “muiñeira dos Ancares” pelo timbre do fole, e uma outra recolha, em vídeo, de Rosa e Aida Garrido, duas cantadeiras galegas. Tradição oral, mecanismo de herança cultural em contexto rural pré-industrial. Há que ter bem presente que o que se ouve hoje vindo de outrora imortaliza o momento, mas não o resume como o de sempre. Há mecanismos de transformação entre perdas e ganhos. Contudo sabemos que houve momentos de ruptura, ligados à emigração e ao êxodo rural, e à deliberada manipulação e apropriação fascista franquista, que contribuíram para aceleradas perdas e empobrecimento cultural. López actualiza-nos no contexto dinâmico das Foliadas, a exemplo a da Consagrada. Música tradicional também feita com novas roupagens e instrumentos, de carácter espontâneo e sem obedecer a cânones escolásticos, com uma prática nas ruas em que é ténue ou mesmo inexistente a separação entre músicos e espectadores, a dança e o baile unem-se. Portanto, a música em pleno sentido tradicional, mais que pelo conteúdo imutável, pelo motivo, ancestral como sempre terá acontecido.
Para João Polido, compositor e investigador, o desaparecimento da tradição oral e memória cultural musical suspende a música tradicional num limbo. Com “Spectral Lore of Tradition”, o orador convidado desenvolve uma análise do contexto histórico português, confrontado os campos do tradicional e do popular. A esse propósito traz em leitura excertos das liner notes do disco Seis Cantigas de Amigo (1969) de José Mário Branco, assinadas por Michel Giacometti aclarando a pertinência da inclusão de uma tradição lírica que rompia com o estabelecido foclorismo advindo do Estado Novo. “Entendemos por música popular toda a música que, não sendo erudita nem foclórica, se identifica com os problemas da colectividade (para esclarecer, contestar ou aderir).” Adiante, Polido relembra outro rompimento na definição de “música popular”, com o musicólogo e músico Jorge Lima Barreto em meados do anos 1990 a apontar e incluir a simultaneidade de novas técnicas e processos assimilados no decurso do tempo. A história estende-se aos tempos actuais, levando-nos à ideia, em todo clara, de uma dinâmica musical não cristalizada, antes permeável aos “problemas da colectividade”, para retomar a ideia atrás apontada. Também nesta manifestação diversa musical chamada OUT.FEST encontraremos exemplos nesta esteira, desde logo em Amuleto Apotropaico. Estaremos perante uma música tradicional exploratória? O tempo encarregar-se-á de o comprovar.
Das palavras à música, o palco retoma-se n’”Os Penicheiros” para receber uma acção conjugada de paisagens sonoras e visuais com ϙue x equii (A/V live set). Vlady Che, ucraniano radicado em Lisboa, responde por ϙue aos comandos da electrónica em “TIME” — uma estreia absoluta. Uma performance ambiental em som quadrifónico e em que o cúmplice equii, num frente-a-frente operativo, faz a expressão visual da abstracção sonora. Uma tela que permeia fluxos proto-estáticos dispostos a inter-actuar entre si e da tela à plateia — como no cinema, e neste caso musicado. A música insere-se em campos entre o ambient e a IDM (Intelligent Dance Music). Um vasto espaço a percorrer e de quase de imediato é contraposta com uma outra experiência vivida — aquando da apresentação e estreia em Portugal dos Autechre numa sala às escuras. Aqui as luzes estão em demasia para o intento imersivo. Os robôs nas torres de palco não souberam resistir à acção, e que nem farolins entretiveram-se a ofuscar de luz a projecção. Ora, era suposto os visuais fazerem a sua mediação à música. De certo que um fechar de olhos, um baixar a cabeça resolveria o vivido, mas o estímulo proposto era audio-visual. Aconteceu mas podia ter-se evitado. A acção da dupla prosseguiu reflexiva e compenetrada aos comandos, tornando militante a sua estreia. No final desfraldaram a bandeira ucraniana entre mãos e dedicaram o momento aos artistas que sacrificaram a sua liberdade na defesa territorial à agregação russa.
No mesmo estrado-palco, agora com uma certeira quantidade luminosa — quase penumbra para escutar e ver no sentir a música de Beatrice Dillon. Na bagagem surge com uma imaculada ideia contida em Basho, registo bem recente adicionado ao prestigiado selo GRM – Groupe de Recherches Musicales. Um título retomando a ideia do filósofo nipónico Kitarō Nishida, que remete para o espaço ou campo onde as coisas têm lugar de existência. Uma electrónica elementar, e como se lhe reconhece de maior atributo, muito alicerçada nos ritmos e fluxos texturais ligantes. Uma prestação com momentos conexos apontando a bolhas que se coalesciam em sucessão como estrutura, onde os glitches se escutaram como propagações cromatográficas, propagados sobre a superfície. Mas foi no ritmo que se afirmou soberana, como agente aceleradora de partículas. Registos de polirritmias que tanto apontavam para uma imaginada timbila espectral ou mesmo um qualquer neologismo como “xenofones” a operar, onde na vez da madeira era um outro elemento inorgânico e vibrante, desconhecido e de diferentes origens. Dillon devolveu, com a mestria que se lhe associa, uma fundamental demonstração de saber com imediato resultado no campo aural individual dos presentes — um deleite.
Som e música não têm de ser obrigatoriamente a mesma coisa e, por cá, observámos a estreia de Masma Dream World no nosso país mais como uma performance sonora do que outra coisa qualquer. Não conseguindo rotula-la de concerto, a passagem do projecto a solo de Devi Mambouka pelo Barreiro soou a uma espécie de ritual onde, idealmente, morreríamos todos no final. Felizmente que assim não foi, mas os gritos de devoção a Kali (que mais soavam a raiva e sofrimento) pareciam apontar a um pior cenário. A embrulhar-lhe a voz, um misto entre sons drone e doom metal com um ocasional bombo. Não esteve nem perto de nos encher as medidas, ainda para mais tendo em conta que o seu mais recente álbum lhe valeu uma capa na The Wire. Hype à parte, não falamos a mesma língua que Masma Dream World, que parece ter como único propósito o de causar desconforto perante a audiência — principalmente quando, já perto do fim, a artista desceu à plateia para berrar na cara de algumas das pessoas do público. Parecia uma matança de gatinhos. E nós amamos demasiado os gatinhos.
David Maranha e Rodrigo Amado têm um documento único e recente em Wrecks. Um registo que se tornou icónico tão de pronto na discografia de ambos obreiros de há muito e exploradores sónicos. Um disco que traz no nome uma antítese, em nada fim de linha por um lado — antes um próspero começo entre ambos. Um primeiro encontro em 2024 precisamente gravado na outra margem, mas que faz pleno sentido vivenciado nesta outra margem — oposta. Espaço no qual Amado se completa em pertença, como músico de habitual escuta em várias edições do OUT.FEST. Mas a dupla Maranha e Amado oferece uma possibilidade de ver acontecer uma música que procura transcrever a decadência, de enrugada a amalgamada, da sociedade contemporânea, das cidades dominadas pelo imperialismo em fim de vida — esperemos. Uma rugosidade áspera e transbordante como a inundação sónica do orgão processado de Maranha faz parecer. Uma onda gigante inundou o espaço outrora habitável e onde os diálogos de tensão e libertação do tenor de Amado procuram descrever e mapear o estado das coisas. Um processo que tem um começo definido, mas que propaga e se prolonga num tempo erosivo, e nisso parece num sem-fim, cíclico ou de imprevisto desfecho. Uma peça invariavelmente mutante nos detalhes sobretudo do tenor que aqui nesta margem, no palco das outras margens, se escutou e sentiu em candura mais até que a acutilante forma fixada no registo. Foi por ver a música a acontecer diante dos olhos, num amparo de um efectivo abraço — havemos de voltar em breve em tudo mais.
Mesmo não sendo totalmente devotos a esta sonoridade, as prestações ao vivo de Divide and Dissolve disponíveis nos domínios do YouTube a que fomos assistindo ao longo dos últimos anos eram suficientemente atractivas para nos deixarmos mergulhar no universo causticamente rendilhado pela dupla formada por Takiaya Reed e Sylvie Nehill. Infelizmente, a passagem das australianas pelo OUT.FEST não nos cativou da mesma forma que os vídeos assistidos online. Sim, tem a pujança lenta e característica do doom metal a provocar balanço do pescoço para cima, mas soou tudo demasiado repetitivo, como se cada tema fosse um mergulho num denso loop que nos conquista nos segundos iniciais, mas que perde a graça nas repetições arrastadas. A última das malhas parecia até nem ter fim, de tão exaustiva que estava a ser aquela iteração de guitarra e bateria — só após longos minutos é que a música se desenvolveu para algo com mais nuances e capaz de nos voltar a captar a atenção. Notámos ainda a falta do saxofone, que Takiaya Reed tantas vezes utiliza para dar camadas extra aos temas, nesta passagem da banda pelo Barreiro, já que o instrumento de sopro foi tocado apenas por breves momentos no início de uma das faixas.
Em dia de mixed feelings, mantivemo-nos pela ADAO até à hora que o barco para regressar a Lisboa permitiu, sempre de antenas levantadas para tentarmos encontrar uma nova crush musical. Ficámo-nos pelo “quase”: o auto-proclamado “japanese progressive deconstructed scum new age” dos BBBBBBB foi das coisas mais confusas a que assistimos (incluiu momentos insólitos como, por exemplo, um vocalista que abandona o palco para ir vomitar num caixote do lixo), enquanto que a proposta do punk groovado dos Devon Rexi parecia ter todos os condimentos necessários para nos manter agarrados por mais minutos, não fosse a hora que tínhamos marcada para fazer a travessia do Tejo.