pub

Fotografia: Marco Seris
Publicado a: 29/11/2023

Acordeão como (novo) elemento fundamental no jazz.

Orquestra de Jazz de Espinho com João Barradas no Novembro Jazz’23: “Acorde(on)”

Fotografia: Marco Seris
Publicado a: 29/11/2023

À partida, ver o acordeão em jazz poderia ser tão inimaginável quanto tocar jazz com acordeão. Imaginar uma orquestra com um acordeão solista poderia ser tão inesperado como ter um acordionista como músico em destaque no meio do conjunto de outros instrumentos. Porém, aos 21 instrumentos e músicos, à secção dos sopros, dos ritmos, a Orquestra de Jazz de Espinho (OJE) juntou o acordionista João Barradas e trouxe ao programa de fecho da celebração do mês de Novembro ao que ao jazz diz respeito o inesperado e o inimaginável. A prova que o jazz é uma certa utopia gratificante, é pensar livre em possibilidades como esta. Na Casa da Criatividade (São João da Madeira) apresentou-se “Acorde(on)”, em título certeiro, escolhido para o programa de mão cheia de composições escritas para acordeão jazz. Acorde: pleno de intenção para um despertar do instrumento, o mais recente entre os presentes; como também apontando às possibilidades de acordes musicais deste fole cromático em modo “on”, ligado para se fazer ouvir e bem.

João Barradas é um músico de excepção, expoente maior do acordeão cromático pelas avenidas da música, indo da clássica ao jazz, e estar a tocar com a OJE é antes de mais estar numa partilha entre amigos, como referiu em conversa de apresentação do concerto. Revelar as ideias dos músicos e o propósito emocional da música. Conversar, que é uma certa inquietude que Rui Miguel Abreu, co-curador do Novembro Jazz a par de Gisela Borges, traz consigo isto da necessidade de falar sobre música. Desta feita, juntando para a troca de palavras, com o palco em pano de fundo, para além do músico solista os dois condutores da orquestra, Paulo Perfeito e Eduardo Cardinho. Fala-se da Escola Profissional de Música de Espinho, que tem a OJE como uma das expressões da sua actividade e da importância no ensino da música integrando alunos em contexto de trabalho em orquestra profissional. E é tão revelador ouvir que a orquestra pode ser vista como uma certa “sociedade perfeita”, onde há uma grande generosidade entre as partes individuais para que o conjunto exista em harmonia. De modo tal, conta Perfeito, que desperta até a atenção de gentes do mundo empresarial, para vira aprender como se faz, para copiar modelos de como gerir na dita perfeição. Um ensemble alargado, uma big band, são muitas vozes juntas a falar em simultâneo, muita massa sonora, timbres individuais que se querem fazer ouvir. Conduzir em harmonia tantas expressões é um fascínio, como conta Cardinho da sua acção em direcção de orquestra. Juntar a aura cromática do acordeão a tudo isto só pode ser consonante, acrescentar para melhor. Este instrumento que se ouve mais ligado ao popular do que ao jazz segue a desbravar caminho, é quase inexistente como escola entre nós, comenta o solista e compositor Barradas.

“Acorde(on)”, uma e outra vez (nunca demais), para enaltecer o título escolhido do programa de festas. Juntos pela quarta vez, a OJE e Barradas, numa história ainda bem recente, mas que já vai pedindo uma gravação para rever sempre que a vontade mandar. Começo com “Care”, peça composta por Barradas e Carlos Azevedo e que revela o músico na sua dimensão de compositor. A oportunidade em poder ouvir de si por ele próprio, o compositor e o intérprete, que melhor começo se poderia alinhar? A música revela a harmonia anunciada que desperta um querer saber, que estima a polífonia das vozes, e são tantas, bastas na dimensão a alcançar. Primeira linha de sopros, com os naipes de saxofones todos representados pelos músicos Rafael Gomes, Lucas Oliveira, Brian Blaker, Pedro Matos e Bernal Muiños, do soprano ao barítono, com tenor e alto a dizer: presentes. Vozes imprescindíveis na linha da frente da OJE. Esta composição estima-se num cuidar das notas, cromáticas, paleta reveladora dos timbres multicolores trazidos, e calam-se as vozes que acompanham o acordeão, para que revele o seu explendor, faz as delícias no julgar pelo brilho do olhar de quem ouve. Voltam as vozes a amparar uma certa queda, nada física, tudo em rendição, do som do fole articulado. Vozes de coro de trombones, varados pelos braços de Miguel Bessa, Afonso Silva, Ana Santos e Rui Bandeira. Certeiros na harmonia dos graves, sabendo que têm em braços as notas precisas ditadas na partitura dos sons. Primeiro momento de retribuir desde uma plateia cheia de aplausos para dar de volta. “Estiramantens” nome da peça alinhada para seguir programa. Composição do pianista Mário Laginha, escrita para acordeão. A partitura desafia a orquestra em organizações diverdas, em sub-conjuntos, re-agrupamentos. Tocam efusivos os sopros, destacam-se as mais altas vozes, de trompetes feitas, sopradas por Hugo Silva, Rui Almeida, João Tavares e Vasco Silva num estiramento da melodia,elástica no seu esticar de possibilidades. Juntam-se as sopradoras Gabriela Pinto (clarinete) e Luísa Gil (flauta transversal). Intervalam-se momentos compostos por redutos musicais em quinteto jazz, João Rodrigues (piano), José Carlos Barboda (contrabaixo), Miguel Dantas (guitarra) e Gonçalo Ribeiro (bateria), de mãos dadas ao acordeonismo de Barradas. Reduções sem perdas, apenas o condensar. Expandir de novo, num estica-encolhe de vozes que se levantam, literalemente como no caso dos trompetistas a erguerem o corpo a cada solicitação para novo vozear.

Maria Schneider é um nome incontornável entre compositoras para acordeão em contexto jazz, e a sua música soou maravilhosa em “Concert in the Garden” nos intérpretes daquele jardim sonoro ali plantado e cuidado. Trouxeram outro imprescendível compositor para acordeão ao programa com “Canção Açoreana”, de João Paulo Esteves da Silva. Compositor cimeiro da cena jazz entre portas e, além de pianista, também ele acordeonista de mão cheia. Em boa verdade o acordeão surge como uma vontade inventiva de tornar o piano num instrumento portátil, pleno de potencia sonora e dotado de escalas cromáticas. Em especial nestes dois temas tocados de Schneider e Esteves da Silva, a ligação preponderante entre as teclas de cauda e os botões do fole foi estonteante, juntando expressões de consonâncias absolutas, que a voz como intrumento de Catarina Gouveia juntou com sabedoria. Absoluto é também o ouvido do compositor e solista Barradas. Esta faculdade permite-lhe um diálogo e entendimento previlegiado com o espaço musical em redor, capaz de alcançar estados de alma como os trazidos em “Resilience”, outra composição sua, apresentada com arranjos de Perfeito para a orquestra. Tema maior na intensidade e vibração, a mostrar ousadias e ritmos de finca-pé: “Vim para ficar”, quer dizer o instrumentista e compositor. Abrindo espaços para a revelação de um vibrafone de Guilherme Guedes, sempre presente até ali chegado, mas aqui a mostrar a dimensão verdadeiramente vibrante do instrumento. A bateria soube desmedir-se em fulgor que acompanhou o fole de expressão ampla e resiliente. Este tema, assim como “Care”, estão contidos no disco de Barradas Portrait (Nischo/ inner circule music, 2020). 

Para fecho de programa estava reservada uma “Certeza”, sábio alinhamento este, no segundo dos temas compostos por Esteves da Silva para acordeão e com arranjos de Pedro Guedes para orquestra. Ouve-se a expressão de uma certa portugalidade encantadora e mesteriosa, solta-se desprendido um solo de saxofone soprano que contagia com desmesura em crescendo. Desprende emoções vividas no tocar do acordeão, transparecendo o que lhe vai dentro para além do som, revela no rosto o pulsar da música tocada. Á chegada fica-se com a certeza gratificante da razão de ser o acordeão um elemento fundamental do jazz cromático. Está certo!


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos