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Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 18/07/2019

A dupla nova-iorquina "evangelizou" o público lisboeta na passada terça-feira.

OSHUN no Musicbox: uma jornada à procura de novos crentes

Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 18/07/2019

Oxalá, Iemanjá, Xangô, Iansã: a longa e rica tapeçaria ancestral africana é ainda detentora de vários poderes e poucas certezas. Os livros sagrados desenham o caminho até à pós-vida como um processo que passa pela reencarnação – o que significa um egresso de tudo que nos atormentou e pesou na vida passada. Não há consenso no que diz respeito à localização do outro mundo – há, no entanto, suposições sobre o padecer dos mortos e a sua função nesta nova etapa. Os saberes são reduzidos, mas o incógnito é forte o suficiente para iniciar uma jornada cujo fim ninguém até agora traçou. Oxum, Orixá da religião Yoruba, dá-nos a mão e guia-nos pelas águas doces dos rios. Naquele momento não estaremos sozinhos quando os tempos se escurecerem. Na passada terça-feira, o momento não foi de passagens sacerdotais ou honras a figuras etéreas: foi, acima de tudo, uma celebração do poder interior de cada pessoa, um apoio moral para ultrapassar o desconhecido e chegar ao lado bom da vida. No Musicbox, OSHUN deram-nos a boa nova.

O duo nova-iorquino é relativamente novo em tournées mundiais e esta segunda passagem em Portugal deixou o público com vontade para mais. Poderá ter sido uma visita ainda precoce, afinal Thandiwe e Niambi têm ainda pouco arsenal para apresentar no outro lado do oceano e em outras partes do mundo. Ao nome de OSHUN associa-se projectos como ASASE YAA, mixtape de estreia, bittersweet vol.1, lançado em Abril do ano passado, e vários singles soltos disponibilizados na plataforma SoundCloud, sítio onde começaram por colocar as primeiras canções. O som é uma ponte caricata entre ritmos tribais e folclóricos e um dilacerante r&b alternativo e electrónico – imaginemos se Exuma tivesse vivido na era dos smartphones, ou se Chaka Khan nunca se tivesse apaixonado pelo disco e se limitasse a um r&b abafadiço e cálido. De qualquer maneira, o concerto não serviu para satisfazer fãs antigos e fiéis, mas sim para cultivar novos e esperar que a igreja cresça progressivamente.

O relógio apontava 15 minutos depois da hora combinada, o que foi tempo suficiente para que a sala se enchesse. Muito perto das onze da noite, o concerto inicia-se sem grandes falhas. Não há aqui roteiros a seguir, nem certas mecanizações: as duas raparigas entram em cena como se estivessem a entrar numa festa na casa da melhor amiga – sorriso rasgado, devidamente maquilhadas e de charro na mão. Em poucos segundos, ouviu-se “Me” e a festa instalou-se. O ritmo manteve-se com facilidade enquanto, com a ajuda do DJ “piloto” Proda, percorreram algum do seu material. De “My World – cuja versão de estúdio contém a participação de Jorja Smith – passa-se para “Sango” e em seguida visita-se “We’re Yung”: sempre com o público a saltar, sempre com o duo a saltar connosco. Apesar da juventude, conduzem a audiência de maneira surpreendente e retiram o que pretendem para a execução do espectáculo.

É importante referir que OSHUN não são de efemeridades, algo que fizeram questão de salientar. Antes de avançarem para “Solar Plexus”, decidiram ter uma conversa intimista com a audiência: “para nós é muito importante estar num sítio como Lisboa, mas queremos que percebam também a importância do nosso caminho e o porquê de fazermos esta porra”, conta-nos Niambi. Houve também espaço para inquirir os fãs, para distribuir flores, até para admitirem que tinham os fios dos microfones trocados – erro inocente de principiante. O grupo deixou-se levar no diálogo e pareceu que tinha perdido a noção do tempo, mas rapidamente voltou ao que interessava: a música e o ambiente que as duas conseguiram estabelecer naquela noite. Pregava-se muito pelo valor interior de cada um, pela beleza inerente a cada alma e pela importância do amor-próprio. Sem darmos conta, quer por qualquer efeito sónico ou por pura alucinação, deparamo-nos com uma espiritualidade presente que advém da energia quase terapêutica das cantoras.

Apesar da tenra idade, o pathos copula-se com uma fluidez geneticamente mística e orgânica, que ambas fazem questão de mostrar não só nas roupas, como nas imagens que projectavam. O concerto terminou com “Blessings on Blessings”, tema rapidamente reconhecido pela fila da frente e ecoado pelos restantes. Nesta parte, percebemos que OSHUN queriam terminar com o recinto transformado numa espécie de santuário, e a missão foi cumprida. É fácil perceber que as letras são universais para a camada geracional que via o espectáculo atentamente: fala-se aqui de relacionamentos quebrados, amores azedados – “amor, mas que merda é essa?”, diz-se a certa altura — e poder feminino. Mas, muito mais que isso, foi uma oportunidade excelente para mostrarem a Portugal os ensinamentos de uma nova onda de pensamento académico musical, e a capacidade incomensurável de uma nova geração em reafirmar-se e regenerar-se. Por enquanto, tudo bem. Por cá, estamos convencidos.


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