[TEXTO] Vasco Completo [FOTOS] Vera Marmelo
A 15ª edição do OUT.FEST – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro decorreu no passado fim-de-semana, nos dias 5 e 6 de Outubro. Citando a apresentação, o importante festival celebra alguma da música experimental mais interessante com um cartaz variado onde se encontram “criadores portugueses, brasileiros, ingleses, italianos, alemães, finlandeses, iranianos e japoneses, dos 20 aos 80 anos de idade, do jazz ao rock e às músicas electrónicas e a tudo o que se possa imaginar pelo caminho”. Esta dimensão internacional da programação demonstra como a motivação pela experimentação e pela busca das possibilidades do som se alarga a vários países, continentes e culturas.
Assim, esta reportagem visa não só relatar alguns dos concertos, mas também relembrar e reforçar a importância da ideia de “Música Exploratória”. Pôr em relevo a experimentação, a procura pelos novos sons, ou as inúmeras possibilidades de junção entre diferentes timbres são algumas das avenidas exploradas pelos artistas alinhados com esse conceito. São estes “cientistas loucos” nos laboratórios musicais que procuram as próximas grandes descobertas – sejam elas novas e incríveis músicas, novos conceitos, novas possibilidades ou novas reacções num curioso público – e é a estes criadores que os cultores das mais diversas tendências vêm depois buscar elementos e ideias.
Um ligeiro atraso impossibilitou a nossa comparência nos concertos de Anton Nikkilä e de Vladimir Tarasov, ambos apresentados pela Unearthing The Music, projecto que “se propõe dar visibilidade às músicas experimentais criadas nos regimes não-democráticos europeus na segunda metade do séc. XX”. Por isso mesmo, começámos, já depois da hora de jantar, por assistir à actuação de João Pais Filipe, que regressava ao Barreiro depois de passagens por outras edições do festival.
A performance do baterista, percussionista e escultor sonoro portuense incidiu somente sobre instrumentos de percussão. O que é mais interessante é que todos os instrumentos que utiliza são por si construídos ou modificados. De notar o uso do prato com um pedal, algo pouco comum, e o uso do gongo, trabalhando os harmónicos e propriedades vibratórias do instrumento: foi possível notá-lo logo na segunda música do espectáculo, que vivia de um jogo com os pontos de ressonância do grande prato, usando um arco de violino. A partir desse mesmo instrumento, o mais vistoso no palco, João iniciou o seu concerto na Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios em que apresentou o seu disco homónimo, lançado recentemente pela Lovers & Lollypops.
Não tendo sido tocado igual, batida a batida, porque, confessa-nos, tem alguns overdubs no disco, o material entretanto editado adaptou-se ao espectáculo e deixou espaço para a improvisação. A partir da sua bateria completamente modificada a seu gosto e tacto, demonstrou como aborda a construção musical completamente baseada nos ritmos, nas variações de tensão pela dinâmica, pela intensidade e por variações de batidas com jogos de timbres a evocarem modos do médio oriente e do continente africano. Claramente dotado duma exímia capacidade técnica enquanto percussionista, João demonstrou uma coordenação exigente e virtuosa, obrigatória para executar polirritmia desta forma.
Seguiu-se imediatamente, na sala vizinha do ADAO, o concerto de TODA MATÉRIA. O conjunto, que foi formado por Joana da Conceição e conta com as contribuições de Maria Reis, Mariana Pita, Sara Graça e Sara Zita, uniu vários elementos musicais e expandiu-se para inusitados campos: uma das integrantes esteve inteiramente dedicada à dança, apresentando uma performance interpretativa. Os restantes elementos do grupo focaram-se em guitarra, teclados e efeitos, sampler, (de modo a trazer os ritmos e samples ao espaço sonoro comum) ou flauta transversal.
Um pouco ao estilo da música electroacústica ou, mais concretamente, da música mista, TODA MATÉRIA junta elementos acústicos, instrumentos manipulados por via de efeitos, e electrónica. Numa mescla de caos e organização telepática, os vários objectos sonoros encontraram-se e desencontraram-se no espaço, num conjunto de loops e experimentação rítmica, ao mesmo tempo que a dança se impõe num bonito exercício que colocou a noção de metamorfose em evidência.
Não poderia faltar a uma festa de exploração e experimentação um trabalho do relevo de Belzebu, disco recentemente recuperado para o presente pela nascente Holuzam. À luz do que foi o disco dos Telectu há 35 anos, António Duarte tem-se juntado a Vítor Rua para várias performances a partir do material daquele que foi o segundo registo na discografia do projecto que, originalmente, incluía os préstimos de Jorge Lima Barreto, entretanto desaparecido.
Em mais um espaço carismático – depois das apresentações no Teatro Maria de Matos e no terraço do Lux –, a plateia vibrou com uma atenção e vigor que também se espalhou às restantes actuações da noite. Rua apresentou-se, como é habitual, à guitarra, jogando com os efeitos para criar grande parte da profundidade das músicas futuristas do grupo, mas também recorrendo a alguns dos loops que definem a identidade e intenção artística do tom minimal repetitivo de parte do trabalho dos Telectu. António Duarte, em paralelo, tratou da regularidade, da variedade tímbrica e assegurou a componente electrónica do grupo. Um faz-tudo que à mesa dispôs, uma vez mais – e numa versão mais reduzida em comparação com a do terraço do Lux – de um pequeno xilofone, uma guitarra, teclados, sintetizadores e outros artefactos. O som dos arpejos, dos feedbacks e delays da guitarra, trouxe o imprevisível à noite num jogo de criativa invenção… nada que não estivéssemos à espera tendo em conta o calibre de improvisador atribuído a Vítor Rua.
As group A, num formato também semelhante ao que tínhamos presenciado nos Jardins Efémeros, em Viseu, festival que celebra os mesmos valores do OUT.FEST, estiveram mais perto de nós, fisicamente e emocionalmente falando, num concerto mais íntimo, mas igualmente perturbador e agressivo. A experimentação do som pela síntese sonora, pelo jogo dos efeitos na captação do violino e do som da respiração, percorreu a performance bastante teatral e cativante do duo japonês. Assim, a transformação lenta segurou-nos, sem problemas, a atenção, e ouvimos o som que vai buscar influências a correntes como o Dadaísmo, mas também algumas marcas da corrente industrial.
O fecho da primeira noite deu-se com uma das artistas mais interessantes da actualidade em Portugal: Nídia. O seu set, que perdurou até às 2h30, trouxe novidades muito relevantes para o seu concerto e, possivelmente, para o seu espectro musical. Começou sozinha e numa passada lenta, a aquecer a audiência na sua tipologia normal de batida. A subida de G Fema ao palco marcou o primeiro momento de maior reacção do público. Essa primeira participação no concerto trouxe uma aceleração do ritmo. Depois de colocar a segunda mudança, nunca se voltou atrás, e a audiência seguiu a produtora da Príncipe Discos numa celebração desenfreada da energia que esta música transporta.
Mynda Guevara juntou-se às duas artistas que já se encontravam em palco e, em crioulo, se festejou, nesta refrescante noite do 1º dia do festival. Mais tarde, também apareceram dois percussionistas, de grande virtuosismo e dinâmica que reforçaram a dimensão física da música de Nídia, abrindo cada vez mais o apetite para dançar. Aconteceu, portanto, exactamente, o que devia acontecer: as batidas estrondosas da produtora e DJ elevaram as vozes que se deitaram nos seus instrumentais de “outros tipos”, e o público compreendeu a grandiosidade do que se estava ali a passar.
O segundo dia, bastante mais preenchido no que toca a concertos, apresentou-nos mais alguns espaços também. Antes de lá irmos, ainda almoçámos na Tasca da Galega, restaurante onde pudemos conversar com Clothilde e o seu companheiro Zé Diogo Mateus aka HOBO, sobre as máquinas que Sofia Mestre leva para o palco.
Clothilde, com o seu recente disco Twitcher, admitiu ter chegado à música de maneira algo descomprometida, tendo crescido “apenas” como uma grande amante da arte do som, não como artista ou aprendiz de música. Inspirada por compositores precursores do minimalismo e cultores da música improvisada, a artista apresentou o seu espectáculo na Escola de Jazz por via de instrumentos construídos por HOBO, e jogou com a síntese sonora e a junção entre os vários timbres, como se estivesse num laboratório à procura da fórmula correcta. O resultado foi a criação de bonitas harmonias, entre a dissonância e a consonância, deitadas num ritmo constante, às quais são ainda adicionadas novas camadas e texturas, que só evidenciam todos estes elementos.
Com as actuações sobrepostas no horário, perdemos concertos de Kaja Draksler, Lea Bertucci, Opus Pistorum, Império Pacífico, Odete, Kerox e Cândido Lima. O único “problema” que podemos apontar à organização do festival barreirense é afinal de contas a fartura de um cartaz que aponta em múltiplas direcções.
No Largo do Mercado 1º de Maio, presenciámos a aparição do “espírito curioso” de Jimi Tenor, como garante nos seus materiais de comunicação e de forma feliz o OUT.FEST, um verdadeiro acumulador de variadíssimas influências. Carismático, o multi-instrumentista variou entre diferentes ferramentas, tendo sempre como recursos centrais a sua drum-machine e o seu grande Moog, instrumento que ocupa metade da mesa que o separava do público plural que traduzia em dança os ritmos que guiam todo o concerto. Por ali identificámos Alex D’Alva Teixeira, Tó Trips e muitos dos músicos que actuaram no dia anterior. Jimi Tenor ainda recorreu constantemente à flauta transversal e ao saxofone, instrumentos que dominava sem grandes dificuldades. Entre os ritmos africanos, a electrónica, alguns ecos da música progressiva e do pop dos anos 70, sonoridades e ritmos do dub, e muitos outros, dançou-se alegremente enquanto a mente divagava seguindo as letras espirituais de Tenor.
Na lista de concertos que impunham maior curiosidade, Rafael Toral destacava-se acima de todos os outros. O supra-sumo da música experimental portuguesa apresentou-se na companhia de Riccardo Wanke, que levou o seu Hohner, e usou a seu belo prazer a imprevisibilidade dos sons, testando as reacções dos campos electromagnéticos. Um exigente trabalho de engenharia e domínio perfeito de noções de física.
Moon Field, lançado pela Room40 no ano passado, foi a base do alinhamento da actuação, que foi adornada visualmente pelas ilustrações de Rui Toscano. O trabalho do espaço sonoro para Toral dá-se quase totalmente sem processamento de efeitos áudio nos seus instrumentos: a pureza e crueza destes elementos sonoros são uma descoberta tanto para os músicos como para audiência, que se delicia com os ambientes harmónicos criados pelos teclados, e com os solos dos amplificadores, molas, ou flashes transformados em instrumentos a que acrescem efeitos espaciais que impõem uma atmosfera algo jazzística e electrónica. Hipnotizante e explorador, sem dúvida.
Antes do jantar, regressámos ao Largo do Mercado para ouvir HHY & The Macumbas. Claramente com uma dimensão ritualista, tanto pelo som como pela teatralidade da performance, o grupo, constituído por um percussionista, um baterista – João Pais Filipe, que já tínhamos visto no dia anterior –, um trompetista e Jonathan Uliel Saldanha, trouxe de volta o ritmo para o centro daquele espaço. O desenvolvimento metamórfico dos motivos sonoros centrou-se mais na componente rítmica muito sincopada, e a afirmação final dos espaços sonoros deu-se nos timbres do trompete e do sampler, que acabaram por definir emocionalmente (ou espiritualmente) este ritual hipnótico e transcendente.
Por causa do cancelamento de FRET, projecto de Mick Harris, Mohammad Reza Mortazavi, que tocava imediatamente a seguir com Burnt Friedman, ainda mostrou, sozinho, a sua habilidade no tombak, instrumento tradicional do Irão. Genial na forma como executa e consegue, somente a partir deste instrumento, criar músicas inteiras e transcendentes. Tem uma abordagem a um instrumento acústico muito semelhante à que tem um produtor de electrónica com um estúdio inteiro. A busca de timbres é essencial e é um dos principais focos de uma apresentação que evidencia igualmente a mestria técnica da percussão de Mohammad.
Logo a seguir, e após uma breve pausa, o músico juntou-se a Friedman para a apresentação dos YEK. O duo funciona muito bem, com o tombak de Mortazavi a ritmar e a imitar as frases da síntese modular que o músico alemão executava pelo computador e sintetizadores. A interacção hiper-coordenada entre os músicos, e a dinâmica e tensão estabelecida entre os instrumentos electrónicos e acústicos, trouxeram ao momento uma ambiência curiosa, considerando o espaço que era maior do que se consideraria ideal para um concerto tão bonito e intimista. Uma actuação muito sóbria de música electrónica ambiente, de quase transe, no qual só pecou a audiência que, numa sala relativamente composta, esteve particularmente faladora. Considerando a delicadeza da música ali executada, o público demonstrou particular desrespeito pelo grupo.
A agenda da sala dos Penicheiros foi encerrada através de duas figuras que não deixam ninguém indiferente, apresentando música que evidencia as questões de género e da sexualidade. Vamos por partes.
Lotic, DJ, produtor e cantor, apresentou-se num formato em que a música agressiva, do industrial e da electrónica, a samplar batidas de metal, suportavam as suas harmonizações vocais esporádicas. Avassalou a audiência que o aguardava, e trouxe alguma energia ao cansaço que já se fazia notar num segundo dia de festival. Focado em parte nas vozes, em parte nas batidas, demonstrou a profundidade dos sons e alguma agressividade e dureza estridente nas estruturas sonoras que o suportam. Na linha de ANOHNI, Arca, JASSS ou até Conan Osiris.
De seguida, um furacão preparava-se para passar pelo Barreiro. Linn da Quebrada era uma das figuras mais esperadas da noite de sábado: arrastou mais público em comparação com os restantes concertos, mas principalmente soltou mais energia nos Penicheiros. A sexualidade, aqui sim, foi abordada desde o primeiro segundo que Linn apareceu em palco. Tendo em conta o actual panorama político e social brasileiro, o mundo precisa, mais do que nunca, de Linna Pereira para nos relembrar de alguns valores absolutamente essenciais para vivermos num mundo melhor (ou pelo menos mais livre).
Se ainda não entendem o que significa a palavra “liberdade”, ela ensina-vos através da provocação, mas também da normalização dos temas que debate na sua obra. Com os beats de funk brasileiro, cada vez mais sentidos pela comunidade mundial de beatmakers, Linna Pereira fez todo o público dançar ao som de temas muito explícitos (em sua defesa, já passava da meia-noite…). Um rebuliço que deu outra energia (e outra cara) ao festival. Mensagem entregue: Linn sempre, ditadura nunca.
A despedida do festival fez-se com John T Gast e DJ Lycox no Edifício A4 Baía do Tejo. Os dois projectos espelham tudo aquilo que se viveu nos últimos dias, mas também nos últimos 15 anos: a porta está aberta para todos, desde que tragam algo desafiante para a festa.