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Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 13/10/2022

Da acalmia necessária ao suor infindável.

OUT.FEST’22 – Lado B: começar de novo (uma e outra vez)

Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 13/10/2022

No seguimento dos terrenos inóspitos do concerto anterior, a norte-americana claire rousay evocou silêncio – para dele tecer uma delicada película entre realidade e subconsciência. Chegando ao Barreiro num absoluto momentum em que vive, a artista ofereceu uma experiência imersiva para os sentidos. Peças instrumentais que são gentilmente arranhadas por gravações do dia-a-dia, sons indistinguíveis e a voz filtrada pelo auto-tune. Se o termo ambiental seja, por justiça e alguma conveniência, o maior atalho para as suas actuações, a verdade é que existe mais matéria além dessa referência. Fragmentos de memórias e sonhos vívidos entrelaçaram-se numa complexa colagem sonora ongoing perante um público atento e curioso. Pontualmente movimentando-se entre o palco e a sala, assim como usando o telemóvel para registar a plateia, rousay também confronta e destabiliza. Fá-lo de modo sereno e natural como quem busca sair – e fazer-nos sair – de uma certa zona de conforto. Esta qualidade de pura ética punk, pouco habitual noutros artistas a operar em semelhantes terrenos, torna-a num caso singular entre os demais.  De resto, tratou-se do tom perfeito para finalizar o dia e fazer o reset mental para noite que, entretanto, caía.



Tem sido uma certeza constante de que o OUT.FEST busca apresentar novas e diferentes propostas nas mais variadas áreas. Frequentemente surgem também oportunidades de presenciar encontros especiais. No palco do espaço ADAO, o percussionista João Pais Filipe voltou a juntar-se ao veterano Burnt Friedman, cerca de quatro anos depois, para chamamentos cósmicos e outros rituais de fogo. Além de integrar nos HHY & The Macumbas, Pais tem erigido um trabalho a solo imensamente fértil; por outro lado, o alemão é um talento com provas mais-que-dadas nas últimas décadas. A cumplicidade entre o duo é notória desde os primeiros minutos, arrancando para um intenso pulsar rítmico. A bateria mecânica, mas telúrica, criou o leito necessário para as movimentações na electrónica abstracta de Friedman – plena de magia boa. Entre laivos resgatados ao dub e a kosmiche que fez a escola alemã, o cruzamento entre a linguagem de ambos estabelece um acesso seguro a uma liberdade criativa em perfeita ascensão musical e anímica. Temas longos, de exploração sub-sónica e exoplanetas circundantes, a narrativa foi real; os momentos de contenção em lume brando tanto reconhecem a tradição ancestral como a direção em futuro. Um belíssimo exercício de hipnose ao vivo, reunindo uma sabedoria certeira (mas nunca virtuosa) e uma visão ampla, extremamente lúcida, no que um dia os próprios descreveram como automatic music.



Novo encontro de mundos, desta vez entre os míticos finlandeses Circle e o trovador dos nossos tempos, o britânico Richard Dawson. Num concerto que rapidamente se assumiu como espécie de celebração mais freak em redor do rock, a lição aconteceu. Canções de natureza simultaneamente sagrada e profana, maioritariamente saídas do disco de 2021 Henki, cuja genética se distribui pelo fluxo kraut, pelos ataques headbangger e uma determinada teatralidade, imponente na expressão; tudo a confluir num desfile que não excluiu proximidades ao folk ou a instantes em que o psicadelismo foi rei. Talvez o mais interessante tenha sido denotar o à vontade com que este esforço criativo atravessa pelo tempo e por paisagens tão díspares, sem no entanto se armadilhar no revisionismo. O cariz épico que por vezes emana do grupo soou, de certa forma, enquanto catalisador emocional. O ovni criado pelas guitarras dos Circle iluminou a penumbra das letras de Dawson e ao longo de cerca de uma hora essa sinergia revelou-se constantemente surpreendente. O poder da alquimia nas mãos do Homem.



A actuação mais suada deste OUT.FEST terá sido provavelmente dos Prison Religion. Munidos de quatro CDJs e dois microfones, debitaram-se beats enfurecidos do hip hop ao gabber, passando pelo industrial. Todo e qualquer som viria envolto de lava, mesmo quando se aproximavam dos meandros do trap, envoltos numa espessa nuvem de fumo que entretanto adensava a catarse do momento.

Circulados pela audiência, o duo de Virgínia improvisou ali mesmo um ringue guiado espiritualmente pela urgência do punk hardcore norte-americano. Poozy e False Prpht foram os mestres de uma cerimónia negra, sedenta de expressividade física. A identidade profundamente libertária da dupla sente-se no modo como cospem palavras de (des)ordem e abordam, sem papas na língua, complexos temas sociais que assolam esta realidade que procuram romper. Energeticamente abriu caminho para o patrão que se seguiria, mesmo na sala ao lado.



Há figuras cujo percurso tem sido tão vasto e essencial que, a dada altura, é inevitável não serem coroadas com uma certa aura lendária. E com justiça, diga-se. RP Boo nasceu e cresceu em Chicago, desenvolvendo ao longo dos anos um género frenético e transgressor que um dia viria a ser reconhecido como footwork. Por aqui, deixou mais que claro porque detém essa posição, demonstrando não apenas mestria, mas, acima de tudo, uma vontade inesgotável de continuar a desconstruir o som e a herança da música de dança nas últimas décadas. Não deixou de ser admirável como pegou em alguns êxitos bem famosos da disco sound e transformou-os numa mutação como poucos seriam capazes de fazer acontecer. Houve ainda tempo para a revisitação em redor de álbuns emblemáticos como Legacy ou Established!, autênticos documentos de música urbana exploratória. Divertido e comunicativo, protagonizou uma genuína celebração rítmica, ao longo de quase duas horas (!), simplesmente perfeita para a fase da noite. Absolutamente notável.


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