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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/10/2019

De Kali Malone a DJ Firmeza.

OUT.FEST’19 – 4 de Outubro: as várias caras da catarse

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/10/2019

Após a abertura do festival com um par de concertos memoráveis, o segundo dia de OUT.FEST prometia mais uma série de espectáculos dificilmente esquecíveis, deixando as melodias de lado e focando-se na arritmia, colagem e brusquidão.

Ainda antes de nos dirigirmos para o espaço ADAO, que albergou seis dos sete concertos de ontem, continuámos a nossa peregrinação pelas igrejas do Barreiro e, se no primeiro dia demos de caras com um edifício mais minimalista e moderno, agora deparamo-nos com os detalhes barrocos do altar-mor da Igreja Da Nossa Senhora do Rosário, um espaço que carrega consigo história que se estende até ao  século XV. À medida que entra, o público vai observando as magnificas estátuas de anjos e outras figuras religiosas, os ramos de flores e o revestimento a talha dourada, com a Nossa Senhora do Rosário no centro de tudo, com uma luz clara a rodeá-la, que segura ao colo Jesus Cristo. O público não veio, no entanto, para apreciar a arquitectura barroca, mas sim para ouvir música.

Kali Malone iniciou a sua homilia dividida em duas partes no órgão de tubos da igreja do século XVIII localizado no coreto por trás do público, no qual apresentou algumas músicas do seu último álbum, The Sacrificial Code. A localização do instrumento permitiu criar uma ausência do artista em palco, o que nos permitiu focar ainda mais no som deste, e ainda contemplar mais detalhadamente o altar da igreja com uma banda sonora imersiva e melancólica. Na segunda parte da missa, a americana residente em Estocolmo mudou a orientação do concerto para o centro do altar no qual modulou loops com as suas máquinas destrutivas, bem mais altas que o volume do órgão, criando uma sonoridade dark ambient no princípio (que lembra Sunn O))) e Neptune Towers, mostrando as suas influências metaleiras), com samples que nos remeteram para o som do seu instrumento predilecto e que foram sendo mais processados de forma progressiva, criando uma bomba sonora que nos trespassava o corpo e deixava todas as nossas células a vibrar. A partir daí, a intensidade do concerto aumentou até um ponto em que parecíamos conseguir ouvir quase todas as frequências do espectro sonoro a vir violentamente contra nós, e que só aumentava ainda mais se fechássemos os olhos e nos concentrássemos somente no som que deixou os corpos da audiência dormentes. O eco natural da igreja, tal como no dia anterior, voltou a ter um papel activo no espectáculo, tanto pelo preenchimento sonoro que ofereceu ao corpo da obra, como pela amplificação dos rangidos dos bancos de madeira nos quais o público estava sentado, que, mesmo involuntariamente, foram parte integrante da performance.

Após uma pausa para jantar e digerir o concerto que se tinha acabado de ver, o festival levou-nos até à ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios, um edifício abandonado (antiga sede da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste) que recebeu uma nova vida em 2015 e se tornou um dos projectos de maior dinamismo cultural no país. Os veteranos experimentais Calhau!, que já há muito nos habituaram a não sabermos o que esperar dos seus concertos, vestiram-se a rigor para nos apresentar uma composição noise completamente desconstruída na qual utilizaram instrumentos como colheres de pau e mangueiras — para o processamento da voz –, para além dos já habituais pedais ruidosos, dois deles anexados ao peito da figura masculina do projecto, que tinha também uma espécie de sensores fotossensíveis na sua cabeça. Para além do duo inseparável, Marta e João von Calhau, o espectáculo multidisciplinar (elementos luminosos e performativos tiveram um papel importante) contou ainda com uma pianista que tocava o seu instrumento de forma monossilábica e integrava a arquitectura sónica dadaísta que foi desenhada perante o olhar de um público muito atento.

Seguiu-se Alpha Maid, que veio directamente de Londres para nos mostrar o que se faz de underground na capital britânica. Com fusões de vários géneros distintos, a artista encarregue da guitarra e dos sons electrónicos, acompanhada por um baterista, teve uma abordagem minimal na sua composição, misturando elementos de electrónica com grunge que se reflectiam em sonoridades agressivas que, devido ao espaçamento e à prolongação de ideias em grandes loops, acabavam por perder alguma dessa força, o que permitiu também ao público poder respirar um pouco.

Sem ninguém reparar, demos por nós a viajar no tempo até aos anos 90, envolvidos na electrónica industrial e suja de Ilpo Väisänen. O finlandês, antigo membro do duo Pan Sonic, mostrou neste concerto ainda ter muita matéria a oferecer: os beats, que por vezes colidiam ritmicamente sem um fio-condutor que nos deixava sem saber prever o que nos esperava a cada minuto, com uma transparência sonora e uma intensidade no ruído que conquistou o público, no qual alguns corajosos ainda tentavam encontrar o ritmo das músicas para conseguir dançar, muitas vezes sem sucesso, acabando por se ficar por abanar a cabeça.

Num dia marcado pelo ruído, os Deaf Kids acrescentaram o punk e o metal psicadélico à equação, abusando dos efeitos delay na voz, apesar de manterem uma essência bastante crua, construindo paredes sonoras abrasivas e destrutivas com guitarra, baixo, e uma bateria bastante rítmica e orgânica que nos remetia rapidamente para as raízes brasileiras da banda, acompanhadas por um vídeo psicadélico. Os tons das notas eram misturados e desvaneciam em prol da violência sonora que cada instrumento trazia, tal como as letras que se tornavam imperceptíveis com os efeitos que o vocalista, escondido atrás do seu próprio cabelo, utilizava. O público deixou-se levar pela energia do “Goa Punk” da banda, culminando num mosh(amistoso), algo que não é fácil de encontrar na história deste festival.

Os últimos passos do dia dados no campo destrutivo e agressivo vieram dos Yeah You, o peculiar duo britânico pai-filha. Tal como os Calhau!, a aparente ausência de estrutura musical reinou durante todo o concerto, que incidiu maioritariamente no processamento de vozes que se tornavam difíceis de decifrar, sobrepostas a ruídos violentos e ressonantes que provinham do equipamento de Gustav Thomas, dando-nos uma lição sobre as diferentes manifestações físicas e musicais que o punk pode atingir. O encerramento do dia foi levado a cabo por DJ Firmeza, que substituiu o duo MCZO & Duke. O jovem prodígio da Príncipe Discos explorou várias vertentes sonoras, desde o pop ao kuduro ao funk, culminando sempre na sonoridade com a batida energética à qual já nos acostumou.

Ao longo deste dia, foram vários os momentos catárticos que percorreram os vários concertos, dignos de Aristóteles os colocar no mesmo nível da tragédia grega Édipo Rei. Independentemente das divergências musicais entre as performances, esses momentos de limpeza mental e de purificação foram causados pelos enormes muros sónicos que tivemos de enfrentar, fosse através de drones densos que nos trespassavam enquanto fixávamos o olhos da estátua de Nossa Senhora, com guitarras distorcidas e baterias pesadas ou desconstruções super desafiante para o cérebro resolver. Indiferente é uma palavra que ninguém que passou pelo segundo dia do festival pode utilizar…


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