Na semana passada, em Glastonburry, o grupo punk-rap Bob Vylan incentivou o público a gritar “death to the IDF” (morte às Forças de Defesa Israelitas) enquanto o concerto estava a ser transmitido em directo pela BBC. Essa atitude dos Bob Vylan não só não constitui uma quebra de raccord como está totalmente de acordo com o que tem sido o seu percurso, onde temas com títulos tão directos como “Lynch Your Leaders” ou “I Heard You Want Your Country Back” mostram ao que vamos e onde influências punk, como as de Crass, coabitam com o hip hop interventivo ao bom velho estilo dos Public Enemy.
Como tantos outros artistas, os Bob Vylan estão agora a sofrer as consequências institucionais e sociais do seu gesto, com tours anuladas, revogação de vistos e um cancelamento em todas as frentes. O que significa que não só o gesto surtiu efeito e constituiu uma ameaça para o estatuto vigente de impunidade sionista, como que, mesmo sabendo os riscos, o grupo deu a cara pela defesa dos outros, numa atitude rara nos dias que correm. Tivesse o discurso dos Vylan sido favorável aos EUA ou a Israel e não há duvida que as coisas não se desenrolariam desta forma.
Se decidirmos não tomar o apelo pela provocação e pelo desafio que era, e se desconsiderarmos que o peso das palavras difere consoante quem as profere e a quem são proferidas — numa conversa análoga à dos limites do humor mas para a arte —, poderia ser legitimo discutir se as afirmações eram ou não de ódio. Mas ao visar uma força militar e não um povo, uma etnia ou uma cultura, não podem ser equiparadas ao que a extrema-direita fez recentemente em Portugal, discriminando crianças por não pertencerem à sua concepção imbecil do que é ser português, como se não fôssemos um dos povos mais abastardados da Europa. Ou como se a base ideológica fascista não fosse ela própria importada.
Não obstante este caso particular, o nosso desejo de silenciar a extrema-direita pelo seu discurso abjecto é compreensível e frequente. Essa é uma vontade que também sinto, porque a mera existência dessa facção é, em si mesma, ofensiva. Mas se for esse o critério, ficamos reféns da sua volatilidade. Ao alimentar um ambiente de censura quando favorece o nosso ponto-de-vista, não podemos esquecer que esse instrumento funcionará contra nós quando o balanço de poder for diferente. Não significa isto que nos devamos colocar à mercê das traiçoeiras boas intenções dos arautos de Salazar, mas que os mecanismos devem ser sobretudo de prevenção, de controlo civil — e já vamos tarde.
Reconheçamos a pouca sensatez que é conferir tanto poder a uma figura ou instituição — sem a existência de escrutínio — ao ponto de nos colocar na sua dependência total. Sobretudo quando cooptadas por quem controla a agenda política e, dessa forma, a sua execução. Uma vez que a existência das novas expressões do fascismo é o corolário das políticas canibais do capitalismo e não um desvio, a solução para travar o seu avanço não poderá institucional, se é que essa possibilidade alguma vez existiu. A resposta terá de ser de ordem social. Apenas conseguiremos resolver este problema quando o seu terreno fértil — o da vulnerabilidade económica — for erradicado.
No imediato, é pouco provável que mecanismos de controlo e contrabalanço, como os judiciais, venham amenizar as consequências do golpe que está acontecer diante dos nossos olhos a dois tempos: o politico-mediático e o da violência nas ruas, tal como aconteceu com o NSDAP e Hitler. Ou como nos EUA de Trump. A tendência é o agravar deste tipo de situações e quanto mais consolidado estiver o poder desta opressão, mais difícil lhe será resistir e conseguir lidar com as suas várias consequências.
Como em todas as grandes crises, a pressão terá de surgir da sociedade civil. Nesse âmbito, os produtores culturais podem aproveitar as suas plataformas para tomar uma posição, sob pena de reencenar o famoso poema do pastor luterano alemão: “Primeiro eles vieram“.
Alguém me dizia no outro dia que ódio não se combate com ódio, mas sim com amor. É verdade, porque o ódio tolda a inteligência. Mas este terá de ser um amor duro. Como o de Bob Vylan.