O último dia do OUT.FEST foi o que nos levou a explorar mais o Barreiro, enquanto procurávamos os cinco espaços espalhados pela cidade onde os concertos iriam decorrer, fundindo no mesmo meio os habitantes e os visitantes, que se vão gradualmente habituando à presença uns dos outros.
Os Bezbog fizeram as honras de iniciar este dia, levando-nos a conhecer o Moinho de Maré Pequeno, um edifício que, apesar de datar já do século XVII, foi recentemente requalificado, apresentando uma estética moderna e simples. O duo nortenho “patrocinado” pela Favela Discos baseou o seu espectáculo em criações de loops em tempo real, que depois eram transformados em sons completamente diferentes, fazendo crer que não estávamos a ouvir uma repetição constante. Os múltiplos loops de saxofone sobrepostos deram uma voz mais desafiante ao instrumento, que fora acompanhado pela exploração das capacidades sonoras de um pedaço de chapa de metal, que tanto interveio na composição para explorar a parte melódica através de um arco de violino ampliado como para introduzir uma componente rítmica com simples batimentos que ecoavam pela pequena sala. À medida que o concerto prosseguia, os sons foram-se tornando mais processados, a atonalidade ganhou um papel importante na melodia, e jogaram bastante com a desconstrução rítmica através da exploração das diferentes relações que os loops podiam ter com o que estava a ser tocado pelos artistas, com atenção às pequenas latências entre ambos, que foram progressivamente aumentando.
A paragem seguinte foi na Biblioteca Municipal do Barreiro para um dos momentos únicos que este festival nos proporcionou, neste caso em parceria com a Red Bull. O virtuoso compositor norte-americano Keith Fullerton Whitman aliou-se a três dos artistas mais exploradores do panorama nacional de música electrónica, Clothilde, André Gonçalves e Simão Simões, para apresentar o resultado da residência artística que os levou, durante uma semana, a partilharem diferentes ideias (existe uma grande diferença entre o background de cada um dos membros), as suas histórias e as suas técnicas. No meio da sala, com cada membro de um lado do rectângulo e todos voltados para o centro, o público rodeou os quatro artistas e ocupou grande parte o espaço, num ambiente calmo e introspectivo, enquanto aguardavam que a paisagem sonora fosse desvendada pelos artistas. A performance foi desde cedo preenchida por uma parafernália de sons que eram atirados pelas quatro colunas que estavam nos cantos da sala viradas para o centro, com as texturas a prevaleceram em relação às melodias. Era possível notar os elementos que cada um introduzia na composição, apesar de actuarem sempre como uma única célula que trabalhava em prol da exploração de sons que tinham raízes em géneros como industrial, glitch, ambient e até mesmo acid.
Após uma primeira parte super preenchida, os ânimos acalmaram e a composição tornou-se mais melódica, simples e espaçada, o que nos levou a viajar até muitos sítios diferentes dentro das nossas cabeças e a criar um momento de maior introspecção, até ao desenlace final em que se ouviu finalmente um beat que criou uma componente rítmica que até ao momento estava diluída dando as ordens para o fim da performance.
Para descansar um pouco e acalmar os ânimos levantados pela sopa sonora que tínhamos acabado sorver, nada melhor que o concerto de Violeta Azevedo, que nos levou de novo ao Moinho. Com sol a preparar-se para ir embora, a compositora lisboeta apresentou-nos uma dança etérea entre a flauta, a sua voz e os múltiplos pedais que dão vida ao seu pequeno ecossistema verde, modulados suavemente com os seus pés. Violeta convidou-nos a entrar no universo primaveril, onde o sol raia, as plantas florescem, a biodiversidade abunda e os problemas parecem insignificantes, deixando tanto o nosso corpo como a nossa mente a flutuar pelo ar, afastando-nos cada vez mais de um mundo físico concreto. Progressivamente, auras mais sombrias começaram a penetrar esse pequeno mundo e acabaram por tomar conta dele, mudando a energia do concerto para uma sonoridade mais tensa e dramática, o que nos levou a concluir que a dimensão criada pela artista não foge assim tanto à dialéctica entre o bem e o mal que paira na nossa realidade e nas nossas acções, visto que os mesmos elementos conseguiram transmitir-nos energias radiantes e sombrias em contextos diferentes.
Ainda antes do sol se pôr, David Kehoe invadiu o Largo do Mercado Municipal 1º de Maio, onde, em formato trio, nos trouxe desde Dublin a música inrotulável a que a sua editora Wah Wah Wino já nos habituou. A harmónica – cujo som foi completamente transfigurado através de pedais – foi a peça-chave do compositor, que foi acompanhado por um beat electrónico lo-fi que se repetiu durante toda a música, riffs de baixo com uma certa aura punk, e vários sons sintetizados e sujos que culminaram numa energia semelhante a um update secular do post punk britânico dos anos 70.
O resto da noite passou pela SIRB (Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense) Os Penicheiros, um espaço com um enorme peso histórico no período em que a máquina industrial da CUF era o principal motor cultural do Barreiro. Este espaço é agora utilizado para se investir na criação de uma nova identidade para esta cidade, contribuindo também para um bem estar geral e para a educação da população que nela habita. James Ferraro foi o primeiro a subir ao grande palco, acompanhado do seu teclado “dinossauro” da Yamaha com que explorou as sonoridades nostálgicas que marcam intensamente a ambiência da sua pop hipnagógica. Escondido por trás de uma imensa camada de fumo, Ferraro mostrou-nos peças que remeteram para um estilo barroco, compactando toda a sua orquestra de mil e um sons num só instrumento que espalhava melodias ambiente super sintetizadas. E assim navegámos pelo cosmos antropoceno com arpeggios que nos levam de volta aos anos 80, com uma pronunciada ausência de beat. Nadah El Shazzly seguiu-se no palco, fazendo-se acompanhar por bateria, violoncelo e guitarra (com uns toques electrónicos), instrumentos que transportaram as melodias tradicionais egípcias para uma nova dimensão conceptual mais actual. Apesar da barreira linguística, a sua voz apresentava uma transparência emocional que não deixou o público indiferente à sua dor, inconformismo e espírito revolucionário, conseguindo inclusive calar o recinto inteiro dos Penicheiros para a ouvir cantar a última música sem qualquer amplificação.
A máquina do tempo dos Dälek transportou-nos ao mesmo tempo para os primórdios do hip hop industrial dos anos 90 e para os anos industriais do Barreiro. O duo de Nova Jérsia composto por MC dälek e Mike Manteca não falhou na missão de cativar o público, levando toda a gente a abanar a cabeça ao som das malhas distorcidas do seu hip hop de raízes old school (deixando escapar 808s ocasionalmente), num ritmo lento que lhes permite dar espaço aos elementos para terem bastante intensidade sónica sem que esta seja avassaladora. A sonoridade crua e fabril do concerto ecoou por toda a arquitectura da cidade, deixando a impressão que, apesar de viverem do outro lado do Atlântico, se sentiram como peixes dentro de água, e que perceberam a relação existente entre a sua música e a história do palco que estavam a pisar.
Por fim, o projecto Still, guiado pelo italiano Simone Trabucchi, trouxe uma energia inesgotável que foi transportada não só pelo som como pela atitude dos dois MCs em palco, que puxaram bastante pelo público impondo uma forte presença. A mistura entre várias vertentes da música electrónica britânica, como dancehall, dub, ska e grime, com um forte teor político, lírico e visual ( imagens com frases como “police brutality” e “justice, peace, truth”) fizeram do projecto underground italiano a escolha perfeita para terminar a 16ª edição do OUT.FEST.