pub

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/10/2019

Gabriel Ferrandini (acompanhado pela Camerata Musical do Barreiro) e Peter Evans foram os protagonistas no dia inaugural da edição deste ano do festival barreirense.

OUT.FEST’19 – 3 de Outubro: no primeiro dia, Deus criou o som

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/10/2019

Em pleno 2019,  num Portugal que, apesar de nos apresentar uma quantidade de festivais de música nunca antes vista, poucos não são abalroados pela maré de pessoas que seguem a tendência de frequentar este tipo de eventos mais pela pegada social que pela programação em si, o OUT.FEST é uma miragem no deserto para aqueles que gostam de ir a concertos em que o silêncio do público impera deixando os ouvidos em alerta máximo. O festival, que já vai na sua 16ª edição, leva-nos a explorar várias zonas diferentes do Barreiro, obrigando os turistas sonoros que vão passar lá os próximos três dias a criarem uma relação mais forte com a cidade, a conviverem com a população que lhe dá vida e, quem sabe, a apaixonarem-se por ela.

Neste primeiro dia, o festival levou-nos até à Igreja Paroquial de Santo André, localizada num local que de dia nos permite ter vista para o Tejo, Coina e Barreiro. Este edifício peculiar de forma circular que conta apenas sete anos de vida apresenta uma aparência simples por fora, e continua nessa corrente pouco adornada portas adentro, até nos depararmos com o retábulo enorme que apresenta vários momentos da vida de Jesus Cristo, plano de fundo para os concertos que se avizinhavam. Esta igreja oferece o contexto perfeito para um serão dedicado ao experimentalismo, não só pela dualidade que existe tanto no edifício como nos concertos (muita exploração do vazio, reestruturação e reaproveitamento de técnicas clássicas aplicadas ao mundo actual), mas também pela reverberação natural do espaço, do qual os artistas tiraram proveito para os seus espectáculos. Gabriel Ferrandini mostrou-nos a sua peça Kimbro Slice, (em homenagem ao pugilista deste mesmo nome, e a Only The Lonely, de Frank Sinatra), que compôs para tocar com a Camerata Musical do Barreiro, acompanhados pela voz de Miguel Abras. Apesar da composição pertencer ao percussionista, o ponto central do círculo, criado pelos bancos da igreja onde público se sentava, foi dedicado à orquestra local, que foi também quem definiu o andamento da performance. Num ritmo bastante lento e progressivo, os instrumentos de corda dos 17 músicos criaram um drone que se prolongou durante quase todo o espectáculo, com o devido espaço dado a cada instrumento para respirar, sem que no entanto nenhum sobressaísse, como se de uma só célula se tratasse. A orquestra representou um papel importante não só na mudança de intensidades ao longo da peça, mas também na criação de tensão nesta, através de breves momentos que destoavam da sonoridade harmoniosa que criaram. Os outros dois organismos presentes, Ferrandini na sua bateria num canto escuro ao lado do altar, e Abras em cima deste, serviram então para dar um rumo na composição e adicionar diferentes dinâmicas e pormenores que criaram uma nova energia e impediu o público de desviar a atenção do que estava a ouvir. Com uma composição lírica de teor religioso, não fosse o concerto num sítio adequado para a ocasião, sentiu-se uma forte conexão entre o espaço, a performance, e os artistas, quase como se não fizesse sentido ouvi-la ser tocada noutro lugar. Quase no fim da peça, a orquestra silencia-se e resta a voz, que por esta altura ganhava mais teor melódico, e a bateria desconstruída, com a predominância de uns timbalões bastante ressonantes que criaram profundidade na música. Foi com espanto que se recebeu esta nova abordagem muito mais lenta que aquilo que Ferrandini nos costuma apresentar, na qual ele consegue integrar perfeitamente o seu estilo de percussão que transforma cada batimento num acontecimento singular.

Enquanto o público se prepara para o próximo concerto, consegue-se ouvir vindo do backstage um trompete desenfreado a percorrer toda a sala. Este som pertence a Peter Evans, que tem já uma reputação bem cimentada no circuito internacional de jazz dos últimos 15 anos. A solo, apenas com o seu instrumento, o trompetista não necessitou de nenhum equipamento de amplificação para se fazer sentir na igreja, recorrendo apenas ao eco natural do espaço onde tocou, eco esse que utilizou para conseguir construir camadas de várias notas que se fundem no etéreo. A sua respiração foi testada por várias vezes em progressões que davam a parecer que os seus pulmões eram infinitos, utilizando os sons da sua respiração assim como a própria voz, com a qual criava pequenas melodias enquanto tocava. Num espaço de uma hora, Evans explorou todas as formas possíveis de modelação de som do seu instrumento, recorrendo a várias estruturas que o permitiram abordar o instrumento de mil e uma formas num espaço tão curto de tempo, com transições de intensidade selvagens entre pequenos sopros que mais pareciam pássaros num parque num dia solarengo e sons que lembram buzinas de um navio em alto mar.

Numa noite de concertos de grande qualidade e experimentalismo puro e duro, a menção honrosa vai para a igreja em si (e para a organização, que escolheu este espaço para os concertos), que teve um papel extremamente activo no som das composições, que foram devidamente adaptadas à ambiência do espaço.

pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos